terça-feira, 31 de dezembro de 2013

No ano passado

Já repararam como é bom dizer "o ano passado"? É como quem já tivesse atravessado um rio, deixando tudo na outra margem...Tudo sim, tudo mesmo! Porque, embora nesse "tudo" se incluam algumas ilusões, a alma está leve, livre, numa extraodinária sensação de alívio, como só se poderiam sentir as almas desencarnadas. Mas no ano passado, como eu ia dizendo, ou mais precisamente, no último dia do ano passado deparei com um despacho da Associeted Press em que, depois de anunciado como se comemoraria nos diversos países da Europa a chegada do Ano Novo, informava-se o seguinte, que bem merece um parágrafo à parte:

"Na Itália, quando soarem os sinos à meia-noite, todo mundo atirará pelas janelas as panelas velhas e os vasos rachados".

Ótimo! O meu ímpeto, modesto mas sincero, foi atirar-me eu próprio pela janela, tendo apenas no bolso, à guisa de explicação para as autoridades, um recorte do referido despacho. Mas seria levar muito longe uma simples metáfora, aliás praticamente irrealizável, porque resido num andar térreo. E, por outro lado, metáforas a gente não faz para a Polícia, que só quer saber de coisas concretas. Metáforas são para aproveitar em versos...

Atirei-me, pois, metaforicamente, pela janela do tricentésimo-sexagésimo-quinto andar do ano passado.


Morri? Não. Ressuscitei. Que isto da passagem de um ano para outro é um corriqueiro fenômeno de morte e ressurreição - morte do ano velho e sua ressurreição como ano novo, morte da nossa vida velha para uma vida nova.


terça-feira, 24 de dezembro de 2013

A última noite de natal

Os grandes olhos claros e aguados boiavam na sombra nevoenta, cheios de espanto. Esfregou-os, arrastou-se pesado e entanguido, mal seguro à bengala,sentou-se num banco do jardim, fatigado, suspirando, examinou a custo os arredores. Gastou uns minutos passeando as mãos desajeitadas na gola do casaco. 0 exercício penoso enfureceu-o. Resmungou palavras enérgicas e incompreensíveis, esforçou-se por dominar a tremura. Com certeza era por causa do frio que os dedos caprichosos divagavam no pano esgarçado e os queixos banguelos se moviam continuamente. Era por causa do frio, sem dúvida. Se conseguisse abotoar o casaco e levantar a gola, os movimentos incômodos cessariam.

Em que estava pensando ao chegar ali? Ia jurar que pensava em coisas agradáveis. Ou seriam desagradáveis? Pedaços de recordações incoerentes dançavam-lhe no espírito, acendiam-se, apagavam-se, como vaga-lumes, confundiam-se com os letreiros verdes, vermelhos, que se acendiam e apagavam também quase invisíveis na poeira nebulosa. Tentou reunir as letras, fixar a atenção nas mais próximas, brilhantes, enormes.

A igreja toda aberta resplandecia. O incenso formava uma neblina perturbadora. E, através dela, os altares refugiam como sóis, a luz das velas numerosas chispava nas auréolas dos santos.

Que doidice ! Não é que estava imaginando ver ali, nas transitórias claridades, a igreja vista sessenta anos antes? Tresvariava. Sacudiu a cabeça, afastou a lembrança importuna. De que servia desenterrar casos antigos, alegrias e sofrimentos incompletos?

O que devia fazer... Pôs-se a mexer os beiços, procurando nas trevas úmidas e leitosas que o envolviam o resto da frase. O que devia fazer... Repetiu isto muitas vezes, numa cantilena, distraiu-se olhando a chuva amarela, verde, vermelha, dos repuxos. Impossível distinguir as cores. Ultimamente a cidade ia escurecendo. As pessoas que transitavam junto aos canteiros sem flores eram vultos indecisos; .os prédios se diluíam nas ramagens das árvores, manchas negras; os letreiros vacilantes não tinham sentido.

O que devia fazer... De repente a idéia rebelde surgiu. Bem. Devia meter os botões nas casas e agasalhar o pescoço. Depois cruzaria os braços, aqueceria as mãos debaixo dos sovacos, ficaria imóvel e tranqüilo. Mas os dedos finos e engelhados avançavam, recuavam, não havia meio de governá-los. Se pudesse riscar um fósforo, chegá-lo a um cigarro, esqueceria os inconvenientes que o aperreavam: o frio, a dureza das juntas, o tremor, a zoeira constante, sussurro de maribondos assanhados. Dores errantes andavam-lhe no corpo, entravam nos ossos e vinham à pele, arrepiavam os cabelos, fixavam-se nas pernas, esmoreciam.

Agora não estava no banco do jardim, perto das estátuas, das árvores, do coreto, dos esguichos coloridos. Estava longe, a sessenta anos de distância, ajoelhado na grama, diante da igreja da vila. Os rostos embotados, que se dissociavam, juntaram-se no largo onde um padre velho dizia a missa da meia-noite. Fervilhavam matutos em redor das barracas, num barulho de feira, e uma sineta badalava impondo em vão respeito e silêncio. Os cavalinhos rodavam. Esgueiravam-se casais pelos cantos. O padre velho dirigia olhares fulminantes àquela cambada de hereges. Uma figura pequenina cantava os hinos ingênuos, de versos curtos, fáceis. Tudo parecera de chofre muito sério, eterno. Os hinos capengas elevavam-se, estiravam-se. A mulher tinha um rosto de santa e exigia adoração. Sessenta anos. As fachadas enfeitavam-se com lanternas de papel, janelas escancaradas exibiam presépios, listas de foguetes cortavam o céu negro. A sineta badalava, zangada. E o burburinho da multidão não diminuía.

Sessenta anos. Da cinza que ocultava os olhos frios saltou uma faísca; os alfinetes pregados na carne trêmula embotaram-se; o espinhaço curvo endireitou-se; um débil sorriso franziu os beiços murchos; os braços ergueram-se lentos, buscando a imagem de sonho.

Imagem de sonho, que doidice! Era apenas uma bonita criatura de bom coração. Ligara-se a ela. E dezenas de vezes tinham-se os dois ajoelhado ali na grama, olhando as lanternas, os presépios, os foguetes, o padre que dizia a missa da meia-noite. Algumas esperanças, muitos desgostos. Os meninos cresciam, engordavam. E no jardim da casa miúda um jasmineiro recendia.

Depois tudo fora decaindo, minguando, morrendo. Achara-se novamente só. Os filhos e os netos se haviam espalhado pelo mundo. Agora... Que extensa caminhada, que enormes ladeiras, pai do céu ! Já nem se lembrava dos lugares percorridos.

Conseguiu abotoar o casaco e levantar a gola.

Andar tanto e afinal chegar ali, arriar num banco, não perceber as letras que se acendiam . e apagavam.

Certamente àquela hora, diante duma igreja aberta, outro homem novo admirava outra pessoinha ajoelhada, sentia desejos imensos, formava planos absurdos. Os desejos e os planos iam desfazer-se como a. fumaça luminosa dos repuxos.

 
Graciliano Ramos
(20 de dezembro de 1941).

Texto extraído do livro “Linhas Tortas”, Editora Record – Rio de Janeiro, 1983, pág. 222.

sábado, 2 de novembro de 2013

Aprendendo a viver

Thoreau era um filósofo americano que, entre coisas mais difíceis de se assimilar assim de repente, numa leitura de jornal, escreveu muitas coisas que talvez possam nos ajudar a viver de um modo mais inteligente, mais eficaz, mais bonito, menos angustiado.
 
Thoreau, por exemplo, desolava-se vendo seus vizinhos só pouparem e economizarem para um futuro longínquo. Que se pensasse um pouco no futuro, estava certo. Mas «melhore o momento presente», exclamava. E acrescentava: «Estamos vivos agora.» E comentava com desgosto: «Eles ficam juntando tesouros que as traças e a ferrugem irão roer e os ladrões roubar.»

A mensagem é clara: não sacrifique o dia de hoje pelo de amanhã. Se você se sente infeliz agora, tome alguma providência agora, pois só na sequência dos agoras é que você existe.

Cada um de nós, aliás, fazendo um exame de consciência, lembra-se pelo menos de vários agoras que foram perdidos e que não voltarão mais. Há momentos na vida que o arrependimento de não ter tido ou não ter sido ou não ter resolvido ou não ter aceito, há momentos na vida em que o arrependimento é profundo como uma dor profunda.


Ele queria que fizéssemos agora o que queremos fazer. A vida inteira Thoreau pregou e praticou a necessidade de fazer agora o que é mais importante para cada um de nós.


Por exemplo: para os jovens que queriam tornar-se escritores mas que contemporizavam — ou esperando uma inspiração ou se dizendo que não tinham tempo por causa de estudos ou trabalhos — ele mandava ir agora para o quarto e começar a escrever.


Impacientava-se também com os que gastam tanto tempo estudando a vida que nunca chegam a viver. «É só quando esquecemos todos os nossos conhecimentos que começamos a saber.» E dizia esta coisa forte que nos enche de coragem: «Por que não deixamos penetrar a torrente, abrimos os portões e pomos em movimento toda a nossa engrenagem?» Só em pensar em seguir o seu conselho, sinto uma corrente de vitalidade percorrer-me o sangue. Agora, meus amigos, está sendo neste próprio instante.

Thoreau achava que o medo era a causa da ruína dos nossos momentos presentes. E também as assustadoras opiniões que nós temos de nós mesmos. Dizia ele: «A opinião pública é uma tirana débil, se comparada à opinião que temos de nós mesmos.» É verdade: mesmo as pessoas cheias de segurança aparente julgam-se tão mal que no fundo estão alarmadas. E isso, na opinião de Thoreau, é grave, pois «o que um homem pensa a respeito de si mesmo determina, ou melhor, revela seu destino».

E, por mais inesperado que isso seja, ele dizia: tenha pena de si mesmo. Isso quando se levava uma vida de desespero passivo. Ele então aconselhava um pouco menos de dureza para com eles próprios. O medo faz, segundo ele, ter-se uma covardia desnecessária. Nesse caso devia-se abrandar o julgamento de si próprio. «Creio», escreveu, «que podemos confiar em nós mesmos muito mais do que confiamos. A natureza adapta-se tão bem à nossa fraqueza quanto à nossa força.» E repetia mil vezes aos que complicavam inutilmente as coisas — e quem de nós não faz isso? —, como eu ia dizendo, ele quase gritava com quem complicava as coisas: simplifique! simplifique!



Clarice Lispector, in Crónicas no 'Jornal do Brasil (1968)'

sábado, 14 de setembro de 2013

Sabores

Nunca me esqueci da tarde em que, voltando da escola acompanhado pela empregada lá de casa... bem, naquele tempo politicamente incorreto, a gente chamava de “empregada”. Eu sei que, hoje, costuma-se chamar de funcionária, secretária, ajudante, amiga, auxiliar... Mas, como estou falando de antigamente, manterei o termo da ocasião. Pois voltava da escola com a empregada, ela entrou numa padaria para comprar leite e me perguntou: “Quer um sonho?”

Sonhos não se recusam. Mas também não são oferecidos. Estranhei. Ela insistiu e me apontou o sonho a que se referia. Vi, pela primeira vez na vida, aquele doce, em forma de almofada, soltando creme para todos os lados. Aceitei e, na primeira mordida, percebi que tinha um sabor que eu nunca havia experimentado. E era delicioso. Foi dos melhores prazeres gastronômicos a que já tive acesso. Até hoje procuro pelo sonho de padaria perfeito. Mas nunca mais o encontrei.

Nas férias de verão, sempre passadas no Rio, meu irmão costumava me levar para jantar na casa da tia Maria Caldas. Tia Maria Caldas _ ela sempre foi chamada assim, com nome e sobrenome _ era a solteirona da família. Morou a vida inteira num conjugado na Avenida Copacabana. Tinha cozinha mínima. Mas aparentava gostar de cozinhar para meu irmão e eu. Num desses jantares, não me lembro do prato principal, mas lembro-me muito bem de um dos acompanhamentos: ovos mexidos. Ovo não era um alimento muito popular lá em casa. Não era inteiramente rejeitado, como a cebola e o alho, que nunca fizeram parte do cardápio. Mas era ocasional. E em outras formas, como a do ovo cozido ou a do ovo frito. Mexidos, eu nunca tinha visto. Eu não gostava muito de ovos, por isso fiz cara feia quando a tia Maria Caldas estava preparando aqueles. Mas, desde a primeira garfada, foi amor à primeira vista. Tento repetir aquela experiência. Faço ovos com bacon, com presunto, com ervas, ponho leite para ficarem macios, ponho água para ficarem mais leves... Mas nunca mais comi ovos mexidos tão gostosos quanto os da tia Maria Caldas.

Minha primeiríssima viagem internacional foi a Buenos Aires. Ainda era universitário, tempos de dureza, e, na Argentina, me submeti a uma dieta de massas num dos restaurantes mais populares da cidade, o baratíssimo Pippo. Mas uma noite, eu e o grupo que me acompanhava cometemos uma extravagância e fomos jantar num restaurante que tinham me recomendado: El Palacio de La Papas Fritas. Na verdade, assim como o Pipo, o El Palacio era uma rede de restaurantes. Também era popular, mas com um cardápio com preços um pouco acima do outro. E usava toalhas de mesa, diferentemente do Pipo que preferia cobrir as mesas com papel de pão. A ideia era comer carne, mas o que me surpreendeu foi o acompanhamento, as tais papas fritas. Em forma de pequenas almofadas _ devo ter alguma obsessão gastronômica por almofadas _, as batatas, fritas no ponto exato, estouravam na boca espalhando seu sabor. Voltei muitas vezes a Buenos Aires. Nunca deixei de ir ao El Palacio em busca daquele gosto. Mas nunca mais o encontrei.

Resumo da ópera: os melhores sabores são os da primeira vez.

 
Arthur Xexéo (O Globo)

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Crônica, um gênero brasileiro

Nas fronteiras longínquas da literatura, ali onde os gêneros se esfumam, as certezas vacilam e os cânones se esfarelam, resiste a crônica. Nem todos os escritores se arriscam a experimentá-la, e os que o fazem se expõem, muitas vezes, a uma difusa desconfiança. Para os puristas, a crônica é um "gênero menor". Para outros, ainda mais desconfiados, não é literatura, é jornalismo – o que significa dizer, simples registro documental. Alguns acreditam que ela seja um gênero de circunstância, datado – oportunista. Não é fácil praticar a crônica.

Definida pelo dicionário como "narração histórica, ou registro de fatos comuns", a crônica ocupa um espaço fronteiriço, entre a grandeza da história e a leveza atribuída à vida cotidiana. Posição instável, e nem um pouco cômoda, em que a segurança oferecida pelos gêneros literários já não funciona. Lugar para quem prefere se arriscar, em vez de repetir. A crônica confunde porque está onde não devia estar: nos jornais, nas revistas e até na televisão – e nem sempre nos livros. Literatura ou jornalismo? Invenção, ou uma simples (e literal) fotografia da existência? Coisa séria, ou puro entretenimento?

Supõe-se, em geral, que os cronistas digam a verdade – seja o que se entenda por verdade. Não só porque crônicas são publicadas na imprensa, lugar dos fatos, das notícias e da matéria bruta, mas também porque elas costumam ser narradas na primeira pessoa, e o Eu sempre evoca a idéia de confissão. E ainda porque vêm adornadas, com freqüência, pela fotografia (verdadeira!) de seu autor.

Então, se o cronista diz que foi à padaria, ou que esteve em uma festa, aquilo deve, de fato, ter acontecido, o leitor se apressa a concluir. É uma suposição antiga, que vem dos tempos do Descobrimento, quando os cronistas foram aqueles que primeiro transformaram em palavras a visão do Novo Mundo. Cronistas eram, então, missivistas empenhados em dizer a verdade, retratistas do real.

Contudo, e esse é seu grande problema, mas também sua grande riqueza, a crônica é um gênero literário. Não é ficção, não é poesia, não é crítica, e nem ensaio, ou teoria – é crônica. As crônicas históricas do passado, relatos de viajantes e de aventureiros, pretendiam ser apenas um "relato de viagem". Aproximavam-se, assim, do inventário, do registro histórico e do retrato pessoal, e ainda da correspondência. Essas narrativas estavam mais ligadas à história que à literatura. Tinham, antes de tudo, um caráter utilitário, pragmático: serviam para transmitir aquilo que se viu.

No século XIX, com a sofisticação dos estudos históricos, e também com a expansão da imprensa, a crônica se afastou do registro factual e se aproximou da literatura e da invenção. Nossos primeiros grandes cronistas – Alencar, Machado, Bilac, João do Rio – foram, antes de tudo, grandes escritores. Eles descobriram na crônica o frescor do impreciso e o valor do transitório. E a praticaram com regularidade e empenho.

Gênero brasileiro
Mas foi ao longo do século XX que a crônica se firmou entre nós, assumindo posturas e feições realmente próprias. É no século XX que ela se torna – nas mãos de cronistas geniais como Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Carlos Oliveira, Sérgio Porto, Rachel de Queiroz, Fernando Sabino, Henrique Pongetti – um gênero brasileiro. Ou, dizendo melhor: que ela se adapta e se expande no cenário da literatura brasileira.

Isso não fala, contudo, nem de uma identidade, nem de um modelo. Ao contrário: o que marca a crônica brasileira é que, em nossa literatura, ela se torna um espaço de liberdade. Qual escritor brasileiro, no século XX, teve o espírito mais livre que Rubem Braga? Quem mais, desprezando as normas e pompas literárias, e com forte desapego aos cânones e aos gêneros, apostou tudo na crônica – vista como um gênero capaz de jogar de volta a literatura no mundo?

A grande novidade da crônica que se firmou ao longo do século XX no Brasil é exatamente esta: sua radical liberdade. Embora abrigada nos grandes jornais e depois reunida em livros, ela já não tem compromisso com mais nada: nem com a verdade dos fatos, que baliza o jornalismo, nem com império da imaginação, que define a literatura. A crônica traz de volta à cena literária o gratuito e o impulsivo. O cronista não precisa brilhar, não precisa se ultrapassar, não precisa surpreender, ou chocar; ele deseja, apenas, a leveza da escrita.

Gênero anfíbio, a crônica concede ao escritor a mais atordoante das liberdades: a de recomeçar do zero. Quando escreve uma crônica, o escritor pode ser ligeiro, pode ser informal, pode dispensar a originalidade, desprezar a busca de uma marca pessoal – pode tudo. Na crônica, ainda mais que na ficção, o escritor não tem compromissos com ninguém. Isso parece fácil, mas é freqüentemente assustador.

Pode falar de si, relatar fatos que realmente viveu, fazer exercícios de memória, confessar-se, desabafar. Mas pode (e deve) também mentir, falsificar, imaginar, acrescentar, censurar, distorcer. A novidade não está nem no apego à verdade, nem na escolha da imaginação: mas no fato de que o cronista manipula as duas coisas ao mesmo tempo – e sem explicar ao leitor, jamais, em qual das duas posições se encontra. O cronista é um agente duplo: trabalha, ao mesmo tempo, para os dois lados e nunca se pode dizer, com segurança, de que lado ele está.

Na verdade, ele não está em nenhuma das duas posições, nem na da verdade, nem na da imaginação – mas está "entre" elas. Ocupa uma posição limítrofe – e é por isso que o cronista inspira, em geral, muitas suspeitas. Os jornalistas o vêem como leviano, mentiroso, apressado, irresponsável. Os escritores acreditam que é preguiçoso, interesseiro, precipitado, imprudente, venal até. E o cronista tem que se ver, sempre, com essas duas restrições. Uns o tomam como uma ameaça à limpidez dos fatos e ao apego à verdade que norteiam, por princípio, o trabalho jornalístico. Outros, por seus compromissos com os fatos e com as miudezas do cotidiano, como um perigo para a liberdade e o assombro que definem a literatura.

E assim fica o cronista, um cigano, um nômade a transitar, com dificuldades, entre dois mundos, sem pertencer, de fato, a nenhum dos dois. Um errante, com um pé aqui, outro ali, um sujeito dividido. E o leitor, se tomar o que ele escreve ao pé da letra, também pode se encher de fúria. Como esse sujeito diz hoje uma coisa, se ontem disse outra? Como se descreve de um jeito, se ontem se descreveu de outro? Onde pensa que está? Quem pensa que é? Mas é justamente essa a vantagem do cronista: ele não se detém para pensar onde está, ou no que é; ele se limita a sentir e a escrever.

O cronista conserva, desse modo, os estigmas negativos que cercam a figura do forasteiro – aquele que sempre desperta desconfiança e em quem não se deve, nunca, acreditar inteiramente. Vindo sabe-se lá de onde, inspira uma admiração nervosa – como admiramos os mascarados e os clowns, sempre com uma ponta de insegurança, e um sorriso mal resolvido no rosto. Errante, ele nos leva a errar – em nossas avaliações, em nossas suposições. Uns o vêem, por isso, como um trapaceiro; outros, mais espertos, aceitam aquilo que ele tem de melhor a oferecer: a imprecisão.

Censuramos aos cronistas de hoje sua falta de rigor, seu sentimentalismo, seu apego excessivo ao Eu, seu lirismo, sua falta de propósitos. O que faz um sujeito assim em nossos jornais? – pensam os jornalistas. O que ele faz em nossa literatura? – pensam os escritores. Rubem Braga relatou, certa vez, que seus amigos escritores lhe cobravam, sempre, um grande romance – grande romance que, enfim, nunca chegou a escrever. Braga tentava lhes dizer que o romance não lhe interessava, mas só a crônica. E os amigos tomavam essa resposta como uma manifestação de falsa modéstia, ou então de preguiça. Nunca puderam, de fato, entender a grandeza de que Braga falava.

Numa conversa com Rubem Braga, republicada agora em
Entrevistas (coletânea recém-lançada pela Rocco), Clarice Lispector lhe diz: "Você, para mim, é um poeta que teve pudor de escrever versos". E diz mais: "A crônica em você é poesia em prosa". Sempre a suspeita: de que, no fundo, o cronista é um tímido, alguém que se desviou do caminho verdadeiro, alguém que não foi capaz de chegar a ser quem é. Depois de lembrar a Clarice que já publicara alguns poemas, Braga, ele também, talvez por delicadeza, ou quem sabe seduzido pelos encantos da escritora, termina por ceder: "É muito mais fácil ir na cadência da prosa, e quando acontece de ela dizer alguma coisa poética, tanto melhor".

Figura exemplar
Depois da explosão de gêneros promovida pelo modernismo do século XX, o cronista se torna – à sua revelia, a contragosto – uma figura exemplar. Transforma-se em um pioneiro que, entre escombros e imprecisões, e sempre pressionado pelo real, se põe a desbravar novas conexões entre a literatura e a vida – sem que nem a literatura, nem a vida venham a ser traídos. Figura solitária, o cronista se torna, também, uma presença emblemática, a promover simultaneamente dois caminhos: o que leva da literatura ao real, e o que, em direção contrária, conduz do real à literatura.

Há na literatura contemporânea um sentimento que, se não chega a ser de impotência, até porque grandes livros continuam a ser escritos, é, pelo menos de vazio. O modernismo esgarçou parâmetros, derrubou clichês, tirou do caminho um grande entulho de clichês, de formas gastas, de vícios de estilo. Depois de Kafka, Joyce, Proust, depois de Clarice e de Rosa, como continuar a ser um escritor? Como prosseguir em um caminho que, depois deles, se define pela fragmentação, pela dispersão, pelo vazio – exatamente como nosso conturbado mundo de hoje? O escritor já não pode mais conservar a antiga postura de Grande Senhor da escrita. Ele deixou de ser o Mestre da Palavra, para se converter, mais, em um aprendiz.

O escritor foi empurrado de volta a um ponto morto – ponto de recomeço, lugar fronteiriço que se assemelha, muito, ao ocupado pelos cronistas. Foi lançado, de volta, às perguntas básicas. Por que escrevo? O que é escrever? De que serve a literatura? Posição que, com as devidas ressalvas, podemos chamar de filosófica: pois parte das perguntas fundamentais, aquelas que, desde os gregos, definem a filosofia.

Eis a potência da crônica: sustentar-se como o lugar, por excelência, do absolutamente pessoal. Os líricos, como Vinicius, se misturam aos meditativos, como Carlinhos Oliveira, ou aos filosóficos, como Paulo Mendes Campos. Clarice praticava a crônica como um exercício de assombro; Rachel, como um instrumento para desvendar o mundo; Sabino, como um gênero de sensibilidade. Cada um fez, e faz, da crônica o que bem entende. Nenhum cronista pode ser julgado: cada cronista está absolutamente sozinho.

Terreno da liberdade, a crônica é também o gênero da mestiçagem. Haverá algo mais indicativo do que é o Brasil? País de amplas e desordenadas fronteiras, grande complexo de raças, crenças e culturas, nós também, brasileiros, vacilamos todo o tempo entre o ser e o não-ser. Somos um país que se desmente, que se contradiz e que se ultrapassa. Um país no qual é cada vez mais difícil responder à mais elementar das perguntas: – Quem sou eu?

Gênero fluido, traiçoeiro, mestiço, a crônica torna-se, assim, o mais brasileiros dos gêneros. Um gênero sem gênero, para uma identidade que, a cada pedido de identificação, fornece uma resposta diferente. Grandeza da diversidade e da diferença que são, no fim das contas, a matéria-prima da literatura.


José Castello
 
Texto originalmente publicado no suplemento literário Rascunho, em setembro de 2007.

sábado, 13 de julho de 2013


“O ideal básico de um cronista é registrar o circunstancial, normalmente relacionado ao cotidiano, fato acentuado no Modernismo, já que o gênero da crônica literária trabalha com a possibilidade de tornar mais intensa uma experiência vivida ou percebida através de uma narrativa, tentando ser fiel às circunstâncias, tornando o texto uma unidade significativa, mesmo que observada pelo olhar pessoal e fictício do escritor.”
 
      “[...] No Jornalismo contemporâneo, a crônica atua como uma sessão do veículo de comunicação que trata de um assunto específico, como política, esportes ou cultura, neles exibindo a urgência do formato (pequeno espaço, elaboração diária) enquanto recurso jornalístico.
 
      “Muitas vezes, as variações entre a crônica literária e a jornalística se misturam e como a crônica normalmente ocupa um espaço diário ou semanal nos veículos de comunicação — especialmente os jornais e as revistas —, seu texto está voltado para um formato que exige uma leitura rápida, ágil, e que neste curto espaço precisa chamar a atenção do leitor para os pequenos fatos do cotidiano.”
 
      “‘[...] fragmentária (e essa é a sua força), pois não pretende captar a totalidade dos fatos’ [...]”.
 
      “‘[...] sua sintaxe lembra alguma coisa desestruturada. Solta, mais próxima da conversa entre dois amigos do que propriamente do texto escrito. Dessa forma, há uma proximidade maior entre as normas da língua escrita e a oralidade, [...] mas recriada. O coloquialismo, portanto, deixa de ser a transcrição exata de uma frase ouvida na rua, para ser a elaboração de um diálogo entre o cronista e o leitor’ [...]. (SÁ, 2005, p. 10-11)”
 
      “Deve ser lembrado o fato que o Modernismo (séculos XX e XXI) admite a fusão de gêneros, o que dá origem a novas possibilidades de entendimento sobre a crônica, que se aproxima diversas vezes de outra tipologia textual literária, o Conto, devido à existência de elementos comuns a ambos (narrativa curta, quantidade pequena de personagens, um só núcleo de ações).
 
      “No entanto, na crônica o essencial passa pelas circunstâncias do enredo, isto é, o acontecimento do cotidiano que poderia passar, relegado ao esquecimento por ser considerado ‘irrelevante’, algo que possa passar despercebido para as pessoas de uma forma geral, mas que para a sensibilidade de cronista serve para retratar uma parte do cotidiano. [...]”

 
 
(Guia literatura UFRN 2012, Alexandre Alves, Natal (RN): Editora Sol, 2011, pp. 11-13.)

O PF da literatura em Paraty

Para você que está na Flip: faço bate-papo neste sabado, 16h30, com mediação de André Barcinski, colega de blog aqui ao lado. A conversa é na Casa da Folha, rua da Matriz s/n, Paraty. É de graça. O tema é a arte da crônica.
 
Deixo aí uma receita frugal deste gênero que é o PF, arroz, feijão e bife da literatura. Com um ovo por cima, evidentemente. Só para aquecer o debate:
 
Algumas saem fáceis, menina, como aquelas de Rubem Braga, como uma polaroid, uma pose digital, olha o passarinho, diga xis, um sabiá teimando contra o barulho da metrópole, fáceis como beijos roubados de mulheres difíceis, na dança, na pista, uma moleza, como empurrar bêbado em ladeira, como Vinícius no elogio de uma saboneteira, como descer para um café ou uma cerveja aqui na esquina da Augusta, como quem costura para fora, mesmo sabendo quanto custa a mais-valia da musa da encomenda, mesmo sabendo que na vida não tem almoço de graça, muito menos sobremesa, mesmo sabendo que a vida não é café pequeno, mesmo sabendo que no fundo da xícara, na borra mais árabe, o desenho do futuro, Etelvina, é obscuro, o jogo do bicho, Etelvina, ainda não permite o teu luxo.
 
Algumas, menina, são crônicas de britadeiras, saem na marra, à força, furando o asfalto para tirar uma florzinha de nada, a peleja do escriba com o lirismo que não chega nunca, as chagas abertas, croniquinha raquítica, só o fiapo de narrativa, sem sustança, sem tutano, coisinha sem graça, metalingüística, a crônica sobre a crônica falta de assunto.
 
Algumas vêem ao mundo para confundir a audiência, são crônicas-travestis, arte dos cronistas transgêneros… Pois é, menina, a gente não sabe se é um conto, uma rápida elegia expressionista, um poema em prosa, sabe-se lá, menina, mas mesmo não sendo nada já nasceram crônicas.
 
Algumas, não têm jeito, eram apenas notícias, que o dedógrafo teimou em decepar as aspas, minha menina, e enfeitar o naturalismo como pôde, coitado.
 
Algumas, menina, são para ninar as moças nas sestas, como as de Antônio Maria, sabia?
 
Algumas são de costumes, e até ficam como registros históricos, crônicas de épocas, já ouviu falar em João do Rio?
 
Algumas já nasceram crônicas de rua, como a grande arte de chutar tampinhas, como os sem-teto e malacos, como os bambas das sinucas das antigas, aí já estamos em João Antônio, manja?
 
Algumas são do amor louco, menina, como aquelas do velho Charles, o safado catando milho na Remington, menina, com aquela outra menina na praia, gaivotas quase a bicar-lhe os peitos, como no cinema.
 
Algumas, minha adorável criatura, minha menina sem nome, são como aquelas, lembra, quando me conheceste, lembra, quando pela primeira vez lindamente me deste.

 
Xico Sá

sábado, 1 de junho de 2013

Sobre a crônica, por José Castello

“Há uma anotação do Barão de Teive, heterônimo de Fernando Pessoa, que define, com precisão, o drama dos cronistas. Diz o barão, em seu A educação do estóico: ‘Tornara-me objetivo para mim mesmo. Mas não podia distinguir se com isso me achara, ou me perdera’.

 
“A crônica, diz-se, é o gênero da objetividade e domínio do eu. Nela, os escritores abandonam quimeras e máscaras para, enfim, descer ao mundo concreto e falar de si. A leitura de Cacos & carícias & outras crônicas, coletânea de crônicas de Hilda Hist lançada pela editora Globo, porém, expõe a ambiguidade dessa escolha.

 
“Ocorre que o eu, que nas crônicas enfim fala, ainda é, e sempre será, uma ficção. Quando dizemos ‘eu’, por mais sinceros que sejamos, manejamos ainda a mentira. Ele não passa de um esboço, precário, do que desejamos ser.

 
“Por conta dessa opção pelo eu, a crônica é vista, quase sempre, como um gênero literário menor. As primeiras suspeitas derivam de sua vizinhança com o jornalismo. De que ela trata, de eventos imaginários ou da vida real? Qual é seu objeto, a fantasia ou os fatos? Afinal, quem é o cronista: um escritor ou um jornalista?

 
“A crônica, na verdade, carrega os escritores até fronteiras que se avizinham do mundo — mas que ainda não são o mundo. Ela promete ao leitor um pouco da vida bruta — mas tudo o que oferece, ainda assim, é um punhado de palavras.

 
“Gênero limítrofe, a crônica é vista com suspeita tanto pelos escritores, que a julgam datada e ligeira, como pelos jornalistas, que a consideram fantasiosa. Escapa a ambos que ela é um lugar de entrecruzamento, um gênero sem gênero, um trangênero, o que, a propósito, combina com nossa época de transgênicos, de transnacionais e de transexuais.

 
“O que a crônica põe a nu não é o mundo, mas a própria literatura, que é sempre ‘movimento através de’. Como Macunaíma, o anti-herói de Mário de Andrade, ela se define pela ausência de caráter, o que não quer dizer mau-caráter. Posição periférica, que lhe confere o poder de deslocar perspectivas e de aniquilar certezas. Lugar, por fim, da própria literatura.

“Situado à margem, o cronista perde sem prestígio, mas ganha em liberdade. Experimenta a mesma leveza que sentimos ao chegar às fronteiras extremas, onde as regras desaparecem, as certezas se evaporam e só nos resta a brutalidade do horizonte.”

[...]

 
“Não posso deixar de lembrar da sentença do psicanalista hindu Wilfred Bion: ‘A palavra é só um relâmpago entre duas escuridões’. Gênero que imita os trânsfugas e os desertores, a crônica se torna o lugar, por excelência, desse súbito clarão. Do que quase é, mas já não é.

“A crônica não tem fórmulas. Grandes escritores como José de Alencar, Machado de Assis, Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade e Vinícius de Moraes a praticaram. Seduzidos, por certo, não por sua suposta pureza, mas pela impureza que a define.”

[...]

 
“Roçar o enigma, tangenciá-lo, eis tudo o que um escritor sempre deseja. Seja com a leveza da crônica, seja com a aspereza do romance ou a elevação do poeta, é sempre em torno de um enigma que o escritor escreve.”

 
(CASTELLO, José. Viagem à fronteira. In: ____. Sábados inquietos. São Paulo: Leya, 2013, pp. 12-3.)

 
►“[...] O bom cronista despreza os grandes temas e prefere as migalhas oferecidas pelo cotidiano. Prefere se elevar e voar a agarrar e prender.”

“[...] Penso em Rubem Braga, em José Carlos Oliveira, em Paulo Mendes Campos. Que outra coisa praticaram senão a arte de liberar o mundo das amarras da arrogância? O que é crônica — gênero do eu e da confissão, mas também do mundo e da invenção — senão um artifício que nos leva a dar rasantes sobre o mundo, não como quem agride e domina, mas como alguém que o acaricia? Em vez da ‘vertigem da sobreloja’, que só afasta da realidade e dos outros, o doce bordejar da existência.

 
“Mesmo sendo o gênero do eu, a crônica não é o lugar da exibição e do triunfo. [...] Falhar: eis tudo o que um cronista deve saber. [...] Não o gênero da glória e da empáfia, mas o gênero da delicadeza e do fracasso. Um gênero, enfim, do humano. Cronistas são homens que aprendem a olhar. Homens que praticam o que Humberto Werneck chama de ‘olhares que iluminam’.

 
“A crônica, ele nos mostra ainda, é uma ‘viagem prazerosa e vadia’ pelo rés do chão. Viagem rasteira e serena, sem preparativos e sem agendas. E, quando voa — e voar faz parte também de sua natureza —, o cronista imita seu Fernando, o pai de meu amigo baiano, para quem o próprio vôo é mais importante que o destino. O cronista vê não o que os outros não vêem, mas o que os outros, mesmo vendo, desprezam. [...]”


(CASTELLO, José. A vertigem de sobreloja. In: ____. Sábados inquietos. São Paulo: Leya, 2013, pp. 196-7.)


*Sugestão de Postagem do amigo Adauto Neto

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Reminiscência

Nasci numa pequena cidade de Minas. Até aí nada demais. Muita gente nasce em cidades pequenas, distantes e quietas. Seria feliz, de qualquer maneira, se quem lê neste instante pudesse saber a alegria que existe em se nascer num lugar assim, em que as ruas pequenas e estreitas, as altas palmeiras, a água macia da chuva que cai sempre, as muitas estrelas e a lua, as pedrinhas das calçadas, a meninada, a carteira da sala de aula, a mestra e mais uma quantidade destas lembranças simples sejam, mais tarde, influências reais na vida da gente. Na vida de quem, afinal, preferiu enfrentar a cidade grande: as águas desse mar, a luz dessas lâmpadas frias, a sala fechada, triste e sem perspectivas em que se ganha a vida, a cadeira quente e insegura das tardes de ir e vir — pura fadiga — das empresas, a luta, a dura luta de ser alguém, um peixe grande em mar estranhamente grande. A verdade é que, um dia, a pensar e refletir na grama macia da pracinha da matriz, a criança decidiu sair.

E a estrada se abriu a sua frente. Vir era uma idéia. Fixa. Caminhar era fácil.

A chegada: a rua imensa, as buzinas, as luzes, sinal verde, aquela cidade grande, grande ali, na sua frente. Cada face, cada ser que passava — pra lá e pra cá — inquietamente, tanta gente, suada, apressada, sem alegria, sem alma, a alma cerrada, enrustida, cada triste surpresa era a chegada.

Cheguei. Um táxi. A mala. As esquinas. Está bem, mas, que fazer? Sentei e pensei. Pela janela da casa alta vai a vida. Seria a vida? E disse a primeira frase na cidade grande, as primeiras palavras diante da grande luta e as palavras eram: Meu Deus, que saudade! E nem um dia me separava da pracinha da matriz. Cada dia que, a seguir, vi passar, esqueci.

Diante da máquina, neste instante, há uma distância imensa entre aquele dia na missa cantada na minha igrejinha e este dia em que, diante de mim, diante de minha mulher e da minha casa feita de cidade grande, minhas filhas brincam de ser gente grande.

E elas. Que vai ser delas? Sem palmeiras, sem um pai de ar grave; sem entender a chuva a cair em jardins humildes, nas margaridas branquinhas; sem entender de lua e de estrelas — que céu aqui, pra se ver nem se vê —, sem brincar na lama das ruas, a lama das chuvas, casca de palmeira, descer as barracas, nadar sem mamãe saber, nas águas escuras, fim de quintal, quintal, quintal? sem quintal? pedrinha de calçada, marcar a canivete sua inicial na carteira da sala. Ainda bem que nasceram meninas.

Já é diferente. Será que é? Sei lá. Entre a chegada e este instante, lembrança nenhuma. Sei que cheguei.

E sei mais: que esta página está é uma grande besteira, dura de cintura, sem graça, uma m... Já se vê que quem nasceu para caratinguense nunca chega a Rubem Braga. E também tem mais: Quem é capaz de escrever uma página literária decente — igual a essa (?) — sem usar uma vez sequer a letra O? Leiam mais uma vez. Atentamente. Se tiver um — além deste aí em cima — eu como!


Ziraldo
Texto extraído do livro "Crônicas Mineiras", Editora Ática — São Paulo, 1984, pág. 109.

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Uma crônica

Uma crônica começa a se desenrolar meio preguiçosamente. Precisa apenas de um fio de assunto, que pode ser encontrado num olhar pela janela, numa consulta à estante, na lembrança de um episódio da véspera ou mesmo no mergulho vagaroso em busca da raiz de um sentimento, como quando reagimos diante de um fato e mais tarde estranhamos nossa própria reação. Começa então aquele tatear depossibilidades, um jogo de redigir frases simples mas que nos deem a sensação de que uma pedra foi removida. Começa assim a crônica, frases intangíveis removendo pedras pesadas; ou então, quem sabe, como uma pérola ao contrário, um grão de areia que se abre e revela estar cheio de madrepérola por dentro.

Claro que tudo depende da paleta verbal do autor, e até de sua disposição naquele dia– a direção para onde ele foi virado pelos ventos da vida à sua volta. A crônica deve ter esse nome porque depende do Tempo, é um jogo de búzios verbais lançados pelo Tempo. Só poderia ser escrita assim hoje, porque amanhã os ingredientes já teriam sido outros, mesmo que o projeto original fosse o mesmo. A crônica não se sente obrigada a contar uma história. A história será bem recebida, se brotar alguma história no decorrer do processo; é uma convidada bem vinda, mas, se não aparecer, a festa acontece do mesmo modo.

O cronista é como um catador de lixo da História, ele procura o que não foi aproveitado, o que passou despercebido, o que ninguém se atreveu a comentar, o que não mereceu atenção, o que foi enxergado apenas por um lado, o que passou em branco, o que entrou pra lista negra, o que nos relatos oficiais ficou meio com uma cor-de-burro-quando-foge. Por outro lado, comparado aos autores de imensos murais realistas, o cronista é um cartunista, que em dois-três rabiscos resume uma vida anônima, um sentimento eterno, uma Revolução.

A crônica é plástica, é elástica, é flexível, é multiuso, é multimídia. Como aqueles monstros plasmáticos dos filmes de pesadelo radioativo, ela tudo absorve, tudo dissolve e assimila a si mesma. Pode falar de flores e de beija-flores, de armamentos e de Armageddons, de fantasmas e de malassombros, de política e de polícia, de donos do mundo e de donas de casa. Não pode ser definida pela sua temática, nem pela sua extensão, nem pela sua estrutura interna, nem pela emoção que provoca ou pela estante onde é colocada. Talvez seja a primeira das formas literárias, antes do Big Bang que a explodiu em gêneros; talvez seja a última, para onde fluíram todas as anteriores, a que aprendeu com todas e de todas pega algo emprestado. É a aluna prodígio da primeira fila, sempre atenta e sempre ligada, de óculos e sem calcinha.
 
Braulio Tavares



(TAVARES, Bráulio. Uma crônica. In: Jornal da Paraíba. Campina Grande-PB: ano 42, n. 11.987, 06-04-2013, “Opinião”, p. 6.) ou no blog do autor Mundo Fantasmo.

sexta-feira, 1 de março de 2013

Crônica para mulher do nariz grande

A mulher de nariz grande chega bem antes em qualquer ambiente.
 
É a que chega primeiro também na vida de um homem.
 
Sai, quase sempre, sem bater a porta. Prefere uma bela vingança.
 
A mulher de nariz grande fareja, degusta, vê, ouve e tateia na velocidade da luz. Como se o nariz grande se intrometesse nos outros sentidos.
 
Para o bem e para o mal. A mulher de nariz grande chega bem antes.
 
Chega primeiro para matar a sua curiosa fome de viver. Chega primeiro porque odeia ter saudade e não poder matá-la imediatamente.
 
Para o bem ou para o mal, a mulher de nariz grande chega do nada. Inclusive para aplicar um flagrante delito no canalha.
 
Ela fareja de longe a desgraça.
 
Até no altar a mulher de nariz grande deve chegar primeiro do que o noivo, desmentindo todo o folclore.
 
A mulher de nariz grande é a que, entre todas as suas semelhantes, tem menos inveja do pênis.

 
A porção mulher que até então se resguardara, amigo, aflora, freudianamente, diante da presença dela.
 
A mulher de nariz grande me lembra o melhor conto que já li na vida: “O Nariz”, de Nikolai Gogol, evidentemente.
 
A mulher de nariz grande puxa oxigênio e aroma dos jardins para a cama até em uma manhã de segunda.
 
Na horizontal, o nariz grande vira uma ponte para a margem esquerda do nirvana.
 
Em um colchão d´água de motel barato, é ponte sobre o Danúbio.
 
Ao contrário de Pinóquio, quando mente, digo, quando ilude, a mulher do nariz grande cresce as orelhas, Deus castiga.
 
Graças a tal temor, a mulher de nariz grande é a que menos utiliza o dom de iludir os tontos como este que vos digita.
 
 
A mulher de nariz grande emite as mais lindas e barulhentas onomatopeias quando goza ou até mesmo quando se aproxima do solene momento. Ela sente antes o incêndio das horas.
 
Mesmo em uma distância transatlântica, amigo, saiba: é a mulher do nariz grande que estará mais perto do que qualquer outra.

 
 
Xico Sá

domingo, 3 de fevereiro de 2013

O troco na padaria e a autovalorização do homem

Pelo tom monótono da voz como de quem sobe uma escada a passos confusos, um de esforço, outro de preguiça, ela parecia ter fumado alguma coisa cujo efeito é amolecer as palavras como bolacha no leite, como casca de ferida na água. Talvez fossem só comprimidos para dormir expandindo seus efeitos no final da manhã no balcão da padaria. As palavras eram camelos desorientados derrubando, a grandes pisadas, mesas e cadeiras ou açucareiros em cujo fundo se percebia, com um mínimo de atenção, uma camada de ácido. Assim como uma migalha de pão não mata a fome, antes a intensifica, um resto de comprimido não faz dormir, antes deflagra um sono impossível. Um cachorro pequeno, parecendo morto dentro da bolsa na cadeira ao lado dessa mulher de voz malemolente, doce e ácida, devia ter comido a maior parte.
 
Assim, parecendo cansada, a mulher media palavras, ou melhor, as arrastava como pés de morta, sacolas de um mendigo, a ponto de quem ouvia poder anotar cada frase proferida no tempo de crescer uma planta. Junto dela havia além do cão talvez morto, um homem que a ouvia. Não saberemos se irmão, marido ou se mero servo. Servo, essa palavra é boa para esta crônica e por isso, vamos mantê-la. Suspeitaremos que fosse assim um servo, mas também um gigolô, pois que ainda existem, e tornam as histórias sempre muito mais interessantes.
 
— O dinheiro é meu — ela falou.
 
É preciso saber que não disse simplesmente, assim como quando aqui de fora lemos a frase “o dinheiro é meu” com a objetividade das sílabas ditas em sequência direta. Pronunciou a informação de um modo um pouco complicado. Algo como “uooo dinheeeeeiro ééé meeeeuuoo”, ondulando as palavras até fazer de cada uma, uma montanha intransponível. E dando a esta crônica limites sonoros que fazem sua autora preocupar-se com o que pode realmente transmitir aos leitores.
 
Fazendo transitar as frases no alto mar da ressaca, ela continuou no tom que doravante exige a imaginação do leitor e sua inteira paciência para encompridar a frase, alcançando assim o tom do tempo espichado:
 
— Eu não vou perder dinheiro. Não me interessa perder nem um centavo do que tenho. Nada, entendeu? Não me interessa nem um pouco ganhar menos do que tenho. — Era o que ela dizia repetindo-se como que para certificar aos outros e a si mesma de que estava certa.
 
O homem que não saberemos se era marido, irmão ou um mero servo, insinuou dizer alguma coisa.
 
— Bebê, quem está falando sou eu — ela falou, abrindo ainda mais o pano negro da lentidão, efeito do sono inconquistado com que cobria até agora o seu parceiro no tardio café da manhã.
 
— Preste muita atenção no que eu digo — continuou enquanto ele permanecia calado. — Você poderia esperar eu terminar de dizer o que tenho a dizer? Eu tenho várias coisas a dizer. Poderia, ou não poderia dizer estas coisas todas? São urgentes. São coisas seríssimas. Você está precisando ouvir? — Falava entre pausas como água que escorre — impotável, diga-se de passagem — de uma torneira impossível de estancar.
 
Ele ouvia ainda mais calado.
 
— A conta é minha. E sempre foi minha. Vai continuar sendo minha e de mais ninguém. Somente minha. Minha, entendeu? O dinheiro é meu, entendeu? Antes era meu e agora continua sendo meu. Quer dizer, era da minha família. Mas isso é a mesma coisa que meu. Da família onde eu nasci. E vai continuar sendo. E não vamos mais falar sobre isso porque eu não quero mais falar nesse assunto. E quando eu não gosto de um assunto, não se fala sobre ele, entendeu?
 
Ele permanecia calado. Ela falava entre ondulações e pausas. Foi assim que chamou o garçom, que se aproximou esperto e ágil contradizendo o tom vagaroso da cena.
 
— Quanto custa o pão com manteiga? — ela perguntou.
 
O garçom respondeu objetivamente.
 
— E sem manteiga? — continuou.
 
— Vinte centavos a menos.
 
— E com requeijão?
 
— Noventa centavos a mais.
 
— E o café com leite?
 
— O mesmo que o pão — ele disse.
 
— E o café, só o café, sem o leite?
 
O garçom respondeu tudo com a objetividade desejável a um profissional da área enquanto ela se decidia.
 
— Me traz um copo de água e meio pão. O pão sem manteiga.
 
Parece mentira, mas foi assim mesmo. O garçom trouxe rapidamente o pedido. A mulher olhou e não comeu. O homem pagou a conta sem tomar sequer um café. Ouvimos que dissesse: “Vou aprender a valorizar o que faço”. Não pudemos ver com nitidez seu rosto. Especulamos de onde ouvíamos a conversa sobre os motivos de sua frase que, como uma moeda de troco, caiu da mesa e rolou até a sarjeta perdendo-se entre as pedras.
 
Mais tarde, a mesma mulher lenta saía do xópim usando uma bengala, embora fosse bem jovem. Lenta como só ela, o rosto oculto entre vasta cabeleira, parecia bonita e estava em silêncio. O homem, irmão, marido ou empregado, carregava a bolsa com o cachorro e várias sacolas de lojas de roupas, sapatos e perfumes. Em torno, uma sensação de fim da história.
 
O cronista é um observador da vida. Sua tarefa histórica e social é capturar o nonsense diário trazendo-o à visão das gentes. Por isso, ele deve preferir a banalidade crônica do cotidiano aos feitos espetaculares que cabem hoje em dia à notícia jornalística. Só assim ele e seu leitor conseguirão descobrir que o troco da padaria equivale à autovalorização do homem.
 
 
Marcia Tiburi
 

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

A arte da vagabundagem crônica

Algumas saem fáceis, como aparentam aquelas de Rubem Braga, como uma polaroid, uma pose digital, olha o passarinho, olha a borboleta amerela, diga xis, um sabiá teimando contra o barulho da metrópole, fáceis como beijos roubados de mulheres difíceis…
 
Outras nascem na dança, na pista, uma moleza, como empurrar bêbado em ladeira, como Vinícius no elogio de uma saboneteira, como descer para um café ou uma cerveja lá na esquina da Augusta.
 
A crônica é uma costura para fora, mesmo sabendo quanto custa a mais-valia da musa da encomenda, mesmo sabendo que na vida não tem almoço de graça, muito menos sobremesa, mesmo sabendo que a vida não é café pequeno, mesmo sabendo que no fundo da xícara, na borra mais árabe, o desenho do futuro, Etelvina, é obscuro, o jogo do bicho, Etelvina, ainda não permite o teu luxo, a vida, minha menina, é cronicamente inviável.
 
Algumas, menina, são crônicas de britadeiras, saem na marra, à força, furando o asfalto para tirar uma florzinha de nada, a peleja do escriba com o lirismo que não chega nunca, as chagas abertas, croniquinha raquítica, só o fiapo de narrativa, sem sustança, sem tutano, coisinha sem graça, metalingüística, a crônica sobre a crônica falta de assunto.
 
Algumas vêem ao mundo para confundir a audiência, são crônicas-travestis, arte dos cronistas transgêneros… Pois é, menina, a gente não sabe se é um conto, uma rápida elegia expressionista, um poema em prosa, sabe-se lá, menina, mas mesmo não sendo nada já nasceram crônicas.
 
Algumas, não têm jeito, eram apenas notícias, que o dedógrafo teimou em decepar as aspas, minha menina, e enfeitar o naturalismo como pôde, coitado.
 
Algumas, menina, são para ninar as moças nas sestas, como as de Antônio Maria, tu sabias?
 
Algumas são de costumes, e até ficam como registros históricos, crônicas de épocas, já ouviste falar, por acaso, em João do Rio?
 
Algumas já nasceram crônicas de rua, como a grande arte de chutar tampinhas, como os sem-teto e malacos, como os bambas das sinucas das antigas, aí já estamos em João Antônio, manja?
 
Algumas são do amor louco, menina, como aquelas do velho Charles, o safado catando milho na Remington, menina, com aquela outra menina na praia, gaivotas quase a biscar os peitos, como no cinema.
 
Algumas, minha adorável criatura, minha menina sem nome, são como aquelas que simplesmente distraem o feirante antes dele embrulhar o peixe, a banana e, quem sabe, também as flores.
 
 
Xico Sá