domingo, 3 de fevereiro de 2013

O troco na padaria e a autovalorização do homem

Pelo tom monótono da voz como de quem sobe uma escada a passos confusos, um de esforço, outro de preguiça, ela parecia ter fumado alguma coisa cujo efeito é amolecer as palavras como bolacha no leite, como casca de ferida na água. Talvez fossem só comprimidos para dormir expandindo seus efeitos no final da manhã no balcão da padaria. As palavras eram camelos desorientados derrubando, a grandes pisadas, mesas e cadeiras ou açucareiros em cujo fundo se percebia, com um mínimo de atenção, uma camada de ácido. Assim como uma migalha de pão não mata a fome, antes a intensifica, um resto de comprimido não faz dormir, antes deflagra um sono impossível. Um cachorro pequeno, parecendo morto dentro da bolsa na cadeira ao lado dessa mulher de voz malemolente, doce e ácida, devia ter comido a maior parte.
 
Assim, parecendo cansada, a mulher media palavras, ou melhor, as arrastava como pés de morta, sacolas de um mendigo, a ponto de quem ouvia poder anotar cada frase proferida no tempo de crescer uma planta. Junto dela havia além do cão talvez morto, um homem que a ouvia. Não saberemos se irmão, marido ou se mero servo. Servo, essa palavra é boa para esta crônica e por isso, vamos mantê-la. Suspeitaremos que fosse assim um servo, mas também um gigolô, pois que ainda existem, e tornam as histórias sempre muito mais interessantes.
 
— O dinheiro é meu — ela falou.
 
É preciso saber que não disse simplesmente, assim como quando aqui de fora lemos a frase “o dinheiro é meu” com a objetividade das sílabas ditas em sequência direta. Pronunciou a informação de um modo um pouco complicado. Algo como “uooo dinheeeeeiro ééé meeeeuuoo”, ondulando as palavras até fazer de cada uma, uma montanha intransponível. E dando a esta crônica limites sonoros que fazem sua autora preocupar-se com o que pode realmente transmitir aos leitores.
 
Fazendo transitar as frases no alto mar da ressaca, ela continuou no tom que doravante exige a imaginação do leitor e sua inteira paciência para encompridar a frase, alcançando assim o tom do tempo espichado:
 
— Eu não vou perder dinheiro. Não me interessa perder nem um centavo do que tenho. Nada, entendeu? Não me interessa nem um pouco ganhar menos do que tenho. — Era o que ela dizia repetindo-se como que para certificar aos outros e a si mesma de que estava certa.
 
O homem que não saberemos se era marido, irmão ou um mero servo, insinuou dizer alguma coisa.
 
— Bebê, quem está falando sou eu — ela falou, abrindo ainda mais o pano negro da lentidão, efeito do sono inconquistado com que cobria até agora o seu parceiro no tardio café da manhã.
 
— Preste muita atenção no que eu digo — continuou enquanto ele permanecia calado. — Você poderia esperar eu terminar de dizer o que tenho a dizer? Eu tenho várias coisas a dizer. Poderia, ou não poderia dizer estas coisas todas? São urgentes. São coisas seríssimas. Você está precisando ouvir? — Falava entre pausas como água que escorre — impotável, diga-se de passagem — de uma torneira impossível de estancar.
 
Ele ouvia ainda mais calado.
 
— A conta é minha. E sempre foi minha. Vai continuar sendo minha e de mais ninguém. Somente minha. Minha, entendeu? O dinheiro é meu, entendeu? Antes era meu e agora continua sendo meu. Quer dizer, era da minha família. Mas isso é a mesma coisa que meu. Da família onde eu nasci. E vai continuar sendo. E não vamos mais falar sobre isso porque eu não quero mais falar nesse assunto. E quando eu não gosto de um assunto, não se fala sobre ele, entendeu?
 
Ele permanecia calado. Ela falava entre ondulações e pausas. Foi assim que chamou o garçom, que se aproximou esperto e ágil contradizendo o tom vagaroso da cena.
 
— Quanto custa o pão com manteiga? — ela perguntou.
 
O garçom respondeu objetivamente.
 
— E sem manteiga? — continuou.
 
— Vinte centavos a menos.
 
— E com requeijão?
 
— Noventa centavos a mais.
 
— E o café com leite?
 
— O mesmo que o pão — ele disse.
 
— E o café, só o café, sem o leite?
 
O garçom respondeu tudo com a objetividade desejável a um profissional da área enquanto ela se decidia.
 
— Me traz um copo de água e meio pão. O pão sem manteiga.
 
Parece mentira, mas foi assim mesmo. O garçom trouxe rapidamente o pedido. A mulher olhou e não comeu. O homem pagou a conta sem tomar sequer um café. Ouvimos que dissesse: “Vou aprender a valorizar o que faço”. Não pudemos ver com nitidez seu rosto. Especulamos de onde ouvíamos a conversa sobre os motivos de sua frase que, como uma moeda de troco, caiu da mesa e rolou até a sarjeta perdendo-se entre as pedras.
 
Mais tarde, a mesma mulher lenta saía do xópim usando uma bengala, embora fosse bem jovem. Lenta como só ela, o rosto oculto entre vasta cabeleira, parecia bonita e estava em silêncio. O homem, irmão, marido ou empregado, carregava a bolsa com o cachorro e várias sacolas de lojas de roupas, sapatos e perfumes. Em torno, uma sensação de fim da história.
 
O cronista é um observador da vida. Sua tarefa histórica e social é capturar o nonsense diário trazendo-o à visão das gentes. Por isso, ele deve preferir a banalidade crônica do cotidiano aos feitos espetaculares que cabem hoje em dia à notícia jornalística. Só assim ele e seu leitor conseguirão descobrir que o troco da padaria equivale à autovalorização do homem.
 
 
Marcia Tiburi