domingo, 30 de setembro de 2007

Crônica

Também de tamanho reduzido, a crônica condensa um flagrante da vida, real ou fictício. Pode ser um fato ou uma ficção e prima por uma expressividade bastante coloquial. A crônica é um conto quando narra uma história; é um ensaio quando traz consigo conceitos e opiniões. Muito comum em periódicos jornalísticos.


S.O.S Redação: língua e linguagem, Wilson R. C. Almeida, Escola, p. 92.

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Arthur da Távola

A crônica é a expressão das contradições da vida e da pessoa do escritor ou jornalista, exposto que fica, com suas vísceras existenciais à mostra no açougue da vida, penduradas à espera do consumo de outros como ele, enrustidos, talvez, na manifestação dos sentimentos, idéias, verdades e pensamentos.
Já escrevi mais de cinco mil crônicas. E a uns estudantes que me pediram uma síntese sobre o gênero, respondi o seguinte:
É o samba da literatura. É ao mesmo tempo, a poesia, o ensaio, a crítica, o registro histórico, o factual, o apontamento, a filosofia, o flagrante, o miniconto, o retrato, o testemunho, a opinião, o depoimento, a análise, a interpretação, o humor. Tudo isso ela contém, a polivalente. Direta a simples como um samba. Profunda como a sinfonia.
É compacta, rápida, direta, aguda, penetrante, instantânea (dissolve-se com o uso diário), biodegradável, sumindo sem poluir ou denegrir, oxalá perfume, saudade e algum brilho de vida no sorriso ou na lágrima do leitor.
A literatura do jornal. O jornalismo da literatura. É a pausa de subjetividade, ao lado da objetividade da informação do restante do jornal. Um instante de reflexão, diante da opinião peremptória do editorial.
É tímida e perseverante. Não se engalana com os grandes edifícios da literatura, mas pode conter alguns de seus melhores momentos. Não se enfeita com os altos sistemas de pensamento, mas pode conter a filosofia do cotidiano e da vida que passa. Não se empavona com a erudição dos tratados, mas pode trazer agudeza de percepção dos bons ensaios.
Para ser boa, não deve ser mastigada. Deve dissolver-se na boca do leitor, deixando um sabor de vivência comum. Deve parecer que já estava escrita há muito tempo na sensibilidade de quem a lê e foi apenas lembrada ou ativada pelo escritor/jornalista que lhe deu forma.
Deve ser rápida como a percepção e demorada como a recordação. Verdadeira como um poente e esperançosa como a aurora. Irreverente como um carioca. Suave como pele de mulher amada e irritada como uma criança com fome.
Terna como a amamentação e insegura como toda primeira vez. Religiosa como a portadora do mistério e agnóstica como um livre pensador. A crônica nos obriga à síntese, à capacidade de condensar emoções em parágrafos-barragem. Faz-nos prosseguir, mesmo quando nos sentimos repetitivos. É, pois, a expressão jornalístico-literária da necessidade de não desistir de ser e sentir. A crônica é o samba da literatura.

[Jornal O Dia, 27 de junho de 2001]

domingo, 23 de setembro de 2007

Entre a literatura e o jornalismo: as crônicas de Graciliano Ramos


Resumo:Partindo da análise do livro Linhas Tortas, o presente
trabalho tem por objetivo estudar as crônicas de Graciliano Ramos,
escritor usualmente valorizado por seus romances. Busca-se descrever
como o autor se apropria do gênero, transformando-o em prática
pessoal. A crônica foi escolhida por seu caráter híbrido, em que se
observa a fusão de, entre outros, elementos do conto, da digressão
dissertativa (vida cultural, política e cotidiana), da crítica literária com
aspectos do fait divers, o que permite o estudo da inter-relação entre
literatura e jornalismo.
A lista de renomados poetas e romancistas nacionais que sabidamente
colaboraram em jornais e revistas é extensa. José de Alencar, Machado de Assis,
Olavo Bilac, Manuel Bandeira, Mário e Oswald de Andrade, Rachel de Queirós, Jorge
Amado, Vinícius de Morais, Carlos Drummond, entre outros, participaram com
regularidade da história do jornalismo brasileiro, quer escrevendo quer, em alguns
casos, dirigindo ou lançando suas próprias publicações.
ntre a literatura e o
jornalismo: as crônicas de
Graciliano Ramos
E
Thiago Mio Salla
O presente artigo é parte da
monografia Crônica: jornalismo em
Graciliano Ramos apresentada à Escola
de Comunicações e Artes para obtenção
do título de bacharel em jornalismo.
1 Introdução
2
Palavras-chave: Graciliano Ramos, Crônica, Literatura Brasileira,
Jornalismo, Linhas Tortas.
1
Abstract: From the analysis of the book Linhas Tortas, the
present paper aims to study the chronicles written by Graciliano
Ramos, who is usually known by his novels. It describes how the
author appropriates the genre, transforming it in a personal practice.
The chronicle was chosen because of its hybrid characteristics in
which can be observed the blending of elements such as: short
stories elements, digression (cultural, political and every day life),
literary criticism, with aspects of fait divers, which allow the study of
the interrelation between literature and journalism.
Key words: Graciliano Ramos, Chronicle, Brazilian Literature,
Journalism, Linhas Tortas.
1
Jornalista, mestrando em Ciências da
Comunicação - ECA/USP e graduando
em Letras pela FFLCH/USP.
2
Na maioria das oportunidades, os textos publicados na imprensa por estes
escritores seguiram o formato e os parâmetros do gênero crônica. Como se sabe, tal
modalidade de escrita é caracterizada por seu hibridismo e fluidez, em que se observa
fusão de, entre outros, elementos do conto, da digressão dissertativa (vida cultural,
política e cotidiana) e da crítica literária com aspectos do fait divers . Ela permite,
dessa maneira, adentrar a ponte que liga a escritura literária e jornalística.
Mesmo apresentando-se como um cronista irregular e esporádico, Graciliano
Ramos, autor usualmente valorizado por seus romances, pode ser incluído nesse rol
de autores/colaboradores que deixaram sua marca na imprensa nacional. Muitos de
seus textos "são obras-primas (...), continuação segura da melhor tradição brasileira no
gênero, cuja fonte principal é Machado de Assis" (Bosi et al, 1987: 118). Com este
artigo, pretende-se estudar suas crônicas e descrever a maneira com que o escritor
alagoano se apropria do gênero para transformá-lo em prática pessoal.
As crônicas de Graciliano encontram-se reunidas em dois volumes, ambos
editados postumamente, em 1962: Linhas Tortas e Viventes das Alagoas . Embora
seus textos consensualmente mais valorizados estejam reunidos em Viventes das
Alagoas, serão aqui analisadas apenas as crônicas de Linhas Tortas. A escolha decorre
da convicção de que este volume oferece um perfil mais amplo do cronista.
Viventes das Alagoas contém, em sua maioria, textos da década de 1940,
escritos no Rio de Janeiro para a Revista Cultura Política, publicação do Departamento
de Imprensa e Propaganda da ditadura varguista. Ao passo que o volume Linhas Tortas
agrupa crônicas escritas no amplo período que vai de 1915 até 1952. Logo, inclui
textos da fase inicial do escritor e de seu período de plena maturidade. Além disso,
há a diversidade geográfica e cultural em que foram produzidos. O livro divide-se em
duas partes: na primeira, o jovem cronista escreve para jornais de abrangência regional;
na segunda, acham-se crônicas editadas em jornais e revistas de grande circulação no
Rio de Janeiro .
Antes de entrar propriamente na análise de Linhas Tortas e da relação de
Graciliano com a crônica, procurar-se-á conceituar as linhas gerais do gênero, com
ênfase no discurso construído sobre ele e na capa ficcional que lhe foi atribuída.
Mesmo praticada desde meados do século XIX, só cem anos depois a
crônica começou a ser assumida como literatura. Segundo Beatriz Resende,
Eduardo Portella, no livro Dimensões I, de 1958, foi um dos primeiros a
reconhecê-la "como um gênero literário específico, autônomo" (Portella, 1978:
81). O crítico vincula esse processo à publicação freqüente, naquele momento, de
livros de crônicas que transcendiam "a sua condição puramente jornalística para
se constituírem em obra literária" (Idem: 81).
Tal visão é partilhada por Davi Arrigucci Júnior no ensaio "Fragmentos
sobre a crônica", já na década de 1980. Em perspectiva historiográfica, o estudioso
constata que a crônica floresceu amplamente no Brasil, com participação
específica e expressiva na vida literária nacional, "a ponto de constituir um gênero
propriamente literário, muito próximo de certas modalidades da épica e às vezes
da lírica" (Arrigucci, 1985: 44).
2 A crônica como gênero literário
3
Em "Estrutura da Notícia", Roland
Barthes discorre sobre as duas
manifestações estruturais da mensagem
jornalística: a informação e o próprio fait
divers. A informação, quando trata de um
acontecimento continuado, "remete-se
necessariamente a uma situação extensiva
que existe fora dele e em torno dele"
(Barthes, 1970: 58). O fait divers, pelo
contrário, não necessitaria de um saber
preexistente. Traria uma informação
imanente, porque, superficialmente, não
remete a nada que não seja ele próprio.
3
4
5
Há também o livro Viagem,
editado em 1954, que reúne as
impressões da viagem de Graciliano à
URSS. Essas crônicas aparecem com a
feição de um diário íntimo sem aparente
publicação na imprensa. Em pesquisa
realizada nos arquivos de Graciliano
Ramos no Instituto de Estudos Brasileiros,
observou-se que, dos trechos que
compõem o livro, apenas a crônica "O
Kolkhose Kheivani" foi publicada
(Imprensa Popular, Rio de Janeiro, julho de
1952) e mesmo assim com alguns cortes
e modificações.
4
Devido a problemas com a
edição de Linhas Tortas (a segunda
parte do livro não apresentava
exatidão bibliográfica, visto que todos
os textos não traziam sequer um
informe sobre o local em que foram
publicados) realizou-se uma pesquisa
no Instituto de Estudos Brasileiros
(IEB), onde se encontra o Arquivo
Graciliano Ramos, depositado pela
família do escritor. Nela, conclui-se
que boa parte das crônicas foi
publicada originalmente em veículos
de grande circulação, sobretudo do
Rio de Janeiro, com destaque para o
Diário de Notícias e para a revista O
Cruzeiro.
5
Portella, por outro lado, relativizou uma suposta autonomia da crônica
considerando-a ontologicamente ambígua: "Até que ponto pode ou deve ser
considerado gênero autônomo uma entidade poética que como é o caso da
crônica, tem a caracterizá-la não a ordem ou a coerência, mas exatamente a
ambigüidade" (Portella, 1978: 82). Nessa abordagem, o crítico realiza também um
certo rebaixamento do gênero ao afirmar que ele seria "quase tão autônomo
quanto o poema, o romance ou o conto" (Idem: 81).
Esse processo de discursivização da crônica como um gênero literário
inferior pode ser encontrado no fundamental artigo "A vida ao rés-do-chão" de
Antonio Candido. De acordo com o crítico, seria inimaginável "uma literatura feita
de grandes cronistas, que lhe dessem o brilho universal dos grandes romancistas,
dramaturgos e poetas" (Candido, 1993: 23). Contudo, Candido não deixa de
revelar a outra face virtuosa da crônica: por ser menor, solta e despretensiosa, ela
se aproximaria de uma forma mais efetiva dos leitores, trazendo a sensibilidade do
cotidiano.
Há ainda quem recuse encará-la como literatura em função daquele
caráter ambíguo, fronteiriço e heterogêneo, destacado acima por Portella. Luiz
Roncari aponta a falta de um estudo sistemático dos traços não-literários
empregados pelos cronistas:
"erroneamente, procura-se na crônica os gêneros tipicamente literários, esquecendo-se
que ela mesma não chegou a se cristalizar num, mantendo-se na fronteira, como um
canal de comunicação ou zona de contato entre esferas da alta e baixa cultura"
(Roncari, 1985: 15)
Vai se perceber que tais categorias críticas de "gênero menor" e de "gênero
fronteiriço" marcarão as características que se atribuíram à crônica.
A maior aproximação do público, referida por Candido, pode ser em parte
relacionada a um recurso estilístico recorrente nesses textos: a aparência de
conversa fiada enraizada na realidade, mas com tratamento ficcional. Nela se
observa a construção de diálogos (e não a simples transcrição da conversa) e de
personagens (seres inventados com vida real e envolvimento de espaço, tempo e
atmosfera).
Contudo, esse lado ficcional não encobre o vínculo com o dia-a-dia, com
o jornal e com o fait divers, já que, a rigor, baseia-se em um fato crível do
cotidiano. Pauta-se, portanto, por elementos do discurso realista, visando à
construção do "efeito de real". Essa dualidade permeia os textos, fazendo-os ir
além do simples documentalismo (presente nos textos informativos de qualquer
publicação noticiosa).
A circunstância aparece como o fato pequeno do dia-a-dia, que ganha
relevo e destaque ao ser fixado, uma vez que passaria desapercebido para um
observador comum. Na efemeridade do instante se encontraria aquilo que se
entende por riqueza literária:
O cotidiano surge, desse ponto de vista, como o lugar da mistura artisticamente mais
fecunda, pois vira uma espécie de modelo da vida real para o escritor: é onde o mais
alto aparece mesclado ao baixo; o puro ao impuro; o poético agarrado ao erótico; a
cidade atravessada pelo campo; o passado preso ao presente; o símbolo à terra; o
tradicional ao moderno; o espírito à matéria (Arrigucci, 1997: 15).
Seguindo também a lógica do " gênero menor", o cronista deve-se focar,
sobretudo, no cotidiano dos mais pobres. Na dignidade do mais humilde estaria o
mais sublime. A ênfase, assim, estaria sempre no pequeno: tanto naquilo que o
narrador narra, quanto na classe social em que se encontra o fato narrado. Contudo,
cabe ao cronista ir além do evento miúdo do cotidiano, se não quiser naufragar no
efêmero. Ele parte em busca de uma saída literária para contornar a situação.
Dessa maneira, no interior da crônica, o fait divers passaria por um
processo de territorialização, tornando-se informação, uma vez que é integrado
artisticamente ao fluxo da vida. Levando-se em conta a divisão aristotélica entre
literatura e história, essa feição poética pretendida está vinculada à própria
capacidade do cronista em dar unidade de ação a fatos determinados. Segundo
Aristóteles, esse atributo caracteriza a poesia e não a história (categoria em que
podemos acrescentar o jornalismo), que trabalha com fatos desconexos e
inconclusos que apresentam unidade de tempo e não de ação.
Conseqüentemente, o narrador da crônica seria sujeito e objeto ao
mesmo tempo, uma vez que narra sua história (sujeito) e é objeto do autor
imaginado. Daí viria também o tom de veracidade jornalística; o autor é o narrador
que relata as experiências que vê de forma direta, acentuando a verossimilhança.
Esse trabalho narrativo de aproximação do leitor enraíza-se no tempo
presente, sem deixar de fazer referência a um passado imediato marcado, quase
sempre, por um sentimento de perda:
Se o jornal, pelo quadro do presente que oferece, cria a expectativa do futuro, o
cronista só pode responder com seu realismo, de quem já viveu, portanto mais sábio,
e já não espera nada, encarando sempre o futuro com ironia e relativismo [...] falando
do tempo imediato, pretende falar de um outro tempo (Roncari, 1985: 15).
O gênero ajusta-se, portanto, a uma visão crítica do presente que pode
ganhar uma roupagem pessimista. Não poderia, assim, anunciar um futuro novo
e melhor, pois se nivelaria à matéria publicística ou à retórica política da qual
também busca se diferenciar.
Pensando nas condições práticas de produção, a liberdade do cronista
encontraria restrições nos limites definidos pela publicação para a qual colabora. A
ideologia do veículo corresponde aos interesses de seus consumidores, direcionada
pelo proprietário e/ou pelos editores chefes de redação. Outra limitação seria o
próprio espaço destinado ao cronista (em geral, uma coluna vertical). Há um número
restrito de laudas, obrigando o redator a explorar da maneira mais econômica possível
o pequeno espaço de que dispõe. É dessa parcimônia espacial que nasceria, em parte,
a riqueza desse "gênero menor": caberia ao cronista realizar um corte profundo na
representação da realidade por meio da metonímia.
Alguns estudiosos desse tipo de narrativa curta costumam sustentar o
discurso de que a crônica seria um gênero carioca. Historicamente, pode-se dizer
que ele foi praticado com maior intensidade nos jornais do Rio de Janeiro. Mas,
não se tratou de uma atividade exclusiva, pois em outros pontos do país,
jornalistas e literatos também a praticavam (o próprio Graciliano no remoto
interior alagoano é exemplo disso). Cada autor construirá a imagem da realidade
imediata da cidade em que vive ou em que viveu.
Para um cronista rotineiro, às vezes, estrategicamente, pode faltar assunto,
levando-o a deixar o comentário dos fatos da semana para se aproximar do
conceito de arte que prescinde de matriz realista imediata, imitando antes
modelos, estruturas ou discursos da tradição do que situações empiricamente
demonstráveis. O maior interesse recairia sobre os limites da própria crônica, ou
seja, sobre o tema do próprio texto como resultado da elaboração de seu
narrador que constrói o mundo representado à medida que narra.
Segundo Davi Arrigucci, essa autonomia da crônica em relação ao
circunstancial (ao fato, à novidade, à informação) só foi possível depois de um
longo aprendizado que vem desde o final do século XIX em que pesa a
modernização da imprensa brasileira: à medida em que o discurso jornalístico vai
deixando de lado um tom ficcional e se pautando por textos objetivos, a crônica
realiza o movimento inverso.
"... a circunstância corriqueira fica reduzida ao mínimo possível, e a crônica parece que
se enrola em si mesma e se solta [...] animada com o mais profundo da experiência
humana [de seu narrador ficcional]" (Arrigucci, 1985: 46).
Por outro lado, continua também a incorporação de elementos do
discurso realista (em que se inclui o próprio discurso jornalístico) com o
propósito de simular a imitação da vida e não da arte.
É dentro desse panorama que Graciliano Ramos apropria-se do gênero e
o transforma em prática pessoal.
O trabalho efetivo de Graciliano como cronista começa durante sua
primeira permanência no Rio de Janeiro em agosto de 1914. Da capital, envia
crônicas para o Jornal de Alagoas e depois começa a colaborar no Paraíba do Sul,
periódico com o mesmo nome da cidade do interior fluminense. Como se sabe,
nesse momento o Rio de Janeiro é a capital política e cultural do país, além de
pólo de modernização.
A geração de Graciliano insere-se num momento de predominância de
um discurso que buscava desnudar a "realidade" do país. Assim, "a crônica se
convertia num meio de mapear e descobrir um país heterogêneo e complexo,
largamente desconhecido de seus próprios habitantes, caracterizado pelo
desenvolvimento histórico desigual" (Arrigucci, 1985: 51). Era uma maneira de
acompanhar o processo de modernização do Brasil, marcado pelos contrastes
entre bolsões de prosperidade e vastas áreas de miséria, em que se mesclavam o
próprio mundo moderno e traços remanescentes de estruturas arcaicas da
sociedade tradicional.
Desejando fazer crônica, o escritor alagoano não poderia evitar a literatura:
o gênero já havia assumido sua feição ficcional mais evidente. Retomando a velha
fórmula horaciana, Graciliano buscaria não só deleitar, mas ensinar. Na medida
do possível, evitava a comoção, que ele muito provavelmente associava à emoção
romântica. Suas crônicas são marcadas por um certo tom de denúncia,
comentando fatos e situações e aprofundando questões, tanto por meio do tom
leve e bem-humorado da própria crônica, como pela descrição realista.
Ele expõe as limitações da imprensa, critica o academicismo literário,
enfoca o patriarcalismo e o poder oligárquico da estrutura política e destaca a
3 Graciliano e a crônica
hipocrisia de certas práticas da Igreja Católica. Nesses ataques, adota um estilo
jocoso-pessimista (sobretudo na primeira parte do livro), com ênfase no contexto
nordestino. Vale-se de um realismo crítico ao mesmo tempo em que debocha das
situações apresentadas. Incorporando a tradição machadiana, adota "o humor, às
vezes o sarcasmo e mesmo certo azedume de tom" (Bosi et al., 1987: 118). Pratica
o discurso irônico como forma de argumentação e reflexão, buscando a conivência
do recptor em novas leituras de velhos episódios. Tal opção causa dúvidas, gera
polêmicas, desmistifica outros discursos amplamente disseminados no corpo social
como verdades incontestáveis, exigindo uma postura ativa do destinatário.
Na crônica IX , da unidade "Traços a Esmo", da primeira parte de Linhas
Tortas, o cronista apresenta um texto sobre a Semana Santa. Contrariamente ao que
se esperava do preceito religioso do jejum, conclui, ironicamente, que, nessa
época do ano, ocorria uma larga indigestão entre os penitentes que devoravam
tudo "com fé":
”A carne é fraca.” É dos evangelhos. Pelo menos foi o que me disseram, e eu não tenho
motivo para duvidar. Ora, é inegável que o estômago seja feito de carne. Como exigir,
pois, da fraqueza deste pobre órgão, elasticidade bastante para transformar numa jibóia
o mísero bípede religioso que nós somos? (Ramos, 2005: 103).
A ironia vem de um narrador não confiável, que descreve, seleciona e
comenta de uma perspectiva que é favorável a seus interesses. Sua não
confiabilidade decorre do ato de dizer uma coisa para sugerir outra,
desmistificando a própria construção textual. Sua crônica de apresentação no jornal
Paraíba do Sul apresenta essa questão. O narrador se questiona sobre a identidade
do leitor, sobre o que deve escrever e sobre a cor política da publicação para a qual
começava a trabalhar. Informa que não conhece seu interlocutor e que não lhe
poderia dizer nada de agradável. Falaria apenas o que pensava:
Há por vezes ocasiões em que um mísero rabiscador tem necessidade de fazer grandes
volteios, circunlocuções sem fim, somente para furtar-se àquilo que algum simplório
poderia julgar talvez ser o fito único de um indivíduo que escreve - dizer o que pensa
(Ramos, 2005: 25).
Logo em seguida, se contradiz dizendo que escreverá conforme o padrão
do leitor, respeitando os limites impostos pelo jornal. Além disso, tendo afirmado
que o desconhecia, dá indícios de que sabe quem ele é, confirmando a hipótese
de um narrador não confiável, que a todo o momento põe em xeque a veracidade
do relato:
Mas - com a breca! - isso é assim mesmo. Eu não sou tão idiota que vá dizer alguma
palavra que não esteja de acordo com as opiniões gerais. Tomo, portanto, o partido de
não dizer nada por enquanto. Preciso primeiro conhecer-te leitor amigo. Sei que és
cortês e hospitaleiro, apesar de tudo (Ramos, 2005: 27).
Tal sujeito de enunciação, ao mesmo tempo em que aparenta se deter na
superficialidade dos fatos, em razão do tom leve e jocoso adotado, mostra certa
densidade crítica. Busca uma construção frasal que provoque mais de uma
significação. Do ponto de vista do discurso literário, o texto mais interessante seria
aquele que abrisse o maior leque possível de alternativas e interpretações,
destacando-se pela ambigüidade. Porém, deve guardar também alguns pontos de
Os textos da primeira parte de
Linhas Tortas não possuem títulos por
extenso, sendo apenas nomeados por
algarismos romanos.
6
6
identidade de repertório a fim de possibilitar ao destinatário um fio de
compreensão que possa se alargar e se tornar produtivo. A oscilação entre
informação e redundância, num jogo de inter-relações, possibilita uma mensagem
vasta e ao mesmo tempo compreensível. Essa é a perspectiva da retórica do bemdizer
observada em seus textos.
Já foi destacado que, com o deslocamento do gênero crônica, ele passava,
cada vez mais, a enfatizar a experiência subjetiva construída de seu autor. Nesse
processo, há também a evocação constante de um passado remoto em que
emerge o saudosismo do cronista na busca de uma situação idílica. Esse
procedimento (observado, sobretudo, em Rubem Braga) não é utilizado por
Graciliano. Para ele, não há uma cartilha mágica, uma casa ou uma família dos
sonhos. Suas experiências materializadas nas crônicas trazem a confirmação
negativa do estado presente, sem lirismo ou melancolia. O instante captado só
vem reforçar a crueza e o pessimismo que acompanham seus textos.
Textualmente, procura em suas crônicas uma prosa acessível e clara, mas
sem maiores concessões. Sua sintaxe oscila entre a descontração da fala, próxima
da conversa entre duas pessoas, e a correção própria da norma culta. Os textos
se aproximam de uma oralidade construída, em que coloquial e literário se
equilibram no diálogo constante com o leitor.
Complementando o que já foi dito, na primeira parte de Linhas Tortas,
Graciliano preocupa-se mais com a captação da prática social, em seus aspectos
mais corriqueiros tais como alguns incidentes do cotidiano, a descrição de certos
tipos culturais e a crítica às grandes instituições do tecido social (Igreja, política e
agremiações literárias). Isso não quer dizer que ele represente o real mas, sim, que
incorpora discursos sobre esse mesmo real. O narrador dessas crônicas institui
uma sociedade imaginária - uma comunidade interiorana hipotética com
referência concreta onde o narrador insere o leitor como personagem.
Na segunda parte do livro, com o autor já estabelecido definitivamente
na capital carioca , seu narrador se concentrará numa prática social específica:
a literatura e a vida literária; o que não quer dizer que, vez por outra, ele aborde
o cotidiano do Rio de Janeiro, relembre o passado alagoano ou comente fatos
internacionais como a II Guerra Mundial. Ele incorpora discursos com os quais
agora convive com mais intensidade como ficcionista renomado, no centro
cultural do país.
Em três momentos diferentes do livro, é possível divisar três personas literárias
com perfis psicológicos distintos; cada uma assina os textos à sua maneira. A primeira
parte é dividida entre R.O. (Ramos Oliveira, os sobrenomes do escritor), que escreve
para o jornal Paraíba do Sul, e J. Calisto (pseudônimo), cronista de O Índio (de
Palmeira dos Índios). Na segunda parte, há predomínio total da assinatura do próprio
Graciliano Ramos, que colabora em grandes jornais e revistas cariocas .
Nessas situações, percebe-se que o cronista não estaria representando o
real, mas imitando conceitos de realidade ou discursos sobre o cotidiano vivido.
4 Os diferentes narradores
7
Depois de passar quase um
ano preso pelo governo getulista,
Graciliano é libertado em janeiro de
1937 e decide se estabelecer de
forma definitiva no Rio de Janeiro.
7
Conseguiu-se identificar
apenas 30%, aproximadamente, das
crônicas da segunda parte do volume
Linhas Tortas. A semelhança temática
e qualitativa entre esses textos
localizados e aqueles que ainda
permanecem obscuros (sem data e
local de publicação) permite
aproximá-los e apresentá-los como
pertencentes a este período posterior
à sua saída da prisão e estabelecimento
no Rio de Janeiro, em 1937.
8
8
Em outros termos, cria um fato que não tem fidelidade exclusiva ao fato, mas às
tópicas próprias do gênero crônica, como já foi mencionado anteriormente. Ele
inventa um universo ficcional paralelo à empiria dos fatos.
Com os cronistas R.O. e J. Calisto, o fingimento poético fica mais evidente.
Tais crônicas funcionam como laboratório para a futura ficção romanesca que
atingirá a maturidade quando o autor assinar os textos com seu nome civil.
Na seção "Traços a Esmo", da primeira parte do livro, cria um "Eu",
J. Calisto, que se sobrepõe às personagens e aos fatos apresentados. Ele não seria
apenas um pseudônimo, mas uma personagem criada por Graciliano para entrar
em contato com o leitor e cativá-lo. Trata-se de um observador sócio-cultural que
assume uma postura superior aos que lêem, sem deixar de incorporar elementos
de uso comum destes. Vive constantemente essa relação dialética: ao mesmo
tempo em que se distancia, apresenta elementos do próprio cotidiano dos leitores
para que eles se aproximem de seu relato. O próprio uso de uma linguagem ágil,
marcada pela oralidade é mostra dessa aproximação. Tudo isso por meio do
humor e da ironia.
Quando Graciliano assina com o próprio nome, em sua segunda
permanência no Rio de Janeiro, o escritor já havia criado um perfil cultural e
artístico bem definido . O cronista que fala apresenta um discurso proveniente
de uma entidade cultural chamada Graciliano Ramos, que necessariamente não é
o homem Graciliano. Essa entidade produz textos com unidade e independência
que tentam ser condizentes com sua posição de grande escritor. Deseja manter a
seriedade e o compromisso com essa imagem.
Um parentesco curioso entre dois textos atesta a diferença de postura
entre o narrador J. Calisto, da primeira parte do livro, e o narrador Graciliano
Ramos, da segunda parte. Tratam-se, respectivamente, das crônicas VI da seção
"Traços a Esmo", escrita em 1921, e "Um novo ABC", que data de 1938. Apesar
dos 17 anos que as separam, apresentam o mesmo tema: a incompatibilidade
entre a imaginação das crianças e o livro infantil.
No primeiro texto, o narrador fala do livro infantil, baseando-se em sua
experiência subjetiva. Seu objetivo principal é criticar a educação oferecida às
crianças em um tom joco-sério. Relembra a "gramática pedantesca", a aversão a
seu educador e ao Barão de Macaúbas , a obrigação de ler Camões aos oito
anos, entre outros fatos. Questiona o leitor, perguntando se ele não teria passado
pelos mesmos tormentos:
Quem não se lembra com enjôo do compêndio sebáceo dos tempos escolares,
salpicado de tinta, amarrotado, com as páginas despregadas, páginas que, quando se
iam, nos deixavam uma consoladora sensação de alívio? (Ramos, 2005: 92)
Depois de muito relembrar, termina a crônica com uma imagem
metafórica:
Os livros infantis! Que livros! São paus de sebo a que a meninada é compelida a trepar,
escorregando sempre para o princípio antes de alcançar o meio, porque afinal aquilo
é um exercício feito sem o mínimo interesse de chegar ao fim. (Ramos, 2005: 94)
Já no segundo texto ("Um novo ABC"), a experiência subjetiva do
narrador serve de contraponto para elementos da vida literária da capital. O
narrador tinha acabado de receber um livro escolar do cronista e romancista
9
Quando começa a colaborar
com imprensa carioca em 1937, já
havia publicado três romances: Caetés
(1933), S. Bernardo (1934) e
Angústia (1936). Era conhecido nos
meios literários nacionais e
internacionais.
9
Trata-se do educador Abílio
César Borges (1824 - 1891) autor da
Epítome da Gramática Portuguesa
(1860). Tal personagem já fora
representado no romance O Ateneu
de Raul Pompéia, na figura do Dr.
Aristarco Argolo de Ramos.
10 10
carioca, Marques Rebelo. O novo ABC tinha legendas do próprio Marques Rebelo
e ilustrações de Santa Rosa , "dois artistas que há tempo tiveram livros premiados
no concurso de literatura infantil realizado pelo Ministério da Educação" (Ramos,
2005: 250). O cronista se questiona do paradeiro desses livros que, mesmo
premiados, continuavam inéditos. De sua posição de grande literato, defende a
viabilização destes e cita um exemplo irônico:
Marques Rebelo e Santa Rosa fizeram agora um pequeno álbum e a Companhia Nestlé
editou-o, espalhou quinhentos mil volumes entre os garotos do Brasil. Está certo. A
Companhia Nestlé não se dedica a negócio de livros, mas isto não tem importância:
parece que a melhor edição de obra portuguesa foi feita por um negociante de vinhos.
(Ramos, 2005: 250)
Lançadas essas questões, cabe agora uma análise específica de cada uma
desses cronistas distintos.
Em Linhas Tortas, Graciliano assina 16 crônicas com as iniciais R.O. Os
textos fazem parte de uma seção que possui o mesmo título do livro. Desses,
percebe-se que os três primeiros foram escritos para o Jornal de Alagoas, todos
no mês de março de 1915. Em seguida, inicia-se uma série de 13 crônicas para o
jornal Paraíba do Sul que vai de 15 de abril a 5 de agosto de 1915.
Diferentemente da trinca inicial , para o Jornal de Alagoas, nessas outras
13 crônicas há um esforço do cronista em criar uma identidade e um estilo. O
narrador apresenta-se como um personagem de ficção, que ganha relevo em meio
aos vários assuntos tratados. Pode-se dizer que esse conjunto do Paraíba do Sul
forma uma unidade bem acabada dentro da perspectiva do narrador-personagem
R.O. Há uma crônica introdutória em que o cronista se apresenta ao leitor, assim
como há uma de despedida. Em meio a esses dois textos, há um conjunto de
outros que tratam de variados temas, de acordo com a abrangência e amplitude
do próprio gênero.
Sua primeira crônica para o Paraíba do Sul é proemial, metalingüística e
de experimentação do canal (o jornal e o próprio gênero). Além disso, procura
caracterizar seu interlocutor:
Amável leitor.
Não tenho o prazer de saber quem és. Não conheço teu nome, tua pátria, tua religião
as complicadas disposições de teu espírito. Ignoro se tens a ventura de ser um pacato
vendeiro enriquecido à custa de pequeninas e honestas trapaças, ou se és um celerado
de figura sombria, calças rotas, botas sem salto e paletó ignobilmente descolorido com
remendos nas costas e sonetos inéditos nas algibeiras. É possível até que sejas uma
adorável criatura de tranças louras e dentes de porcelana e que agora, de volta da igreja,
onde ouviste uma detestável missa rezada por um velho padre fanhoso, abras este
jornal para afugentar um bocado de tédio que encontraste escondido entre as páginas
de teu manual encadernado a madrepérola. (Ramos, 2005: 25)
Tal crônica poderia ser vista como o prefácio de um livro que englobasse
apenas os textos feitos para essa publicação.
5 R.O., do jornal Paraíba do Sul
Artista nascido em 1909 na
Paraíba e morto em 1956, durante
viagem à Índia. Foi famoso em meados
do século XX, quando sua pintura,
seus desenhos e sua cenografia
questionavam os padrões vigentes.
Pela Editora José Olympio, Santa Rosa
realizou as capas originais de Angústia
(1936), Vidas Secas (1938), Insônia
(1947) e Memórias do Cárcere
(1953). Realizou ainda as capas das
segundas edições de São Bernardo
(1938) e Caetés (1947).
11
11
Nesses textos aparece um
cronista sério e indireto, mais atrelado
à materialidade dos fatos. Na crônica I,
o narrador apresenta os funcionários
de administrações municipais que
seriam coronéis em miniatura. Usa
uma série de imperativos para marcar
sua posição contrária a essa
burocracia espalhada pela máquina
estatal. Na crônica III relata o
apedrejamento e a destruição do
monumento de Eça de Queirós em
Lisboa. O fato serve de plataforma
para sua argumentação. Enaltece e
realiza uma defesa apaixonada da
figura de Eça e de seu realismo,
sobretudo, no que diz respeito à
construção de personagens realistas. A
exceção é a crônica II, em que utiliza
mais marcadamente a primeira pessoa
e um tom ficcional. Trata da migração
e do contato com a cultura da capital
por parte daqueles que vêm do
interior, revelando a influência do
meio sobre o indivíduo.
12
12
Como já foi insinuado no trecho acima, o cronista vale-se da
metalinguagem, deixando-se interpretar como um escritor fictício, cujas crônicas
simulam a vida de quem as escreve. Assim, a realidade dos textos confunde-se
com o registro das cenas no momento mesmo em que são inventadas, como se
os supostos acontecimentos brotassem da pena do protagonista-escritor, que não
só simula os fatos do cotidiano, mas também encena a redação das crônicas que
os inventa.
A crônica XI evidencia melhor tal questão, pois tem como assunto
principal o próprio fazer do jornalista (cronista). O narrador relata sua experiência
simultânea em dois jornais semanais com posições bem opostas: um que criticava,
e o outro que elogiava tudo. Para exemplificar essa oposição, apresenta fragmentos
de duas críticas literárias sobre o livro de estréia de uma escritora, feitas por ele
para os dois jornais antagônicos. Em seguida, resume seu trabalho,
desmistificando-o:
Como vêem os leitores, não poupei à sonetista os encômios que convém a uma
rapariga bonita, nem as acres censuras que todo o crítico que se preza deve atirar a um
mau poeta, embora, o poeta vista saias e a gente não tenha lido sua obra.
A coisa mais fácil do mundo é fazer crítica, fiquem sabendo, principalmente crítica
literária.
Eu, pelo menos, acho facílimo. As duas amostras que apresento são um ótimo
exemplo. Examinem os senhores. (Ramos, 2005: 53)
Ao mesmo tempo, R.O. trata da variedade de assuntos cotidianos que fazem
parte do gênero crônica: usa a mitologia para falar de prostituição, repercute a
descoberta de um médico que inventara um remédio que suprimia as dores do parto,
fala de sua paixão pelo cinema e questiona o tipógrafo do jornal. Parte de um fato
imediato (fait divers), usando-o como plataforma para seus comentários e invenções,
mas, vez por outra, desprende-se do acontecimento, mostrando mais autonomia em
suas tiradas irônicas e cômicas.
A unidade formada pelas crônicas do Paraíba do Sul também evidencia
um final textualmente visível para o leitor. Há uma crônica de despedida, a XVI,
em que o narrador apresenta as razões para sua saída da publicação. O texto
possui a estrutura de uma carta e se dirige a Rodolfo, o suposto editor do jornal.
Rodolfo teria criticado a postura do cronista, o qual interveio numa polêmica
literária envolvendo dois escritores: Humberto de Campos (1886-1934) e
Carlos Maul (1887-1974) . R.O. usou o rótulo "campeões letrados" para
caracterizar as duas figuras, o que teria desagradado o editor. Segundo este,
apenas o primeiro poderia ser designado como tal.
O cronista, em tom metalingüístico, comenta e justifica seu procedimento
adotado na crônica que originou a polêmica : a categoria "campeões letrados",
além de ter sido escolhida aleatoriamente, poderia ser aplicada a qualquer sujeito
ligado às letras.
Ao que tudo indica, essa justificativa parece banal e daria a entender que o
narrador também encenaria sua despedida das páginas do Paraíba do Sul. Pode-se
considerar, hipoteticamente, que o suposto editor deveria ter vetado tal crônica
polêmica, antes que ela tivesse sido veiculada, ao invés de mandar a mencionada carta
de repreensão ao seu colaborador. Ele também poderia não ter publicado a carta
(texto final) em que R.O. lhe dirige uma série de considerações irônicas e críticas
diretas, como a apresentada nas últimas linhas:
13
Literato, jornalista,
político, crítico maranhense.
13 14
Jornalista, escritor e 15
poeta originário de Petrópolis.
14
Trata-se da crônica XV da
seção "Linhas Tortas" da
primeira parte do livro.
15
N.B. Tenho meditado sobre o conselho que me deste de tomar um banho de água
benta. Preciso de uma pia muito grande, principalmente agora, que somos dois ao
banho: tu e eu. (Ramos, 2005: 69)
Coloca-se em dúvida a própria existência da carta e da figura de Rodolfo.
"Em junho de 1915, a Gazeta de Notícias se interessaria em publicar
[suas] crônicas feitas para o Paraíba do Sul e ofereceria uma vaga de revisor"
(Moraes, 1992: 35). A revista Concórdia também aparecia como uma
possibilidade: um amigo lhe pedira uma foto e algumas frases sobre sua pessoa
para a revista, que também publicaria uma crônica sua. Dessa maneira, a capital
carioca acenava-lhe com boas possibilidades para uma carreira de escriba.
Contudo, em fins de agosto desse mesmo ano, recebia um telegrama do pai que
lhe traz notícias funestas: três de seus irmãos haviam morrido num só dia, em
decorrência de uma epidemia de peste bubônica que assolava Palmeira dos
Índios. Deveria partir do Rio de Janeiro e voltar para o sertão.
Das crônicas do Paraíba do Sul às de O Índio há um intervalo de seis
anos. Nesse período, Graciliano deixara de colaborar com todos periódicos e
dedicara-se à Loja Sincera, negócio de seu pai. Todavia, em 1921, começava a
trabalhar no pequeno jornal palmeirense do padre Macedo (O Índio). Linhas
Tortas reúne doze textos escritos para essa publicação sob o pseudônimo de J.
Calisto entre janeiro e abril de 1921. No jornal, as crônicas faziam parte da coluna
"Traços a Esmo"; o mesmo nome da seção em que estão agrupadas no livro.
As crônicas de O Índio formam também um conjunto orgânico que
parece continuar o trabalho realizado no Paraíba do Sul. Porém, com o cronista J.
Calisto, Graciliano aprimora traços do narrador R.O., sobretudo, no que diz
respeito à criação daquele tipo irônico e sarcástico. Trata-se também de um tipo
benevolente, astucioso e gaiato que opina sobre as questões que aborda, valendose,
mais nitidamente, do humor machadiano.
Em sua crônica preâmbular em O Índio fica mais evidente o jogo do
cronista com as várias funções da linguagem . Primeiramente, ganha relevo o
emissor (função emotiva). Na medida em que este agride e afaga o leitor, e
também se autodeprecia, acaba se apresentando como um personagem
excêntrico, que centraliza a crônica e busca cativar seu interlocutor por meio da
inversão irônica:
Estou aqui de passagem. Sou hóspede nesta folha. Quando me der na telha, arrumo a
trouxa e vou-me embora. Em minha rápida conversação contigo, meu interesse é muito
limitado. Se tiveres paciência de ouvir-me, bem; se não, põe o teu chapéu e raspa-te.
(Ramos, 2005: 70)
O narrador apresenta-se, na maioria das vezes, por meio de um monólogo
na forma de um pseudodiálogo, em que ganha destaque a sua suposta
despretensão. Nesse tipo de construção, por mais que o receptor seja mencionado
por meio de vocativos e da segunda pessoa (função conativa), o destaque continua
sendo o emissor:
6 J. Calisto, do jornal O Índio
16
É lançada no Rio de Janeiro
em 1874 pelas mãos de Ferreira de
Araújo, caracterizando-se por dar mais
espaço à literatura.
16
17
Utilizo as definições estanques
sobre as funções da linguagem,
presentes em Lingüística e
Comunicação de Roman Jakobson, pp.
119 a 162.
17
Prefiro dizer-te francamente o que penso de ti, leitor amigo. Talvez seja assim melhor
para nós ambos. Para ti, que procurarás corrigir-te; para mim que ficarei tranqüilo com
a minha consciência. Podemos ser bons amigos. É até provável que assim aconteça. Se
não acontecer, paciência. (Ramos, 2005: 71)
Contudo, no início do texto, há um momento em que o emissor buscar
definir o leitor, inserindo-o, de forma direta, no interior da crônica, como um
personagem:
[Referindo-se ao leitor] Eu já sei quem tu és. Não é preciso que me digas teu nome, tua
profissão, algumas mazelas que por acaso - quem não as possui? - te ornam o caráter.
Mas tu, decerto, não queres palestrar com um desconhecido. (Ramos, 2005: 70)
A função referencial não apresenta tanto destaque nesta crônica. A
centralização no emissor desloca a importância do contexto, colocando em relevo
a própria enunciação - o pseudodiálogo proferido por esse narrador.
Por outro lado, a função fática ganha ênfase, sobretudo, quando o
narrador explicita como fora a sua escolha para trabalhar no jornal em que está
escrevendo. Coloca em questão o próprio canal, apesar de continuar falando de
si mesmo. Ao mesmo tempo, revela a autodepreciação que o caracteriza:
"No páreo que se fez, para escolher o pessoal desta casa, houve candidatos que se
portaram lamentavelmente. Eu que fui o último a alcançar a meta, cheguei cansado,
deitando alma pela boca, positivamente estropiado. Não obstante, como os
concorrentes eram poucos, necessário se fez conceder a todos prêmios de animação.
Os que melhor correram estão ali pelo artigo de fundo e circunvizinhanças. Eu e alguns
que venceram por uma pequena diferença de cabeças escondemo-nos bisonhamente
por estes recantos. (Ramos, 2005: 72-73)
Paralelamente, a metalinguagem marca seu estilo. Ele encena a própria
redação dos textos que inventa, revelando o lugar-comum da crônica: a superfície
dos fatos: "Não esperes, pois, encontrar nestas crônicas coisas transcendentes. A
profundidade assusta-me e é muito provável que assuste também a ti, leitor amigo.
Fiquemos calmamente à superfície" (Ramos, 2005: 73).
No que diz respeito à função poética, vale-se de uma metáfora dura que
reforça o tom de (pseudo) agressão e de ironia. Simultaneamente, mostra sua
utilidade e disposição em ensinar aquele que o lê. Dessa maneira, mantém uma
relação dialética com o leitor:
Não desejo ser-te agradável; prefiro ser-te útil. Sou assim uma espécie de vendedor
ambulante de sabão para a pele, de ungüento para as feridas, de pomada para calos.
Talvez não encontres virtude em meus medicamentos. Pode ser que os calos de tua
consciência continuem duros e não sintas melhora na sarna que porventura tenhas na
alma, doenças que te não desejo. Em todo caso, teu prejuízo será pequeno. O remédio
nada te custa. Se a doença te mata, tanto pior para ti e para teus credores, mas terás a
satisfação de dizer que recorreste a uma botica. (Ramos, 2005: 72)
Percebe-se nessa crônica, por meio dos recursos utilizados, o esforço em
criar uma identidade e um estilo. Nos outros textos, que completam essa seção,
continua a ênfase no próprio narrador: o personagem J. Calisto, que se sobrepõe
aos personagens e aos fatos apresentados. Contudo, se observa um apelo maior
para o contexto imediato dos leitores. Ao mesmo tempo em que o cronista se
apresenta como um ser superior, que observa as situações criticamente, introduz
elementos do cotidiano dos interlocutores para que estes se identifiquem,
possibilitando, assim, uma comunicação mais próxima e efetiva.
Como se sabe, Graciliano foi preso em 1936, em Maceió, acusado de
participar da Intentona Comunista de 1935. Logo em seguida, o escritor foi
levado para o Rio de Janeiro, onde ficou preso até janeiro de 1937. Após sua
libertação, ele decide fixar-se na capital carioca e se dedicar, sobretudo, à carreira
de literato. Passa a escrever crônicas, contos e artigos para vários jornais e revistas.
"Era uma atividade voltada principalmente para a obtenção de recursos que
completassem o magro orçamento formado por direitos autorais de livros e por
parcos ordenados de inspetor federal de ensino e revisor do Correio da Manhã"
(Bosi et al, 1987: 118).
Inicialmente, o escritor e amigo José Lins do Rego introduziu Graciliano
à intelectualidade carioca. Gradualmente, ele começava a fazer parte da vida
literária da capital, participando de atividades, como as listadas abaixo:
Almoços em casa de Álvaro Moreyra, no célebre endereço da rua Xavier da Silveira,
99, em Copacabana; bate-papos nos cafés, nos quais se tornaria amigo de Candido
Portinari, Rodrigo Mello Franco de Andrade, Rubem Braga e Manuel Bandeira; idas à
Revista Acadêmica a convite de Murilo Miranda, Lúcio Rangel, Moacir Werneck Castro
e Carlos Lacerda; no consultório de Jorge de Lima, na Cinelândia, conheceria Murilo
Mendes e Alceu Amoroso Lima [...] Com o passar dos meses, ele iria descobrir o prazer
da roda literária na Livraria José Olympio, com José Américo de Almeida, Octávio
Tarquínio de Sousa, Marques Rebelo, José Lins do Rego, Jorge Amado, Prudente de
Morais, neto, Josué Montello, Adalgisa Nery e Amando Fontes, entre outros. (Moraes,
1992: 153)
Percebe-se que ele vai se relacionando com as principais figuras do
universo literário e cultural do Rio, sendo reconhecido como um grande escritor.
Em 1937, toda a edição de maio da Revista Acadêmica foi dedicada a sua
obra. Ele também recebera o prêmio Lima Barreto.
Os artigos [da revista] viriam assinados por três membros da comissão julgadora -
Mário de Andrade, Aníbal Machado e Álvaro Moreyra - e por 11 colaboradores, entre
eles Oswald de Andrade, Rubem Braga, Peregrino Júnior, Jorge Amado e Nicolau
Montezuma, (pseudônimo de Carlos Lacerda). (Moraes, 1992: 155-156)
Contando com o respaldo da intelectualidade da capital, a figura do
grande escritor Graciliano Ramos consolidava-se. Com isso, ele começa a
participar com mais constância do discurso cosmopolita; o grande diálogo
nacional em que se discutia literatura intensamente. Trata-se de um momento de
polarização política e literária em que se percebe o esgotamento do romance
social . Sua fala intervém nessa massa discursiva e seu referente passa a ser,
sobretudo, a produção cultural (literária) do momento em que vivia. Essa opção
estende-se até o momento de sua morte em 1953.
7 O cronista Graciliano Ramos, na grande imprensa carioca
18
Tratava-se de uma publicação
de vanguarda, com posições antifascistas
e de esquerda, porém sem
vínculo partidário direto.
18
19 Para mais informações sobre
contexto literário da época, ver a tese
de doutoramento Uma História do
Romance Brasileiro de 30, de Luís
Bueno Camargo, defendida no
Instituto de Estudos da Linguagem da
Universidade Estadual de Campinas.
19
As crônicas, publicadas nos grandes jornais formadores de opinião, eram
o canal direto para a entidade literária e cultural Graciliano Ramos manifestar seus
posicionamentos. Seus textos (discursos) buscavam ser condizentes com a sua
posição consolidada de literato; visavam manter a seriedade e o compromisso. Em
sua maioria, as crônicas tentam se colocar como documentos de crítica que
revelariam a "verdade literária" carioca na 1º primeira metade do século XX.
Em comparação com a primeira parte do livro, nota-se que seu discurso
está muito mais enraizado nos fait divers de natureza artística, que servem, por sua
vez, de plataforma para a manifestação da idéia que faz da literatura brasileira
nesse momento. O estilo descritivo reforça a verossimilhança. O tom mais sério
reduz o humor e o sarcasmo dos escritos anteriores, mas permitem a continuação
do uso incisivo da ironia. O crítico predomina sobre o cronista: "assim se explica
o progresso pouco sensível entre as suas crônicas escritas de 1937 em diante e
a colaboração de J. Calisto n'O Índio" (Broca, 1972: 11).
Das 71 crônicas que compõem a segunda parte do livro Linhas Tortas, 40
tratam, exclusivamente, de literatura e da vida literária nacional. Há críticas a
inúmeros livros, descrição dos concursos literários promovidos por revistas,
livrarias e pelo governo e considerações sobre literatura, que deixam claro o
projeto literário concebido pela persona Graciliano Ramos. Os outros 31 textos
versam sobre temas diversos, abordando o cinema, o teatro, a música, cenas
cariocas e a II Guerra. Contudo, mesmo quanto trata do conflito mundial, por
exemplo, o escritor destaca aspectos literários. Na maioria das vezes, os fatos são
utilizados para se discutir literatura.
Graciliano realiza a defesa dos "realistas críticos", na maioria romancistas
nordestinos de sua geração que abordavam questões sociais, contrapondo-os aos
que praticavam uma espécie de "espiritismo literário", já que deixariam de lado os
problemas nacionais .
Tal posição atinge seu ápice com o texto "O fator econômico no romance
brasileiro", em que o cronista desenvolve uma leitura crítica da produção dos
romancistas nacionais, dizendo que boa parte desta seria marcada pela ausência
de uma observação cuidadosa dos acontecimentos e pelo desprezo por aspectos
econômicos. Ao mesmo tempo, critica o lirismo vazio e fantasmagórico, que por
deixar de lado a concretude dos fatos, acabaria resultando numa análise de cima
para baixo da sociedade. Segundo o narrador, tais omissões afetariam a
verossimilhança dos textos, levando-se em conta sua preocupação crescente de
que a literatura deveria representar a "realidade vivida":
Os romancistas brasileiros, ocupados com política, de ordinário esquecem a produção,
desdenham o número, são inimigos de estatísticas. Excetuando-se as primeiras obras
de José Lins do Rego e as últimas de Jorge Amado, em que assistimos à decadência
da família rural, queda motivada pela exploração gringa sobre os engenhos de bangüê
e as fazendas de cacau, o que temos são criações mais ou menos arbitrárias,
complicações psicológicas, às vezes um lirismo atordoante, espécie de morfina, poesia
adocicada, música de palavras. (Ramos, 2005: 363).
O autor aborda também o próprio fazer literário de um ponto de vista
crítico, destacando a aspereza da empreitada. Para ele, o estalo criativo
(proveniente de alguma emanação divina) daria lugar à paciência e à consulta ao
dicionário. Opõe os escritores que realmente trabalham e que dependem da
20
Depois de 1935, ganha vulto
a chamada literatura intimista ou
psicológica. O interesse pelo indivíduo
é radicalizado com destaque para
personagens ficcionais pertencentes à
burguesia. Deixa-se de lado a menção
às massas. Destaque para Jorge de
Lima, José Geraldo Viera, Lúcio
Cardoso e Octávio de Faria.
20
literatura para sobreviver aos "literatos por nomeação". Usa os membros da
Academia Brasileira de Letras (ABL) para exemplificar essa segunda categoria. Na
crônica "Os sapateiros da literatura" , Graciliano associa o fazer do verdadeiro
escritor ao trabalho de um sapateiro honesto. Da mesma maneira que este domina
o manuseio de seus instrumentos, aquele deve saber escrever. Constrói uma série
de analogias entre o romance e o sapato e a própria composição destes:
Dificilmente podemos coser idéias e sentimentos, apresentá-los ao público, se nos falta
a habilidade indispensável à tarefa, da mesma forma que não podemos juntar pedaços
de couro e razoavelmente compor um par de sapatos, se os nossos dedos bisonhos
não conseguem manejar a faca, a sovela, o cordel e as ilhós. (Ramos, 2005: 268)
O narrador também direciona sua artilharia para os leitores empíricos de
romances que, em sua maioria, desconfiavam da mercadoria literária nacional.
Destaca o sugestivo artifício de mudar o rótulo dos romances brasileiros,
traduzindo-os para o francês, por exemplo, como forma de convencer os
compradores de que, aqui no Brasil, eram produzidas boas obras. Ironicamente,
sugere que os romances fossem exportados e depois importados como forma de
"melhorá-los" na percepção do público.
No discurso do cronista sobre a vida e produção literária carioca destacase
um episódio, colocado em relevo em duas oportunidades: a polêmica do
concurso Humberto de Campos, organizado pela livraria José Olympio. Nele
chegaram ao último escrutínio Luís Jardim e Viator, pseudônimo que, depois se
soube, pertencia a Guimarães Rosa. Trata-se de um fato específico, mas que ganha
magnitude por se tratar da relação entre dois dos literatos brasileiros mais
celebrados pelo discurso da crítica no século XX. A descrição pormenorizada do
acontecimento dá aos textos status de documentos de interesse histórico e
literário. A opção de retratar os bastidores da premiação põe abaixo as cortinas
que escondiam os procedimentos desse universo artístico, revelando os autores
além de seus textos.
Graciliano considerou o livro de Viator "terrivelmente desigual",
apresentando momentos grandiosos e ordinários, por isso votou contra ele. Na
primeira crônica sobre o assunto, "Um livro inédito", o narrador destaca que,
mesmo tendo votado contra Viator, considerava-o um escritor de grande valia,
apesar "dos contos ruins e de várias passagens de mau gosto" (Ramos, 1962:
155). Questionava o desaparecimento deste após a derrota e afirmava que seu
livro deveria ser publicado, mesmo com as passagens ruins para justificar os votos
do júri Humberto de Campos. Já na segunda crônica, "Conversa de bastidores" ,
Graciliano retoma o episódio do concurso sete anos depois, quando Rosa
acabara de lançar seu primeiro livro, Sagarana, que reunia boa parte dos contos
apresentados ao tal júri. Nessa crônica, Graciliano tenta explicar a situação,
mostrando um certo tom de remorso, pois vacilara na escolha. Relata o seu
encontro com Rosa em 1944, recriando um suposto diálogo com este:
- O senhor figurou num júri que julgou um livro meu em 1938
- Como era seu pseudônimo?
- Viator.
- Ah! O senhor é o médico mineiro que andei procurando. [...]
- Sabe que votei contra seu livro?
- Sei, respondeu-me sem nenhum ressentimento. (Ramos, 2005: 353)
21
Essa crônica, juntamente com
"Os tostões do Sr. Mário de Andrade",
é uma resposta ao artigo "A Raposa e
o Tostão", publicado por Mário de
Andrade, em 1939, no Diário de
Notícias do Rio de Janeiro.
21
22
Tal crônica saiu publicada
pela primeira vez na revista A Casa,
número de junho de 1946 e depois
reproduzida em vários jornais do país,
inclusive em A Tribuna, de Santos, em
06 de outubro de 1946. (Em
MEMÓRIA de Guimarães Rosa, 1968)
22
Logo em seguida, o narrador afirma que reiterou as críticas que fizera
ainda durante o concurso de 1938. Rosa teria concordado com ele, suprimindo
os contos mais fracos. Essa ressalva legitima a aparente falha do crítico Graciliano,
preservando sua posição.
Da mesma maneira que na primeira parte do livro o narrador voltava-se,
sobretudo, contra aspectos da Igreja e da política, na segunda parte de Linhas
Tortas a crítica recai, incisivamente, sobre as instituições literárias . No texto
"Uma eleição", o foco é a Academia Brasileira de Letras, "casa onde existem
numerosos médicos e alguns literatos" (Ramos, 1962: 182). A ironia continua ao
criticar abertamente a instituição, afirmando que ela daria preferência a escritores
inofensivos, visando sua autopreservação.
Se, na primeira parte de Linhas Tortas, os diferentes narradores, R.O. e J.
Calisto, valiam-se da metalinguagem para comentar as crônicas que escreviam,
encenando a redação dos textos, na segunda parte do livro, além desse
expediente, o narrador Graciliano Ramos discute mais intensamente elementos de
sua própria produção como romancista. Segundo Brito Broca (1903-1961) , "o
ficcionista acabou absorvendo o cronista" (Broca, 1972: 11). Dessa maneira,
desmistifica alguns elementos da criação literária, humanizando-se diante do
leitor.
No texto "Alguns tipos sem importância", feito a pedido do próprio Brito
Broca , que gostaria de saber como foram criados os personagens de seus
romances, Graciliano debruça-se sobre sua própria obra literária por meio da
crônica. O próprio título já demonstra auto-depreciação, que serve de justificativa
para falar de si mesmo num texto de jornal. O cronista diz que as obras depois
de publicadas ganham vida, além de qualquer intencionalidade pensada:
... - os leitores vêem o que não tive a intenção de criar, aumentam ou reduzem as
minhas figuras, e isto prova que nunca realizei o que pretendi. Referindo-me, portanto,
a essa cambada não penso no que ela é hoje multiforme, incongruente, modificada
pelo público, mas nos tipos que imaginei e tentei compor inutilmente. Falharam todos.
Esta declaração é necessária: talvez não anule, mas pelo menos atenuará uns toques
de vaidade que por acaso apareçam nas linhas que se seguem. (Ramos, 2005: 278).
Em seguida, relata seu começo ocasional como literato redigindo "contos
ordinários", dos quais partiram suas três obras iniciais. Caetés, S. Bernardo e
Angústia. Logo depois, fala de Vidas Secas que apareceu, inicialmente, com o
conto "Baleia" e depois foi se expandindo de forma fragmentada; cada novo
trecho poderia ser lido separadamente ou como um capítulo do livro.
8 Referências Bibliográficas
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Imprensa Nacional/Casa da Moeda.
ARRIGUCCI, Davi (1997). Braga de novo por aqui. In: BRAGA, Rubem.
Os melhorescontos de Rubem Braga, São Paulo, Global, pp.5-27.
23
24
Há muito tempo Graciliano
era contrário a essas agremiações. Em
inquérito literário realizado pelo Jornal
de Alagoas, quando Graciliano
possuía apenas 17 anos, ele critica a
criação de uma Academia Alagoana
de Letras - "Será uma instituição que
não trará desenvolvimento algum à
literatura no nosso estado. Sempre o
espírito da imitação! Uma academia,
em Alagoas, não será mais que uma
caricatura da Academia Brasileira de
Letras. E o resultado? Teremos meia
dúzia de "imortais" que, escorados em
suas publicações de duzentas páginas,
olharão por cima dos ombros os
amadores que estiverem fora da
panelinha acadêmica". (Sant'anna,
Moacir, 1992:43)
23
Começou como jornalista em
1927 n'A Gazeta , de São Paulo e
colaborou no jornal Correio da Manhã
e na Revista do Livro, do Rio de
Janeiro. Foi tradutor e prefaciador de
obras literárias na Livraria José
Olympio.
24
________(1985). Fragmentos sobre a Crônica. In: Boletim Bibliográfico.
Biblioteca Mário de Andrade, São Paulo, v.46, n.1-4, jan/dez, p.43-
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Em MEMÓRIA de Guimarães Rosa (1968). Rio de Janeiro: José
Olympio.
Thiago Mio Salla

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

A Última Crônica



A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever.




A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.




Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.




Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho -- um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triang ular.




A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.




São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: "parabéns pra você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa.




A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura -- ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido -- vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.




Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.




Fernando Sabino.




Texto extraído do livro "A Companheira de Viagem", Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1965, pág. 174.

terça-feira, 18 de setembro de 2007

Affonso Romano de Sant'Anna fala sobre Drummond


Pensar que faz vinte anos que Drummond se foi. E pensar que até já comemorarmos o centenário de seu nascimento. Embora ele ironicamente dissesse para a gente que logo que morresse seria esquecido, continua vivo, vivíssimo. E sua biografia ainda pode crescer. Estou me lembrando que numa entrevista ao Pedro Bial[1], o biógrafo de Drummond, José Maria Cançado[2], disse modestamente que o poeta era imbiografável. De fato a biografia, mesmo de um morto, está sempre em movimento, em gestação, crescendo no imaginário alheio. Enquanto houver escrita e memória, as coisas que se foram voltarão sempre.


Estava eu nesses dias lembrando-me de umas estorietas com o poeta com quem tive proximidade desde a adolescência e sobre quem já escrevi vastamente. Algumas já narrei na crônica “Perto e longe do poeta” (Fizemos bem em resistir. Rio de Janeiro: Rocco, 1994). Estou me referindo agora a outras estórias. Por exemplo, aquela sucedida no hospital, horas antes de ele morrer. Estava Drummond ainda meio lúcido, mas com dificuldade para falar. Sentiu aproximar-se de seu leito um dos netos que, carinhosamente, tentando amenizar a situação, começou a dizer ao avô que aquilo ia passar e que logo-logo estaria de volta à sua casa na rua Conselheiro Lafaiete.


Ouvindo aquilo e pressentindo que não era isto o que ocorreria, Drummond, que morreria horas depois, fez o último gesto irônico de sua vida. Levantou o braço e deu uma banana para a carinhosa frase do neto.


* Contou-me Candace Slater,uma brasilianista que dá aulas em Berckeley, que certa vez fora visitar o poeta. No meio da conversa, de repente, ele desferiu a frase: “Você é bonita”. Ela ficou meio sem jeito, por várias razões. Sobretudo, porque tinha uma marca no rosto, que a constrangia. A conversa continuou, Drummond pegou o telefone, conversou com Pitanguy[3] e Candace foi operada dali a dias.


* Contou-me Geraldo Dolino[4], o pintor que era muito amigo de Maria Julieta e Drummond, que quando o irmão mais velho do poeta, Altivo, morreu, Drummond sentiu necessidade de fazer algo em homenagem àquele irmão que tinha um defeito na perna. Na rua, passou por um mendigo, que lhe pedia esmola. Parou e perguntou-lhe diretamente: “Você quer uma muleta?”. O mendigo, surpreso, respondeu que sim. Mas prontamente deu-se conta de que talvez pudesse tirar mais de seu generoso doador: “Na verdade, eu precisava mesmo era de uma cadeira de rodas”, complementou.


O poeta já estava quase concordando, quando o mendigo adicionou: “Mas de preferência uma daquelas elétricas, o senhor sabe...”.
Meio impaciente, Drummond lhe disse: “Olha, é a muleta ou nada”. Ao que o outro imediamente concordou, ganhando o presente para ele útil, e para o poeta cheio de significado simbólico.



A poesia passou lá em casa.


* Um dia estava em minha casa à noitinha, quando da portaria me avisam que o “senhor Drummond” estava lá embaixo e se ele podia subir. Na hora, achei que era uma brincadeira do Yllen Kerr, que às vezes se identificava ao telefone e até pessoalmente com outro nome, de pura galhofa. Então, disse, pensando que era o Yllen, que poderia subir e continuamos, Marina [Marina Colasanti[5], escritora e mulher de Affonso] e eu, calmamente jantando. Eis – senão - quando, ao abrir a porta, nos deparamos com Drummond em carne e osso, portando sob os braços, como presente, um livro enorme de poemas dele ilustrado pela artista mineira Yara Tupinambá.


Entrou, conversamos mineira e cautelosamente. Ele até brincou com Alessandra, a filha menor, ainda menina. Marina até escreveu uma crônica “A poesia passou lá em casa”, registrando o episódio.


* Quando, nos anos 1960, estava eu escrevendo a tese de doutoramento Drummond, o gauche no tempo (4. ed. Rio de Janeiro: Record, 1992), fui várias vezes à casa dele. Ali, em seu escritório, oferecia-me um suco de cajú ou maracujá, conversávamos e deixou que levasse emprestadas as centenas de críticas publicadas sobre ele. Tinha pastas com tudo. Até com telegramas de congratulações pela publicação de seu primeiro livro em l930. Ele guardava tudo. Surpreendeu-me ver, mais tarde, na Casa Rui Barbosa, onde estão os seus arquivos, que tivesse guardado até uma cartinha adolescente que lhe enviei quando morava em Juiz de Fora.
Quando a tese ficou pronta, mandei-a, naturalmente, para ele. Percebi, por exemplo, que ele a lera atentamente, e que dava muita importância a esse tipo de trabalho, porque mandou-me cartas dando as fontes do poema da “Moça fantasma” ou explicando que o poema intitulado “Maud” era uma homenagem à amante de Enrico Bianco, que morrera num desastre aéreo. Também, depois da leitura da análise que fiz de “A bruxa”, fez uma correção de um “nesse” por “neste” no poema. E como eu havia notado que, no poema “Isto é aquilo” [6], a segunda estrofe só tinha nove versos, enquanto as demais tinham dez, numa carta de 23.2.1970 explicava e acrescentava: “Para aquele vazio da segunda estrofe de ‘Isto é aquilo’, descoberto por você (eu nunca havia reparado na mutilação em jornal e depois em livro), providenciei este enchimento {último verso}: “o boliche e o relincho”.


* Ele havia, portanto, lido atentamente a tese. Comentando o livro, me dissera: ”Mas você me desaparafusou todo”.


* Quando o livro mereceu os quatro prêmios nacionais de ensaio, Drummond foi o primeiro que me telefonava cumprimentando e às vezes me comunicando, antes que eu recebesse oficialmente o resultado.


Por outro lado, quando o livro foi publicado, como sucede com os autores, passei por uma livraria no centro do Rio e resolvi indagar se meu livro estava lá a venda. “Acabou, disse-me o livreiro. O poeta esteve aqui e comprou os 10 últimos exemplares”.


* Ao chegar dos Estados Unidos e ir dirigir a pós-gradução de Letras na PUC-Rio, fiz com os especialistas em computação daquela universidade um tratamento estatístico dos dados que havia levantado em minha tese. Eles conseguiram fazer vários gráficos e curvas que comprovavam visualmente os traços metafísicos da poesia de Drummond. Na ocasição, mandei para ele algumas fichas perfuradas (era assim o computador da época) em que apareciam seus textos trabalhados.


Espantado, ele até se divertiu com o fato.


* Meticuloso e implacável revisor, certa vez o leitor Messias Amaral dos Santos deixou com ele a edição da Nova Aguilar para autografar. Não apenas a autografou, mas fez-lhe um poema-dedicatória e ainda corrigiu todos os erros da edição. Já com a professora Clarice Fukelman aconteceu de Drummond dar-lhe dezenas de livros para um trabalho de leitura que fazia com presos e pobres. Entre esses livros, estava a edição das poesia de Dante Milano[7] - poeta que ele admirava - com uma série de correções que ele pacientemente fizera.



Prêmio Nobel.


* Quando eu fazia crítica semanal da Veja (nos anos 1970), Mino Carta[8] me ligou certa feita para saber como se poderia ter contato com o poeta, pois notícias vindas da Europa diziam que ele era forte candidato ao Nobel. Pedia-me que intercedesse para que o poeta desse uma entrevista preparatória. Constrangido, liguei para ele, expliquei a situação. Ele ouviu-me reticentemente. E, fosse para se proteger de alguma maneira ou não se expor, recusou-se a dar a entrevista. E, como se sabe, mais uma vez o Nobel não lhe foi dado. Ele bem poderia dizer ironicamente como Borges[9] nessa ocasião: “Não conceder-me o Nobel é uma velha tradição nórdica”.


* O poeta ficava colado ao seu telefone, como se não tivesse sido ele o autor daquele verso: “ao telefone perdeste muito tempo de semear”. Como ele se sentia protegido pelo telefone, mais à vontade, falava mais. A romancista Ruth Lauss confessou-me que gravava as conversas que tinha com ele.


Uma de suas namoradas, que conversava sempre com ele em torno da meia-noite, por telefone, me disse que foi para ela que ele fez um poema sobre o amor por telefone.


* Quando a Mangueira resolveu tomar a sua obra e biografia como tema do desfile de 1987 e fui convidado para desfilar na Comissão de Frente, ao lado da velha guarda da escola e de sambistas famosos, conversamos algumas vezes por telefone. Claro que ele não compareceu ao desfile, mas no dia seguinte me ligou para comentar e dizer de seu agradecimento pela lembrança.


* No princípio dos anos 90, alguns anos depois de sua morte, fui convidado para estar na banca de mais uma tese sobre Drummond. Mas não era uma tese qualquer. Era um trabalho escrito por Maria Lucia Pazzo Ferreira, sobre o erotismo em Drummond. Mas mais que isto, era uma tese em que o poeta havia sido co-orientador, pois, enquanto vivo, era muito amigo da autora e deu-lhe várias sugestões de leitura teórica sobre o assunto, indicando fontes para enfocar este assunto em sua obra.


Nessa ocasião, eu dirigia a Biblioteca Nacional e consegui para a instituição a doação das cartas que foram trocadas entre o poeta e a autora da tese.


* Sensação realmente estranha, estapafúrdia, ambígua e perfeitamente normal, no entanto, tive poucos dias antes da morte do poeta. Ele já estivera internado antes da morte de Maria Julieta. E a imprensa, prevendo que ele poderia morrer a qualquer momento, adiantava o obituário. É assim que a imprensa trabalha. Essas páginas, todas escritas recentemente sobre o Betinho, por exemplo, estavam escritas bem antes, creiam-me. Os jornais guardam obituários dos candidatos à morte. Às vezes, são pegos de surpresa. Mas querm tiver interesse e amigos nos jornais deveria até pedir para ler o que vão dizer após sua morte.


Ora, eu havia substituído Drummond como cronista no Jornal do Brasil , e lá o Zuenir Ventura[10], que dirigia o Caderno B, pediu-me que fizesse um ensaio sobre o poeta, porque ele poderia morrer a qualquer hora. Estranha, estapafúrfia, ambíngua e perfeitamente normal a situação. Ele vivo no seu apartamento e eu no meu, escrevendo o texto para após sua morte.


Acontece a morte de Maria Julieta. Encontro-me com ele no velório. Ele vivo e o jornal já com o texto sobre ele morto, não se sabia para quando. Pensei, deveria dar para ele ler. Ia ser engraçado. Ler vivo o que sobre ele se publicaria depois de morto.


Após sua morte, um dia recebo o telefonema de uma ex-aluna, dizendo-me que Drummond aparecera numa sessão espírita e que havia mandado dois recados. Ouvi-os. Um era para Dona Dolores: que dissesse a ela para não se preocupar porque ele estava muito bem. E pronunciava a palavra - GOVENA, pedindo que a transmitisse à Dolores, que ela saberia o que era aquilo.


Quanto a mim, dizia a amiga espírita, ele mandava dizer que o que mais gostara fora o título daquele meu texto estapafúrdio, estranho, ambíguo e normal, que o jornal publicara: “Vai, Carlos, ser gauche na eternidade”.


Fiquei muito preocupado. Pois se, do outro lado da vida, as pessoas têm que continuar a ler jornal, isso é um mau sinal.

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[1] Pedro Bial (1958): jornalista e apresentador brasileiro de televisão, conhecido por apresentar os programas Fantástico e Big Brother Brasil. (Nota da IHU On-Line)


[2] José Maria Cançado (1952-2006): escritor, jornalista e crítico literário brasileiro, autor de Os sapatos de Orfeu (São Paulo: Ed. Globo, 2006), biografia de Carlos Drummond. (Nota da IHU On-Line)


[3] Ivo Hélcio Jardim de Campos Pitanguy (1926): cirurgião plástico brasileiro de renome internacional. (Nota da IHU On-Line)


[4] Luiz Geraldo Dolino: pintor brasileiro, amigo de Drummond. (Nota da IHU On-Line)


[5] Marina Colasanti: jornalista e cronista, autora de diversos livros para público adulto e infantil. Confira crônicas de sua autoria, sobre Clarice Lispector, publicadas na edição número 228 da revista IHU On-Line, de 16-07-2007. (Nota da IHU On-Line)


[6] ANDRADE, Carlos Drummond de. Lição de coisas. In: Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002, p.500-502. (Nota da IHU On-Line)


[7] Dante Milano (1899-1991) foi um poeta brasileiro representativo da terceira geração do Modernismo. (Nota da IHU On-Line)


[8] Demetrio Carta, mais conhecido como Mino Carta (Gênova, 1933), é jornalista, editor, escritor e pintor ítalo-brasileiro. É considerado um dos mais importantes e influentes jornalistas no Brasil, estando ligado, de forma indissociável, à imprensa moderna do país, como atestam suas criações: a revista Quatro Rodas, o Jornal da Tarde, o extinto Jornal da República e as semanais Veja, IstoÉ e Carta Capital, a qual dirige atualmente junto com a Agência Carta Capital. (Nota da IHU On-Line)


[9] Jorge Luiz Borges (1899-1986): escritor, poeta e ensaísta argentino, mundialmente conhecido por seus contos. Sua obra se destaca por abordar temáticas como filosofia (e seus desdobramentos matemáticos), metafísica, mitologia e teologia, em narrativas fantásticas onde figuram os “delírios do racional” (Bioy Casares), expressos em labirintos lógicos e jogos de espelhos. Ao mesmo tempo, Borges também abordou a cultura dos Pampas argentinos, em contos como “O homem da esquina rosada” e “O sul”. Sobre Borges, confira a edição 193 da IHU On-Line, de 28-08-2006, intitulada Jorge Luiz Borges. A virtude da ironia na sala de espera do mistério. (Nota da IHU On-Line)


[10] Zuenir Carlos Ventura (1931), jornalista e escritor brasileiro, é colunista do jornal O Globo e da revista Época. Ganhou o Prêmio Jabuti, em 1989, na categoria reportagem, pelo livro 1968 - O ano que não terminou, que serviu de inspiração para a minissérie Anos rebeldes, produzida pela Rede Globo. (Nota da IHU On-Line)

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

Problemas de atualização

Estamos tenporariamente com problemas e manutenção e atualização do blog. Breve retomaremos a nossa publicação atualizada.

Obrigado pela compreensão.