domingo, 30 de março de 2008

O homem que roubou a Torre Eiffel


Não foi tanto o roubo da torre Eiffel que me criou dificuldades, mas sim colocá-la de volta antes que alguém notasse. Devo afirmar, sem falsa modéstia, que o plano foi muito bem arquitetado. Vocês podem imaginar o que me custou — uma frota de caminhões enormes para carregar a torre até um daqueles campos planos e desertos que se vêem a caminho de Chantilly. Lá a torre podia facilmente ser colocada na horizontal. Durante a viagem, em uma manhã nevoenta de outono, havia bem pouco tráfego, e o pouco que havia era insignificante. Ninguém que tentou ultrapassar meus 102 caminhões de seis rodas notou que eles eram unidos entre si pela torre, como as contas de um colar: Os carros particulares chegavam a fazer menção de ultrapassar, mas quando os motoristas dos Fiat e Renault viam aquela fila de caminhões à frente, desistiam e conformavam-se em seguir a procissão. Por outro lado, os carros que vinham em sentido contrário tinham a estrada toda para eles: meus caminhões transformaram o trajeto Chantilly—Paris em uma longa estrada de mão única. Os carros passavam a toda velocidade e nem tinham tempo de notar que a torre estava apoiada sobre cada caminhão da corrente, como numa espécie de berço de centenas de metros de comprimento.

Tenho muito carinho pela torre, e fiquei feliz em vê-Ia, depois de tantos anos de guerra, cerração, chuva e radar, em repouso. No primeiro dia da mudança caminhei ao seu redor, de vez em quando tocando um dos suportes: o quarto andar parecia um pouco desconfortável no pedaço que passava por cima de um afluente manso e lamacento do Sena, então coloquei-o mais à vontade. Depois voltei para sua sede original — ainda temia que alguém notasse. Os grandes blocos de concreto estavam lá, sem nada em cima. Lembravam tanto túmulos, que alguém já havia deixado um maço de flores para os heróis da Resistência. Um táxi parou trazendo os últimos turistas da estação antes de, como andorinhas, rumarem para oeste com a chegada do inverno. O homem estava com uma garota e cambaleava um pouco ao caminhar. Curvou-se para ver as flores e ao endireitar-se ficou vermelho nas bochechas lisas e empoadas.

— É um memorial — disse.

— Comment? — perguntou o motorista de táxi.

A garota acrescentou:

— Chester, você disse que poderíamos almoçar aqui.

— Não estou vendo torre nenhuma — disse o homem.

— Comment?

— Veja bem — tentou explicar, gesticulando para dar maior ênfase —, você nos trouxe para o lugar errado. Fez um esforço. — Ici n 'est pas la Tour Eiffel.

— Oui. Ici.

— Non. Pas du tout. Ici il n 'est pas possible de manger.

O motorista saltou do carro e olhou ao seu redor. Fiquei um pouco nervoso, com medo de que desse pela falta da torre, mas ele voltou para dentro do carro e virou-se para mim dizendo, melancólico:

— Vivem mudando o nome das ruas.

Falei com ele em tom confidencial.

— Eles só querem almoçar. Leve-os ao Tour d'Argent. — Partiram satisfeitos e o perigo passou.

Obviamente havia sempre o risco de que os funcionários chamassem a atenção do público, mas eu havia pensado nisso. Eles recebiam semanalmente e quem seria bobo de admitir que seu local de trabalho desapareceu antes de esperar a semana terminar e ver se o dinheiro entrou normalmente? Os cafés das redondezas tornaram-se o grande ancoradouro dos funcionários da torre, mas todos evitavam sentar na mesma mesa de seus colegas de trabalho para não dar margem a conversas constrangedoras. Identifiquei um boné de uniforme por bistrô em uma área de uma milha quadrada: cada homem passava as horas de seu expediente sentado tranqüilamente a uma mesa de bar, tomando uma cerveja ou um pastis dependendo do salário, levantando pontualmente para bater o ponto da saída. Não me pareceu que estivessem perplexos com o desaparecimento da torre. Era algo que podia ser convenientemente esquecido, como o imposto de renda. Melhor não pensar a respeito: se pensassem, alguém poderia esperar que tomassem uma providência.

Os turistas, obviamente, representavam o perigo maior. Aviões noturnos alegaram nevoeiro baixo, e o Ministério do Ar solicitou o "comentário" do Ministério das Relações Exteriores sobre várias reclamações de interferências no radar — um novo dispositivo russo na guerra fria. Mas logo espalhou-se a notícia, entre guias e motoristas de táxi, de que quando um turista pedisse para ver a torre Eiffel a melhor coisa a fazer era simplesmente levá-lo ao Tour d' Argent. A gerência do lugar não decepcionava, e a vista, nesses dias de outono, também era ótima, de modo que os turistas assinavam o livro de clientes a tanto por cabeça. Eu costumava ir para lá ouvi-los.

— Eu imaginava que era mais, como dizer... metálica — disse um deles. — Achei que dava para ver através dela.

— Expliquei-lhe que isso se aplicava perfeitamente ao estabelecimento em que se encontrava.

Férias nunca duram para sempre, e uma manhã, enquanto rodeava a torre aplicando um pouco de cuspe e polidor aos suportes, concluí que ela precisava voltar a funcionar antes que os empregados sentissem falta de seu salário. Só me restava esperar que, algum dia, ela encontrasse outra pessoa que, como eu, lhe desse a chance de passar uma temporada no campo. Garanto que não há risco nenhum. Ninguém em Paris admitiria que a ausência da torre passou despercebida por cinco dias — assim como um homem apaixonado não admitiria não ter notado a falta da amante.

Mesmo assim devolver a torre não foi fácil, tendo sido obrigado a lançar mão de alguns truques a fim de desviar a atenção das pessoas. Para facilitar, encomendei a um conhecido, que fazia figurinos teatrais, alguns uniformes da polícia, das Gardes Mobiles, das Gardes Républicaines e da Académie Française. Planejei uma reunião de poujadistes, uma rebelião de argelinos e um discurso pela morte de um crítico de teatro obscuro, que um amigo meu fez "disfarçado" de Ministro da Educação. Digo disfarçado, mas na verdade não havia a menor necessidade de mudar de nome, nem de cara, visto que ninguém lembrava quem ocupava essa pasta no gabinete de Monsieur Mollet.

Os turistas tiveram a última palavra e, curiosamente, enquanto admirava minha amada torre, que parecia dar piruetas na névoa da manhã, de volta a seu lugar, vi o mesmo americano chegando de táxi com a mesma garota. Ele olhou rapidamente ao seu redor e disse:

— Aqui não é a torre Eiffel.

— Comment?

— Ah, Chester — disse a garota —, onde é que nos trouxeram desta vez? Eles nunca acertam. Eu estou morrendo de fome, Chester. Estou sonhando com aquele Sole Délice que comemos.

Eu disse para o motorista:

— É o Tour d'Argent que eles querem — observei-os partir. A coroa para os heróis da Resistência havia murchado, mas eu peguei uma flor seca e desbotada, coloque lapela e acenei para a torre. Não ousei ficar mais tempo Poderia ficar tentado a roubá-la de novo.


Graham Greene



Texto extraído do livro “A última palavra”, Editora Record – Rio de Janeiro, 1995, pág. 48, tradução de Raffaella de Filippis.









O oco e um vazio


Por enquanto, ela se dispunha só assim: de olhos fechados. E se abrisse os olhos e se lhe perguntassem para onde olhava, não saberia responder — decidira-se, por fascinação, a um inicio; inclusive se havia disposto a estar somente de olhos fechados. Tudo era partida: despira a roupa e postara-se de quatro, sobre os joelhos e sobre as palmas das mãos, e ainda sem entender o que viria a seguir, pensou — um pensamento capaz de assombrar a precariedade que tem uma mulher nua, de quatro e de olhos fechados — pensou que se uma pessoa fizesse apenas aquilo que alcança o entendimento, não avançaria um passo. Mas não era caso de avançar, não era caso de entender, era só caso de dispor-se ali, à espera, nua, de quatro, olhos fechados, conforme lhe fora dito. Conforme lhe ordenara o homem de alguma idade que se havia sentado na cadeira junto à cama e que lhe pedira tire a roupa, não me olhe, quero lhe ver primeiro. Para não ficar sozinha, para não ficar sem ele, obedeceu.

E então, na troca de um momento a outro, sentiu-se tocada com a polpa macia de lábios e se contraiu num espasmo que não era ainda desejo, um espasmo que era a nascente de uma expectativa. Na solidão escura dos olhos fechados,já não estava sozinha sobre a cama. Nua, indefesa e sem saber das coisas adiante, transformara-se numa pessoa de intensa espera.

Um rastro de tepidez alisou a coxa, a nádega e as costas, e a respiração morna do outro ergueu-lhe um arrepio. Suave, o homem, agora tão irreconhecivelmente suave, o homem filigranou as voltas de sua conformação, cioso trabalho de minúcia, demorando a boca e língua onde ela desejava — onde ela ia, aos poucos, querendo. Assim, lenta, se armou a cobiça, feito maré montante, feito mar de braços abertos arfando num pulso de ida e vinda. O homem falava coisas, falava; e ela entendia, entendia. Logo foi um refluxo de queimor, e o pulmão agitava-se, e se revolvia no ventre uma força tão grande de agudeza, que sua vontade era estar entregue — como se, nua, olhos fechados, de costas para o outro, representasse a confiança máxima, como se bastasse confiança para estar entregue. Quero lhe ver primeiro, não me olhe, era a vontade do outro, aquele que dizia coisas, que lhe raspava as ancas com as unhas, que lhe fustigava com os dedos cavando um oco no meio do ventre, um buraco a ser tapado, um buraco. Ela, que não sabia, que ainda não olhava, quis dar volta com o corpo, quis ver no rosto a quem lhe pedira, não me olhe. Mas nada podia, olhar não podia, ver não podia, e fez na mente o rosto do homem, esse de alguma idade, de músculos frouxos, cabelos ralos, óculos postos, que entrava na sala de aula em alguns dias da semana, que na saída da classe de hoje, depois de apagar as equações no quadro-negro, chamara por ela: vem comigo. Vem comigo, e ela crescera de repente, tornando-se grande para conter a si mesma dentro da exigüidade de menina, tão agitada, tão ansiosa, tanto de tudo o que vinha de sonhar com aquele homem, o mesmo que agora subtraía-lhe da visão e que, dizendo coisas, a sulcava. Tentou, mas não pôde, imaginá-lo na nudez e, forcejando, numa intensa abstração, viu-o na ardência — ardente por ela. Deu-se conta que se armara uma pose de bicho, como um bicho roçando a carne que a mimava, como um bicho impelindo-se contra o rosto do outro, feito bicho fermentando o desejo na pele dos dedos e na dureza das unhas do homem; era um animal querendo a queimação. Tinha virado nisso, numa corda tensa, os músculos vibrando sangue, os braços já quase dormentes, o ventre pedindo, os seios suspensos sobre o travesseiro, o rosto tapado de escuridão. Ela inteirava-se de seu estado de mulher estando com um homem, não mais um menino, um homem mesmo, de punhos duros, veias salientes, pêlos grossos, como se fosse essa a grande generosidade do mundo. E então era isso, como se, conforme ele dissera, conforme ele prometera — desobrigara-a de amá-lo e, sem obrigação de amor, ela podia exonerar-se do mundo e não mais precisava estar perturbada com a piedade. Sabia que estava bem perto de ser feliz, quase ali, ao alcance, um pouco mais, e não o olhava, porque, se olhasse, na certa acabaria por ter laços, aqueles que estava proibida de ter. Porque, se olhasse, a mágica estaria acabada e seriam dois infelizes naquele quarto.

De repente, sentiu a pressão e o peso sobre as costas, tudo demais para seu corpo: o rosto afundou contra o travesseiro, as ancas levantadas, as mãos de poder retendo-lhe a carne, atando-a, ele um ser de músculos frouxos, cabelos ralos, locupletando-se, e ela sem poder olhá-lo no rosto, sem poder enxergar a contração da boca, os sulcos das rugas, a boca crispada. Buscando apoio nos punhos, jogou-se com força para trás, e o homem retribuiu o impulso com força e mais força e disse-lhe coisas, arremeteu-se ainda com mais vigor, e ainda mais, até que ela não suportou, o corpo desistiu, estirando-se no colchão, o rosto em atrito contra o travesseiro, os seios nos lençóis, e ele veio junto, como se estivesse grudado, como se fosse de arrasto, como se fosse legítimo ele negar-se à visão, como se só fosse legítimo os dois corpos ligados. O homem gemeu. Para ela, por mais que ansiasse, foi de repente a compreensão: já não havia tempo. Mais uma vez o homem gemeu e lançou-se sem dó, sem pena. Mais uma vez o gemido, e outro, e ele, rápido, arfou e disse coisas e insistiu nela, cada vez mais rápido, cada vez mais, e ela agora sem jeito, dispondo-se, contornando-se ao prazer alheio, fazendo-se o vaso das coisas que viriam. Foi quando ouviu:

— Meu amor.

E ela, que não era amor de ninguém, compreendeu que estava alforriada pela impostura, que tudo estaria acabado a partir de agora: finalmente abriu os olhos, finalmente e a tempo de ver o homem que tombou abatido e inútil a seu lado na cama. Meu amor, ele ainda ousou repetir, esforçando os lábios numa palavra que não cabia em sua boca, não no meio daquela cama no meio daquele quarto de solteiro. O homem limpou-se com o lençol e, antes de fechar os olhos baços rumo ao sono, deu-lhe um sorriso, como se fosse meigo ou terno, brando só porque esteve nu e se repletou numa mulher.

Ela deu de mão no mesmo lençol, enfrentando, magoada, a textura úmida. Com as pontas dos dedos, arremeteu-o aos pés da cama. Afofou o travesseiro e estendeu-se ao lado do homem, apequenada numa espécie de resignação: ele fizera nela as coisas que são só ânsia, às quais não correspondem doçura nenhuma, nas quais só se ama, ou se diz que se ama, um pouco antes do fim. Quis, porque era moça, porque se acostumara à maciez da companhia, quis encostar o rosto ao peito magro, sentir o pulmão respirando em compasso sereno; quis, como quis, merecer o sagrado de uma pele que descansa. Não podia, não com aquele homem, não com aquele cuja imagem fazia nascer um enjôo doce.

No entanto, não sossegava. Como se ainda não pudesse caber na quietude, apoiou-se sobre o cotovelo e viu o homem de carnação débil e de músculos frouxos. Viu mais: o homem galante ao entrar na sala de aula, a fala pausada, um deus de letra redonda, pensou no que havia pensado que teria com ele, nas coisas que falava, no amor prometido por descuido, e reacendeu. Os dedos migraram sobre os pêlos grisalhos do peito, atravessando o ventre alteado, até espalmar a mão. Um tremor. Retrocedendo séculos, ela apenas queria, como uma ancestral épocas antes quisera. Mas era sozinha que tinha de estar com o outro, porque o outro que cabia naquela cama lhe havia roubado, com suas ordens e seu sono, a presença salvadora. E, vendo o homem que dormia, extinto do quarto e apagado das coisas, resolveu apaziguar-se. Com medo de mexer errado em si mesma, foi cuidadosa. Para si mesma, podendo olhar-se inteira, teve zelo e paciência.

Antes que o mundo lhe sobreviesse, antes de se tornar fina e limpa a atmosfera, antes mesmo de o prazer surgir da solidão a que fora arrojada, cometeu: beijou os lábios do homem. Foi então que se uniu a ele, só quando pôde beijá-lo e só naquele instante seco, para nunca mais. E depois de beijá-lo, depois de compor e desatar nós, e sem que ele sequer se inteirasse de um mundo que se construía e desmoronava a seu lado, a moça deitou-se de olhos abertos. E as pupilas estavam largas, tranqüilas, vingadas. A penumbra começava a azular as cores do quarto.

Acordou de um sono muito curto e sobressaltado. Ele continuava lá, de costas para ela. Naquele pouco tempo, fez-se o movimento das miudezas, e ele, com sua ausência, havia transformado a nudez e o prazer de ambos em blasfêmia. Cheia dos odores, acendendo as luzes pelo caminho, foi até o banheiro e encheu de água o côncavo das mãos, espargindo rosto e colo. Mas ainda não era o suficiente, e esqueceu-se muito tempo sob a água da ducha. Enxugou-se com uma toalha áspera. Foi até o quarto e, tateando, encontrou o interruptor que fez brilhar a lâmpada fraca e amarela. Vestiu-se. O homem dormia numa fragilidade tão grande de corpo lasso e de músculos frouxos. Cobriu-o com o lençol, protegendo-o. Piedosa, de volta ao mundo, juntando sua nova sabedoria, beijou-lhe a fronte.

Bateu a porta. No corredor do edifício, era partida.

Saiu à rua de olhos muito abertos. Pensou que uma pessoa deveria fazer apenas aquilo que entendesse. E seguiu pela avenida vazia de fascinação.


Cíntia Moscovich
Texto extraído do livro “25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira”, Editora Record – Rio de Janeiro, 2003, organização de Luiz Ruffato, pág. 269.

Quando eu chegar ao céu...

Quando eu chegar ao Céu, de manhã, de tarde ou de noite, não sei ainda, pedirei para ir à biblioteca de Deus, onde curiosamente bisbilhotarei — com respeito — algumas obras. Quero reler a Invenção de Orfeu, de nosso Jorge de Lima, sofredor, telúrico e místico, homem bom, cirenaico, assim lhe chamou Rachel de Queiróz, quando ele morreu, novembro, 15, do ano de 1953.

E pedirei, sim, para conversar com Manu, Manuel Bandeira, que se chamava Neném. Matarei saudades do dentuço Manuel, que foi o melhor ser humano que conheci, neste mundo. E gostaria de conhecer Chiquita do Rio Negro, que recusou casar se com Ataulfo Nápoles de Paiva, conviva do baile da ilha Fiscal. Escrevi sobre Chiquita. Li a sua biografia, escrita por Garrigou-Lagrange.

Meu Deus, convocaria Jaime Ovalle, o tio Nhonhô, que morreu com a idade de Jorge de Lima. Ali, na biblioteca do Céu, conheceria o estupendo Ovalle, o do Azulão, o bêbedo místico, o amigo de Manuel, íntimo de Londres e de Nova York.

Por fim, suplicaria para falar com João Guimarães Rosa, poliglota, com quem tão poucas vezes falei. E evocaria a posse do seu sucessor, na Casa de Machado. Esqueci-me completamente dessa posse, ai de mim.

E fui. Lá estava eu, 1968. Um ano depois da morte de Rosa. Mário Palmério falou sobre ele, como seu herdeiro. E gostei tanto do discurso, equilibrado, lúcido, original. Se me lembro. Foi procurar cartas íntimas de Rosa para grande amigo, médico e fazendeiro em Minas, Moreira Barbosa. Cartas de outrora. Deliciosas, fraternais, confiantes, de pura entrega. Reveladoras do ser complexíssimo, fechado, carente, que gostava de disfarçar, despistar, ir e vir, comensal do mistério. Saudarei a uns e outros na largueza dadivosa do Céu, turbilhão de amor, como dizia o insaciável Léon Bloy.


Antonio Carlos Villaça


Texto extraído do livro “Os saltimbancos da Porciúncula”, Editora Record – Rio de Janeiro, 1996, pág. 73.

segunda-feira, 24 de março de 2008

Antigamente


I- ANTIGAMENTE, as moças chamavam-se mademoiselles e eram todas mimosas e muito prendadas. Não faziam anos: completavam primaveras, em geral dezoito. Os janotas, mesmo não sendo rapagões, faziam-lhes pé-de-alferes, arrastando a asa, mas ficava longos meses debaixo do balaio. E levavam tábua, o remédio era tirar o cavalo da chuva e ir pregar em outra freguesia. As pessoas, quando corriam, antigamente, era de tirar o pai da forca, e não caíam de cavalo magro.Algumas jogavam verde para colher maduro, e sabiam com quantos paus se faz uma canoa. O que não empedia que, nesse entrementes, esse ou aquele embarcasse em canoa furada. Encontravam alguém que lhes passava manta e azulava, dando às de Vila-diogo. Os idosos, depois da janta, faziam o quilo, saindo para tomar a fresca; e também tomavam cautela de não apanhar sereno. Os mais jovens, esses iam ao animatógrafo, e mais tarde ao cinematógrafo, chupando balas de altéia. Ou sonhavam em andar de aeroplano; os quais, de pouco siso, se metiam em camisa de onze varas, e até em calças pardas; não admira que dessem com os burros n'água.


Havia os que tomavam chá em criança, e, ao visitarem família da maior consideração, sabiam cuspir dentro da escarradeira. Se mandavam seus respeitos a alguém, o portador garantia-lhes: "Farei presente." Outros, ao cruzarem com um sacerdote, tiravam o chapéu , exclamando: "Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo"; ao que o Reverendíssimo correspondia: "Para sempre seja louvado." E os eruditos, se alguém espirrava - sinal de defluxo -, eram impelidos a exortar: "Dominus Tecum." Embora sem saber da missa a metade, os presunçosos queriam ensinar padre-nosso ao vigário, e com isso punham a mão em cumbuca. Era natural que com eles se perdesse a tramontana. A pessoa cheia de melindres ficava sentida com a desfeita que l he faziam, quando, por exemplo, insinuavam que seu filho era artioso. Verdade seja que às vezes os meninos eram encapetados; chegavam a pitar escondido, atrás da igreja. As meninas, não : verdadeiros cromos, umas tetéias.


Antigamente, certos tipos faziam negócios e ficavam a ver navios; outros eram pegados com a boca na botija, contavam tudo tintim por tintim e iam comer o pão que o diabo amassou, lá onde judas perdeu as botas. Uns raros amarravam cachorro com lingüiça. E alguns ouviam cantar o galo, mas não sabiam onde. As famílias faziam sortimento na venda, tinham conta no carniceiro e arrematavam qualquer quitanda que passasse à porta, desde que o moleque do tabuleiro, quase sempre um "cabrito", não tivesse catinga. Acolhiam com satisfação a visita do cometa, que, andando por ceca e meca, trazia novidades de baixo, ou seja, da corte do Rio de Janeiro. Ele vinha dar dois dedos de prosa e deixar de presente ao dono da casa um canivete roscofe. As donzelas punham carmim e chegavam à sacada para vê-lo apear do macho faceiro. Infelizmente, alguns eram mais que velhacos: eram grandessíssimos tratantes.


Acontecia o indivíduo apanhar constipação; ficando perrengue, mandava o próprio chamar o doutor e, depois ir à botica para aviar a receita, de cápsulas ou pílulas fedorentas. Doença nefasta era phtysica, feia era o gálico. Antigamente, os sobrados tinham assombrações, os meninos lombrigas, asthmas os gatos, os homens portavam ceroulas, botinas e capa-de-goma, a casimira tinha de ser superior e mesmo X.P.T.O.London, não havia fotógrafos, mas retratistas, e os cristãos não morriam: descansavam. Mas tudo isso era antigamente, isto é, outrora.



II-


Antigamente, os pirralhos dobravam a língua diante dos pais, e se um se esquecia de arear os dentes antes de cair nos braços de Morfeu, era capaz de entrar no couro. Não devia também se esquecer de lavar os pés sem tugir nem mugir. Nada de bater na corcunda do padrinho, nem de debicar os mais velhos, pis levava tunda. Ainda cedinho, aguava as plantas, ia ao corte e logo voltava aos penates. Não ficava mangando na rua nem escapulia do mestre, mesmo que não entendesse patavina da instrução moral e cívica. O verdadeiro smart calçava botina de botões para comparecer todo liró ao copo d'água, se bem que no convescote apenas lambiscasse, para evitar flatos. Os bilontras é que eram um precipício, jogando com pau de dois bicos, pelo que carecia muita cautela e caldo de galinha. O melhor era pôr as barbas de molho diante de um treteiro de topete; depois de fintar e de engambelar os coiós, e antes que se pusesse tudo em pratos limpos, ele abria o arco. O diacho eram os filhos da Candinha: que somava a candongas acabava na rua da amargura, lá encontrando, encafifada, muita gente na embira, que não tinha nem para matar o bicho; por exemplo, o mão-de-defunto.


Bom era ter costas quentes, dar as cartas com a faca e o queijo na mão; melhor ainda, ter uma caixinha de pós de pirlimpimpim, pois isso evitava de levar a lata, ficar na pindaíba ou espichar a canela antes que Deus fosse servido. Qualquer um acabava enjerizado se lhe chegavam a urtiga no nariz, ou se o faziam de gato-sapato. Mas que regalo, receber de graça, no dia-de-reis, um capado! Ganhar vidro de cheiro marca Barbante, isso não: a mocinha dava o cavaco. Às vezes, sem tirte nem guarte, aparecia um doutor pomada, todo cheio de noive horas; ia-se ver, debaixo de tanta farafo era um doutor mula ruça, um pé rapado, que espiga! E a moçoila, que começava a nutrir xodó por ele, que estava mesmo de rabicho, caía das nuvens. Quem queria lá fazer papel pança? Daí se perder as estribeiras por uma tutaméi, um alcaide que o caixeiro nos impingia, dando de pinga um cascão de goiabada.


Em compensação, viver não era sangria desatada, e até o Chico vir de baixo vosmecê podia provar uma abrideira que era o suco, ficando na chuva mesmo com bom tempo. Não sendo pexote, e soltando arame, que vida supimpa a do Degas! Macacos me mordam se estou pregando peta. E os tipos que havia: o pau-para-toda-obra, o vira-casaca (este cuspia no prato em que comera), o testa-de-ferro, o sabe-com-quem-está-falando, o sangue-de-barata, o dr. Fiado que morreu ontem, o Zé-povinho, o biltre, o peralvilho, o salta-pocinhas, o alferes, a polaca, o passador de nota falsa, o mequetrefe, o safardana, o maria-vai-com-as-outras....Depois de mil peripécias, assim ou assado, todo mundo acabava mesmo batendo com o rabo na cerca, ou simplesmente a bota, sem saber como descalçá-la. Mas até aí morreu o Neves, e não foi no dia de São Nunca de tarde: foi vítima de pertinaz enfermidade que zombou de todos os recursos da ciência, e acreditam que a família nem sequer botou fumo no chapéu?



Carlos Drummond de Andrade
Caminhos de João Brandão

sábado, 15 de março de 2008

Primeira aventura de Alexandre

Naquela noite de lua cheia estavam acocorados os vizinhos na sala pequena de Alexandre: seu Libório, cantador de emboladas, o cego preto Firmino e Mestre Gaudêncio curandeiro, que rezava contra mordedura de cobras. Das Dores benzedeira de quebranto e afilhada do casal, agachava-se na esteira cochichando com Cesária.

— Vou contar aos senhores... principiou Alexandre amarrando o cigarro de palha.

Os amigos abriram os ouvidos e Das Dores interrompeu o cochicho:

— Conte, meu padrinho.

Alexandre acendeu o cigarro ao candeeiro de folha, escanchou-se .na rede e perguntou:

— Os senhores já sabem porque é que eu tenho um olho torto?

Mestre Gaudêncio respondeu que não sabia e acomodou-se num cepo que servia de cadeira.

— Pois eu digo, continuou Alexandre. Mas talvez nem possa escorrer tudo hoje, porque essa história nasce de outra, e é preciso encaixar as coisas direito. Querem ouvir? Se não querem, sejam francos: não gosto de cacetear ninguém.

Seu Libório cantador e o cego preto Firmino juraram que estavam atentos. E Alexandre abriu a torneira:

— Meu pai, homem de boa família, possuía fortuna grossa, como não ignoram. A nossa fazenda ia de ribeira a ribeira, o gado não tinha conta e dinheiro lá em casa era cama de gato. Não era, Cesária?

— Era, Alexandre, concordou Cesária. Quando os escravos se forraram, foi um desmantelo, mas ainda sobraram alguns baús com moedas de ouro. Sumiu-se tudo.

Suspirou e apontou desgostosa a mala de couro cru onde seu Libório se sentava:

— Hoje é isto. Você se lembra do nosso casamento, Alexandre?

— Sem dúvida, gritou o marido. Uma festa que durou sete dias. Agora não se faz festa como aquela. Mas o casamento foi depois. É bom não atrapalhar.

— Está certo, resmungou mestre Gaudêncio curandeiro. É bom não atrapalhar.

— Então escutem, prosseguiu Alexandre. Um domingo eu estava no copiar, esgaravatando unhas com a faca de ponta, quando meu pai chegou e disse:

— "Xandu, você nos seus passeios não achou roteiro da égua pampa?" E eu respondi: — "Não achei, nhor não." — "Pois dê umas voltas por aí, tornou meu pai Veja se encontra a égua." — "Nhor sim." Peguei um cabresto e saí de casa antes do almoço, andei, virei, mexi, procurando rastos nos caminhos e nas veredas. A égua pampa era um animal que não tinha agüentado ferro no quarto nem sela no lombo. Devia estar braba, metida nas brenhas, com medo de gente. Difícil topar na catinga um bicho assim". Entretido, esqueci o almoço e à tardinha descansei no bebedouro, vendo o gado enterrar os pés na lama. Apareceram bois, cavalos e miunça, mas da égua pampa nem sinal. Anoiteceu, um pedaço de lua branqueou os xiquexiques e os mandacarus, e eu. me estirei na ribanceira do rio, de papo para. o ar, olhando o céu, fui-me amadornando devagarinho, peguei no sono, com o pensamento em Cesária. Não sei quanto tempo dormi, sonhando com Cesária. Acordei numa escuridão medonha. Nem pedaço de lua nem estrelas, só se via o carreiro de Sant'lago. E tudo calado, tão calado que se ouvia perfeitamente uma formiga mexer nos garranchos e uma folha cair. Bacuraus doidos faziam às vezes um barulho grande, e os olhos deles brilhavam como brasas. Vinha de novo a escuridão, os talos secos buliam,as folhinhas das catingueiras voavam. Tive desejo de. voltar para casa, mas o corpo morrinhento não me ajudou. Continuei deitado, de barriga para cima, espiando o carreiro de Sant'lago. e prestando atenção ao trabalho das formigas. De repente. conheci que bebiam água ali perto. Virei-me, estirei o pescoço e avistei lá embaixo dois vultos malhados, um grande e um pequeno, junto da cerca do bebedouro. A princípio não pude vê-los direito, mas firmando a vista consegui distingui-las por causa das malhas brancas. — "Vão ver que é a égua pampa, foi o que eu disse. Não é senão ela. Deu cria no mato e só vem ao bebedouro de noite." Muito ruim o animal aparecer .àquela hora. Se fosse de dia e eu tivesse uma corda, podia laçá-lo num instante. Mas desprevenido, no escuro, levantei-me azuretado, com o cabresto na mão, procurando meio de sair daquela dificuldade. A égua ia escapar, na certa. Foi aí que a idéia me chegou.

— Que foi que o senhor fez? perguntou Das Dores curiosa.

Alexandre chupou o cigarro, o olho torto arregalado, fixo na parede. Voltou para Das Dores o olho bom e explicou-se:

— Fiz tenção de saltar no lombo do bicho e largar-me com ele na catinga. Era o jeito. Se não saltasse, adeus égua pampa. E que história ia contar a meu pai? Hem? Que história ia contar a meu pai, Das Dores?

A benzedeira de quebranto não deu palpite, e Alexandre mentalmente pulou nas costas do animal:

— Foi o que eu fiz. Ainda bem não me tinha resolvido, já estava escanchado. Um desespero, seu Libório, carreira como aquela só se vendo. Nunca houve outra igual. O vento zumbia nas minhas orelhas, zumbia como corda de viola. E eu então... Eu então pensava, na tropelia desembestada: — "A cria, miúda, naturalmente ficou atrás e se perde, que não pode acompanhar a mãe, mas esta amanhã está ferrada e arreada." Passei o cabresto no focinho da bicha e, os calcanhares presos nos vazios, deitei-me, grudei-me com ela, mas antes levei muita pancada de galho e muito arranhão de espinho rasga-beiço. Fui cair numa touceira cheia de espetos, um deles esfolou-me a cara, e nem senti a ferida: num aperto tão grande não ia ocupar-me com semelhante ninharia. Botei-me para fora dali, a custo, bem maltratado. Não sabia a natureza do estrago, mas pareceu-me que devia estar com a roupa em tiras e o rosto lanhado. Foi o que me pareceu. Escapulindo-se do espinheiro, a diaba ganhou de novo a catinga, saltando bancos de macambira e derrubando paus, como se tivesse azougue nas veias. Fazia um barulhão com as ventas, eu estava espantado, porque nunca tinha ouvido égua soprar daquele jeito. Afinal subjuguei-a, quebrei-lhe as forças e, com puxavantes de cabresto, murros na cabeça e pancadas nos queixos, levei-a. para a estrada. Ai ela compreendeu que não valia a pena teimar e entregou os pontos. Acreditam vossemecês que era um vivente de bom coração? Pois era. Com tão pouco ensino, deu para esquipar. E eu, notando que a infeliz estava disposta a aprender, puxei por ela, que acabou na pisada baixa e num galopezinho macio em cima da mão. Saibam os amigos que .nunca me desoriento. Depois de termos comido um bando de léguas naquele pretume de meter o dedo no olho, andando para aqui e para acolá, num rolo do inferno, percebi que estávamos perto do bebedouro. Sim senhores. Zoada tão grande, um despotismo de quem quer derrubar o mundo — e agora a pobre se arrastava quase no lugar da saída, num chouto cansado. Tomei o caminho de casa. O céu se desenferrujou, o sol estava com vontade de aparecer. Um galo cantou, houve nos ramos um rebuliço de penas. Quando entrei no pátio .da fazenda, meu pai e os negros iam começando o ofício de Nossa Senhora. Apeei-me, fui ao curral, amarrei o animal no mourão, cheguei-me à casa, sentei-me no copiar. A reza acabou lá dentro, e ouvi a fala de meu pai: — "Vocês não viram por aí o Xandu?" — "Estou aqui, nhor sim, respondi cá de fora" — "Homem, você me dá cabelos brancos, disse meu pai abrindo a porta. Desde ontem sumido!" — "Vossemecê não me mandou procurar a égua pampa?" —"Mandei, tornou o velho. Mas não mandei que você dormisse no mato, criatura dos meus pecados. E achou roteiro dela?" — "Roteiro não achei, mas vim montado num bicho. Talvez seja a égua pampa., porque tem malhas. Não sei, nhor não, só se vendo. O que sei é que é bom de verdade: com umas voltas que deu ficou pisando baixo, meio a galope. E parece que deu cria: estava com outro pequeno." Aí a barra apareceu, o dia clareou. Meu pai, minha mãe, os escravos e meu irmão mais novo, que depois vestiu farda e chegou a tenente de polícia, foram ver a égua pampa. Foram, mas não entraram no curral: ficaram na porteira, olhando uns para os outros, lesos, de boca aberta. E eu também me admirei, pois não.

Alexandre levantou-se, deu uns passos e esfregou as mãos, parou em frente de mestre Gaudêncio, falando alto, gesticulando:

— Tive medo, vi que tinha feito uma doidice. Vossemecês adivinham o que estava amarrado no mourão? Uma onça-pintada, enorme, da altura de um cavalo. Foi por causa das pintas brancas que eu, no escuro, tomei aquela desgraçada pela égua pampa.

Graciliano Ramos

sexta-feira, 14 de março de 2008

Ouve, namorada, vou te contar um segredinho. Dessas coisinhas que a gente não comenta com ninguém, e fica curtindo a vitória, bem lá no fundo do peito, mas com vontade de gritar pra todo mundo. E se gritar, as pessoas julgarão a vitória como resultado de uma atitude de mau caráter. Mas essa minha até que foi interessante e sem prejuízo de segundos ou terceiros.

Olha, antes de tudo, isso aconteceu e eu não te conhecia direito ainda, viu? Nós não nos víamos muito, acho que que nem era namoro. Por isso, não precisa começar com esse beicinho de zangada, tá?

Vê bem, presta atenção: tenho uma amiga chamada Rosa Maria. Alguns a chamam de Maria Rosa, mas prefiro a primeira forma, é mais fluente. E houve períodos em que, na rota da amizade, chegamos a derrapar em tratos mais íntimos, e não evitamos as derrapadas. Apesar disso, não colidimos pra valer. E era essa colisão que eu procurava. Que provocasse desajustes nos chassis, capotamentos, ferragens retorcidas. Pra valer mesmo!

Acontece que, por outra pista, Rosa Maria foi apresentada a Vinícius de Moraes. E morena que é, complexo estravagante de curvas e cheiros, não custou muito ao poeta, já no primeiro encontro, jogar-lhe um dengo e malícia sarrateiras sugestões de carinhos forradas com a promessa de um soneto especial. E o soneto ficou na promessa, e na cabecinha de Rosa Maria. Enquanto continuava em minha cabeça a tão almejada colisão.

Passado algum tempo, e sabedor de que uma tal noite eu me encontraria com Vinícius no teatro, ela me pediu que cobrasse dele o tal soneto que lhe prometera. E com forte emoção me falou de seu desejo de receber do poeta essa atenção incomum. E olhou-me deslizante, sem muito breque nas rodas.

- Se você conseguir, nem sei o que te dou!

Jurei a ela de olhos fechados que conseguiria o soneto. E vislumbrei aí a oportunidade de provocar a tão almejada colisão.

- Ah, nem sei o que te dou!

“Mas eu sei...” – Pensei.

Passei a ver várias formas poéticas semelhantes, para observar a métrica dos versos e a disposição das rimas. Enfim, compus o meu soneto de Vinícius de Moraes. Desenhei sua assinatura idêntica, pois eu a possuia em três escritos que ele me enviara durante os anos de nosso conhecimento.

Ao ler o soneto, Rosa Maria não cabia em si. Tirou da bolsa um guardanapo no qual Vinícius lhe dedicara uns versos. A assinatura era a mesma!

-Ai, nem sei o que te dou! – abraçava-me ela.

E naquele cruzamento, perdemos a direção. Colidimos na curva, antes da ponte. E derrapamos, capotamos, rolamos ribanceiras. Depois, por entre as ferragens,contei-lhe a verdade. E ainda hoje, não sei não, mas Rosa Maria duvida um pouco não ter sido Vinícius o autor daqueles versos.

De tudo isso, namorada, ficou-me a conclusão de que fazer sonetos é tarefa exclusiva dos poetas maiores.


João Carlos Pecci

domingo, 9 de março de 2008

Me alugo para sonhar

Às nove, enquanto tomávamos o café da manhã no terraço do Habana Riviera, um tremendo golpe de mar em pleno sol levantou vários automóveis que passavam pela avenida à beira-mar, ou que estavam estacionados na calçada, e um deles ficou incrustado num flanco do hotel. Foi como uma explosão de dinamite que semeou pânico nos vinte andares do edifício e fez virar pó a vidraça do vestíbulo. Os numerosos turistas que se encontravam na sala de espera foram lançados pelos ares junto com os móveis, e alguns ficaram feridos pelo granizo de vidro. Deve ter sido uma vassourada colossal do mar, pois entre a muralha da avenida à beira-mar e o hotel há uma ampla avenida de ida e volta, de maneira que a onda saltou por cima dela e ainda teve força suficiente para esmigalhar a vidraça.

Os alegres voluntários cubanos, com a ajuda dos bombeiros, recolheram os destroços em menos de seis horas, trancaram a porta que dava para o mar e habilitaram outra, e tudo tornou a ficar em ordem. Pela manhã, ninguém ainda havia cuidado do automóvel pregado no muro, pois pensava-se que era um dos estacionados na calçada. Mas quando o reboque tirou-o da parede descobriram o cadáver de uma mulher preso no assento do motorista pelo cinto de segurança. O golpe foi tão brutal que não sobrou nenhum osso inteiro. Tinha o rosto desfigurado, os sapatos descosturados e a roupa em farrapos, e um anel de ouro em forma de serpente com olhos de esmeraldas. A polícia afirmou que era a governanta dos novos embaixadores de Portugal. Assim era: tinha chegado com eles a Havana quinze dias antes, e havia saído naquela manhã para fazer compras dirigindo um automóvel novo. Seu nome não me disse nada quando li a notícia nos jornais, mas fiquei intrigado por causa do anel em forma de serpente e com olhos de esmeraldas. Não consegui saber, porém, em que dedo o usava.

Era um detalhe decisivo, porque temi que fosse uma mulher inesquecível cujo verdadeiro nome não soube jamais, que usava um anel igual no indicador direito, o que era mais insólito ainda naquele tempo. Eu a havia conhecido 34 anos antes em Viena, comendo salsichas com batatas cozidas e bebendo cerveja de barril numa taberna de estudantes latinos. Eu havia chegado de Roma naquela manhã, e ainda recordo minha impressão imediata por seu imenso peito de soprano, suas lânguidas caudas de raposa na gola do casaco e aquele anel egípcio em forma de serpente. Achei que era a única austríaca ao longo daquela mesona de madeira, pelo castelhano primário que falava sem respirar com sotaque de bazar de quinquilharia. Mas não, havia nascido na Colômbia e tinha ido para a Áustria entre as duas guerras, quase menina, estudar música e canto. Naquele momento andava pelos trinta anos mal vividos, pois nunca deve ter sido bela e havia começado a envelhecer antes do tempo. Em compensação, era um ser humano encantador. E também um dos mais temíveis.

Viena ainda era uma antiga cidade imperial, cuja posição geográfica entre os dois mundos irreconciliáveis deixados pela Segunda Guerra Mundial havia terminado de convertê-la num paraíso do mercado negro e da espionagem mundial. Eu não teria conseguido imaginar um ambiente mais adequado para aquela compatriota fugitiva que continuava comendo na taberna de estudantes da esquina por pura fidelidade às suas origens, pois tinha recursos de sobra para comprá-la à vista, com clientela e tudo. Nunca disse o seu verdadeiro nome, pois sempre a conhecemos com o trava-língua germânico que os estudantes latinos de Viena inventaram para ela: Frau Frida. Eu tinha acabado de ser apresentado a ela quando cometi a impertinência feliz de perguntar como havia feito para implantar-se de tal modo naquele mundo tão distante e diferente de seus penhascos de ventos do Quindío, e ela me respondeu de chofre:

— Eu me alugo para sonhar.

Na realidade, era seu único ofício. Havia sido a terceira dos onze filhos de um próspero comerciante da antiga Caldas, e desde que aprendeu a falar instalou na casa o bom costume de contar os sonhos em jejum, que é a hora em que se conservam mais puras suas virtudes premonitórias. Aos sete anos sonhou que um de seus irmãos era arrastado por uma correnteza. A mãe, por pura superstição religiosa, proibiu o menino de fazer aquilo que ele mais gostava, tomar banho no riacho. Mas Frau Frida já tinha um sistema próprio de vaticínios.

— O que esse sonho significa — disse — não é que ele vai se afogar, mas que não deve comer doces.

A interpretação parecia uma infâmia, quando era relacionada a um menino de cinco anos que não podia viver sem suas guloseimas dominicais. A mãe, já convencida das virtudes adivinhatórias da filha, fez a advertência ser respeitada com mão de ferro. Mas ao seu primeiro descuido o menino engasgou com uma bolinha de caramelo que comia escondido, e não foi possível salvá-lo.

Frau Frida não havia pensado que aquela faculdade pudesse ser um ofício, até que a vida agarrou-a pelo pescoço nos cruéis invernos de Viena. Então, bateu para pedir emprego na primeira casa onde achou que viveria com prazer, e quando lhe perguntaram o que sabia fazer, ela disse apenas a verdade: "Sonho". Só precisou de uma breve explicação à dona da casa para ser aceita, com um salário que dava para as despesas miúdas, mas com um bom quarto e três refeições por dia. Principalmente o café da manhã, que era o momento em que a família sentava-se para conhecer o destino imediato de cada um de seus membros: o pai, que era um financista refinado; a mãe, uma mulher alegre e apaixonada por música romântica de câmara9 e duas crianças de onze e nove anos. Todos eram religiosos, e portanto propensos às superstições arcaicas, e receberam maravilhados Frau Frida com o compromisso único de decifrar o destino diário da família através dos sonhos.

Fez isso bem e por muito tempo, principalmente nos anos da guerra, quando a realidade foi mais sinistra que os pesadelos. Só ela podia decidir na hora do café da manhã o que cada um deveria fazer naquele dia, e como deveria fazê-lo, até que seus prognósticos acabaram sendo a única autoridade na casa. Seu domínio sobre a família foi absoluto: até mesmo o suspiro mais tênue dependia da sua ordem. Naqueles dias em que estive em Viena o dono da casa havia acabado de morrer, e tivera a elegância de legar a ela uma parte de suas rendas, com a única condição de que continuasse sonhando para a família até o fim de seus sonhos.

Fiquei em Viena mais de um mês, compartilhando os apertos dos estudantes, enquanto esperava um dinheiro que não chegou nunca. As visitas imprevistas e generosas de Frau Frida na taberna eram então como festas em nosso regime de penúrias. Numa daquelas noites, na euforia da cerveja, sussurrou ao meu ouvido com uma convicção que não permitia nenhuma perda de tempo.

— Vim só para te dizer que ontem à noite sonhei com você — disse ela. — Você tem que ir embora já e não voltar a Viena nos próximos cinco anos.

Sua convicção era tão real que naquela mesma noite ela me embarcou no último trem para Roma. Eu fiquei tão sugestionado que desde então me considerei sobrevivente de um desastre que nunca conheci. Ainda não voltei a Viena.

Antes do desastre de Havana havia visto Frau Frida em Barcelona, de maneira tão inesperada e casual que me pareceu misteriosa. Foi no dia em que Pablo Neruda pisou terra espanhola pela primeira vez desde a Guerra Civil, na escala de uma lenta viagem pelo mar até Valparaíso. Passou conosco uma manhã de caça nas livrarias de livros usados, e na Porter comprou um livro antigo, desencadernado e murcho, pelo qual pagou o que seria seu salário de dois meses no consulado de Rangum. Movia-se através das pessoas como um elefante inválido, com um interesse infantil pelo mecanismo interno de cada coisa, pois o mundo parecia, para ele, um imenso brinquedo de corda com o qual se inventava a vida.

Não conheci ninguém mais parecido à idéia que a gente tem de um papa renascentista: glutão e refinado. Mesmo contra a sua vontade, sempre presidia a mesa. Matilde, sua esposa, punha nele um babador que mais parecia de barbearia que de restaurante, mas era a única maneira de impedir que se banhasse nos molhos. Aquele dia, no Carvalleiras foi exemplar. Comeu três lagostas inteiras, esquartejando-as com mestria de cirurgião, e ao mesmo tempo devorava com os olhos os pratos de todos, e ia provando um pouco de cada um, com um deleite que contagiava o desejo de comer: as amêijoas da Galícia, os perceves do Cantábrico, os lagostins de Alicante, as espardenyas da Costa Brava. Enquanto isso, como os franceses, só falava de outras delícias da cozinha, e em especial dos mariscos pré-históricos do Chile que levava no coração. De repente parou de comer, afinou suas antenas de siri, e me disse em voz muito baixa:

— Tem alguém atrás de mim que não pára de me olhar.

Espiei por cima de seu ombro, e era verdade. Às suas costas, três mesas atrás, uma mulher impávida com um antiquado chapéu de feltro e um cachecol roxo, mastigava devagar com os olhos fixos nele. Eu a reconheci no ato. Estava envelhecida e gorda, mas era ela, com o anel de serpente no dedo indicador.

Viajava de Nápoles no mesmo barco que o casal Neruda, mas não tinham se visto a bordo. Convidamos para mulher a tomar café em nossa mesa, e a induzi a falar de seus sonhos para surpreender o poeta. Ele não deu confiança, pois insistiu desde o princípio que não acreditava em adivinhações de sonhos.

— Só a poesia é clarividente — disse.

Depois do almoço, no inevitável passeio pelas Ramblas, fiquei para trás de propósito, com Frau Frida, para poder refrescar nossas lembranças sem ouvidos alheios. Ela me contou que havia vendido suas propriedades na Áustria, e vivia aposentada no Porto, Portugal, numa casa que descreveu como sendo um castelo falso sobre uma colina de onde se via todo o oceano até as Américas. Mesmo sem que ela tenha dito, em sua conversa ficava claro que de sonho em sonho havia terminado por se apoderar da fortuna de seus inefáveis patrões de Viena. Não me impressionou, porém, pois sempre havia pensado que seus sonhos não eram nada além de uma artimanha para viver. E disse isso a ela.

Frau Frida soltou uma gargalhada irresistível. "Você continua o atrevido de sempre", disse. E não falou mais, porque o resto do grupo havia parado para esperar que Neruda acabasse de conversar em gíria chilena com os papagaios da Rambla dos Pássaros. Quando retomamos a conversa, Frau Frida havia mudado de assunto.

— Aliás — disse ela —, você já pode voltar para Viena.

Só então percebi que treze anos haviam transcorrido desde que nos conhecemos.

— Mesmo que seus sonhos sejam falsos, jamais voltarei — disse a ela. — Por via das dúvidas.

Às três, nos separamos dela para acompanhar Neruda à sua sesta sagrada. Foi feita em nossa casa, depois de uns preparativos solenes que de certa forma recordavam a cerimônia do chá no Japão. Era preciso abrir umas janelas e fechar outras para que houvesse o grau de calor exato e uma certa classe de luz em certa direção, e um silêncio absoluto. Neruda dormiu no ato, e despertou dez minutos depois, como as crianças, quando menos esperávamos. Apareceu na sala restaurado e com o monograma do travesseiro impresso na face.

— Sonhei com essa mulher que sonha — disse.

Matilde quis que ele contasse o sonho.

— Sonhei que ela estava sonhando comigo disse ele.

— Isso é coisa de Borges — comentei.

Ele me olhou desencantado.

— Está escrito?

— Se não estiver, ele vai escrever algum dia — respondi. — Será um de seus labirintos.

Assim que subiu a bordo, às seis da tarde, Neruda despediu-se de nós, sentou-se em uma mesa afastada, e começou a escrever versos fluidos com a caneta de tinta verde com que desenhava flores e peixes e pássaros nas dedicatórias de seus livros. À primeira advertência do navio buscamos Frau Frida, e enfim a encontramos no convés de turistas quando já íamos embora sem nos despedir. Também ela acabava de despertar da sesta.

— Sonhei com o poeta — nos disse.

Assombrado, pedi que me contasse o sonho.

— Sonhei que ele estava sonhando comigo disse, e minha cara de assombro a espantou.

— O que você quer? Às vezes, entre tantos sonhos, infiltra-se algum que não tem nada a ver com a vida real.

Não tornei a vê-la nem a me perguntar por ela até que soube do anel em forma de cobra da mulher que morreu no naufrágio do Hotel Riviera. Portanto não resisti à tentação de fazer algumas perguntas ao embaixador português quando coincidimos, meses depois, em uma recepção diplomática. O embaixador me falou dela com um grande entusiasmo e uma enorme admiração. "O senhor não imagina como ela era extraordinária", me disse. "O senhor não resistiria à tentação de escrever um conto sobre ela". E prosseguiu no mesmo tom, com detalhes surpreendentes, mas sem uma pista que me permitisse uma conclusão final.

— Em termos concretos — perguntei no fim —, o que ela fazia?

— Nada — respondeu ele, com certo desencanto. — Sonhava.

Gabriel García Márquez