terça-feira, 27 de outubro de 2009

Os namorados da filha

Quando a filha adolescente anunciou que ia dormir com o namorado, o pai não disse nada. Não a recriminou, não lembrou os rígidos padrões morais de sua juventude. Homem avançado, esperava que aquilo acontecesse um dia. Só não esperava que acontecesse tão cedo.
Mas tinha uma exigência, além das clássicas recomendações. A moça podia dormir com o namorado:
─ Mas aqui em casa.
Ela, por sua vez, não protestou. Até ficou contente. Aquilo resultava em inesperada comodidade. Vida amorosa em domicílio, o que mais podia desejar? Perfeito.
O namorado não se mostrou menos satisfeito. Entre outras razões, porque passaria a partilhar o abundante café-da-manhã da família. Aliás, seu apetite era espantoso: diante do olhar assombrado e melancólico do dono da casa, devorava toneladas do melhor requeijão, do mais fino presunto, tudo regado a litros de suco de laranja.
Um dia, o namorado sumiu. Brigamos, disse a filha, mas já estou saindo com outro. O pai pediu que ela trouxesse o rapaz. Veio, e era muito parecido com o anterior: magro, cabeludo, com apetite descomunal.
Breve, o homem descobriria que constância não era uma característica fundamental de sua filha. Os namorados começaram a se suceder em ritmo acelerado. Cada manhã de domingo, era uma nova surpresa: este é o Rodrigo, este é o James, este é o Tato, este é o Cabeça. Lá pelas tantas, ele desistiu de memorizar nomes ou mesmo fisionomias. Se estava na mesa do café-da-manhã, era namorado. Às vezes, também acontecia ─ ah, essa próstata, essa próstata ─ que ele levantava à noite para ir ao banheiro e cruzava com um dos galãs no corredor. Encontro insólito, mas os cumprimentos eram sempre gentis.
Uma noite, acordou, como de costume, e, no corredor, deu de cara com um rapaz que o olhou apavorado. Tranqüilizou-o:
─ Eu sou o pai da Melissa. Não se preocupe, fique à vontade. Faça de conta que a casa é sua.
E foi deitar.
Na manhã seguinte, a filha desceu para tomar café. Sozinha.
─ E o rapaz? ─ perguntou o pai.
─ Que rapaz? ─ disse ela.
Algo lhe ocorreu, e ele, nervoso, pôs-se de imediato a checar a casa. Faltava o CD player, faltava a máquina fotográfica, faltava a impressora do computador. O namorado não era namorado. Paixão poderia nutrir, mas era pela propriedade alheia.
Um único consolo restou ao perplexo pai: aquele, pelo menos, não fizera estrago no café-da-manhã.
Moacyr Scliar

(Crônica extraída da Revista Zero Hora, 26/4/1998, e contida no livro Boa Companhia: crônicas, organizado por Humberto Werneck, São Paulo: Companhia das Letras, 2006, 2. reimpressão, pp. 205-6.)

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Feliz Aniversário


"Acreditar em algo e não vivê-lo é desonesto”.
Maratma Gandhi


É próprio da capacidade humana a condição de criar, fazer, planejar, realizar. O homem necessita do pulsar de suas vontades, da matéria de suas mãos e do colorido de suas fantasias! Sem sonho, é impossível ir adiante, sem sonho é impossível caminhar na vida.

Há, todavia, ainda no universo humano, aqueles que se detêm apenas e unicamente aos sonhos e passam o teor de suas existências planejando como seria se assim fosse. A cada sexta-feira teorizam soluções e resultados ora mirabolantes, ora simplórios, para os mais variados conflitos que nos cercam. São falazes capazes de resolver os problemas mais variados, mas que são incapazes de colocar seus projetos em ação na segunda-feira. Teóricos de ocasião, filósofos de mesa de bar, têm quase sempre a receita ideal para tudo, e tudo resolveriam se estivesse no meu ou no seu lugar.

Conhece alguém assim? Às vezes, nós mesmos somos assim.

Mas, como eu dizia, o homem só vive enquanto o seu sonho dura. E o idealismo é a escada para as grandes montanhas, a propulsão das invenções, dos empreendimentos, muitas vezes, acalentados por uma vida inteira. Alguns, dificílimos de serem enfrentados, outros nem tanto.

Assim, rendido em idealismos e admirador da crônica literária, nasceu o “Crônicas e Companhia”, que nunca teve e nem tem o propósito de ser grande ou pequeno, rico ou pobre, culto ou inculto, maior ou menor, belo ou feio, mas que se traduz genuinamente na materialização de mais uma vontade, de mais um sonho. Não apenas de um, mas de outros tantos companheiros que o germinaram e o adubaram até aqui com as suas publicações, opiniões, sugestões, comentários e criticas.

Seja como for, ei-lo aqui. Vivo, presente em nossos dias já há 753 dias.

Sem a obrigatoriedade com os acertos, mas também, sem compromisso com os erros, “Crônica e Cia" ao longo desses dois anos de existência, vem se propondo a ser mais um veículo de difusão desse gênero literário, de disseminação de cultura e de publicações de autores consagrados.

Desse modo, é com muita alegria que neste mês de agosto fazemos aniversário de (02) dois anos de existência ao tempo em que continuamos convidamos os internautas, colaboradores, incentivadores, críticos, enfim, a todos, a conhecer o nosso site e navegar conosco no mundo da crônica.

Obrigado a todos!

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Sondagem


O carteiro, conversador amável, não gosta de livros. Tornam pesada a carga matinal, que na sua opinião, e dado o seu nome burocrático, devia constituir-se apenas de cartas. No máximo algum jornalzinho leve, mas esses pacotes e mais pacotes que o senhor recebe, ler tudo isso deve ser de morte!


Explico-lhe que não é preciso ler tudo isso, e ele muito se admira:


─ Então o senhor guarda sem ler? E como é que sabe o que tem no miolo?


─ Em primeiro lugar, Teodorico, nem sempre eu guardo. Às vezes dou aos amigos, quando há alguma coisa que possa interessar a eles.


─ Mas como sabe que pode interessar, se não leu?


Esclareço a Teodorico que não leio de ponta a ponta, mas sempre abro ao acaso, leio uma página ou umas linhas, passo os olhos no índice, e concluo.


Meu crédito diminui sensivelmente a seus olhos. Não lhe passaria pela cabeça receber qualquer coisa do correio sem ler inteirinha.


─ Mas, Teodorico, quando você compra um jornal se sente obrigado a ler tudo que está nele?


─ Aí é diferente. Eu compro o jornal para ver os crimes, o resultado do seu-talão-vale-um-milhão etc. Leio aquilo que me interessa.


─ Eu também leio aquilo que me interessa.


─ Com o devido respeito, mas quem lhe mandou o livro desejava que o senhor lesse tudinho.
─ Bem, faz-se o possível, mas...


─ Eu sei, eu sei. O senhor não tem tempo.


─ É.


─ Mas quem escreveu, coitado! Esse perdeu o seu latim, como se diz.


─ Será que perdeu? Teve satisfação em escrever, esvaziou a alma, está acabado.


A idéia de que escrever é esvaziar a alma perturbou meu carteiro, tanto quanto percebo em seu rosto magro e sulcado.


─ Não leva a mal?


─ Não levo a mal o quê?


─ Eu lhe dizer que nesse caso carece prestar mais atenção ainda nos livros, muito mais! Se um cidadão vem à sua casa e pede licença para contar um desgosto de família, uma dor forte, dor-de-cotovelo, vamos dizer assim, será que o senhor não escutava o lacrimal dele com todo o acatamento?


─ Teodorico, você está esticando demais o meu pensamento. Nem todo livro representa uma confissão do autor, ainda ontem você me trouxe uma publicação do Itamaraty sobre o desenvolvimento da OPA, * que drama de sentimento há nisso?


─ Bem, nessas condições...


─ E depois, no caso de ter uma dor moral, escrevendo o livro o camarada desabafa, entende? Pouco importa que seja lido ou não, isso é outra coisa.


Ficou pensativo; à procura de argumento? Enquanto isso, eu meditava a curiosidade de um carteiro que se queixa de carregar muitos livros e ao mesmo tempo reprova que outros não os leiam integralmente.


─ Tem razão. Não adianta mesmo escrever.


─ Como não adianta? Lava o espírito.


─ No meu fraco raciocínio, tudo é encadeado neste mundo. Ou devia ser. Uma coisa nunca acontece sozinha nem acaba sozinha. Se a pessoa, vamos dizer, eu, só para armar um exemplo, se eu escrevo um livro, deve existir um outro ─ o senhor, numa hipótese ─ para receber e ler esse livro. Mas se o senhor não liga a mínima, foi besteira eu fazer esse esforço, e isso é o que acontece com a maioria, estou vendo.


─ Teodorico! Você... escreveu um livro?


Virou o rosto.


─ De poesia, mas agora não adianta eu lhe oferecer um exemplar. Até segunda, bom domingo para o senhor.


─ Escute aqui, Teodorico...


─ Bem, já que o senhor insiste, aqui está o seu volume, não repare os defeitos, ouviu? Esvaziei bastante a alma, tudo não era possível!


[1959]

Carlos Drummond de Andrade


(ANDRADE, Carlos Drummond. Sondagem. In: Werneck, Humberto (org.). Boa Companhia: crônicas. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, pp. 31-33.)


* Operação Pan-Americana, criada no governo Juscelino Kubitschek (1956-61), com a ambição ─ malograda ─ de congregar os países das três Américas.

terça-feira, 21 de julho de 2009

Como Comecei a Escrever

Já contei em uma crônica a primeira vez que vi meu nome em letra de forma: foi no jornalzinho "O ltapemirim", órgão oficial do Grêmio Domingos Martins, dos alunos do colégio Pedro Palácios, de Cachoeiro de Itapemirim. O professor de Português passara uma composição "A Lágrima" — e meu trabalho foi julgado tão bom que mereceu a honra de ser publicado.

Eu ainda estava no curso secundário quando um de meus irmãos mais velhos — Armando — fundou em Cachoeiro um jornal que existe até hoje — o "Correio do Sul". Fui convidado a escrever alguma coisa, o que também aconteceu com meu irmão Newton, que fazia principalmente poemas.

Eu escrevia artigos e crônicas sobre assuntos os mais variados; no verão mandava da praia de Marataizes uma crônica regular, chamada "Correio Maratimba". Quando fui para o Rio (na verdade para Niterói) por volta dos 15 anos, mandava correspondência para o Correio. Continuei a fazer o mesmo em 1931, quando mudei para Belo Horizonte.

A essa altura meu irmão Newton trabalhava na redação do "Diário da Tarde" de Minas. Em começo de 1932 ele deixou o emprego e voltou para Cachoeiro; herdei seu lugar no jornal.

Passei então a escrever diária e efetivamente, e fui aprendendo a redigir com os profissionais como Octavio Xavier Ferreira e Newton Prates. Quando terminei meu curso de Direito, resolvi continuar trabalhando em jornal.

Fazia crônicas, reportagens e serviços de redação. Ainda em 1932 tive uma experiência bastante séria: fuI fazer reportagem na frente de guerra da Mantiqueira missão aventurosa porque a direção de meu jornal'era favorável à Revolução Constitucionalista dos paulistas, e eu estava na frente getulista. Acabei preso e mandado de volta.

A essa altura eu já era um profissional de imprensa, e nunca mais deixei de ser.


Rubem Braga

terça-feira, 23 de junho de 2009

AS CARACTERÍSTICAS DA CRÔNICA

As características abaixo foram citadas por vários autores que tentaram entender a crônica enquanto estilo literário:

● Ligada à vida cotidiana;
● Narrativa informal, familiar, intimista;
● Uso da oralidade na escrita: linguagem coloquial;
● Sensibilidade no contato com a realidade;
● Síntese;
● Uso do fato como meio ou pretexto para o artista exercer seu estilo e criatividade;
● Dose de lirismo;
● Natureza ensaística;
● Leveza;
● Diz coisa sérias por meio de uma aparente conversa fiada;
● Uso do humor;
● Brevidade;
● É um fato moderno: está sujeita à rápida transformação e à fugacidade da vida moderna.



Valéria de Oliveira Alves

Fonte: (www.sitedeliteratura.cjb.net. Acesso em 03/06/2009.)

domingo, 21 de junho de 2009

My Way do meu jeito

Agora que o fim está perto
E se aproxima a ultima cortina, Meus amigos,
sei que estou certo: Minha vida não foi rotina.
Vivi uma vida cheia,
Viajei pra não botar defeito.
E mais, mais do que isto,
Fiz do meu jeito.
Remorsos, tive alguns,
Mas, pensando bem, nem foram tantos.
Fiz o que tinha que fazer
Mesmo que aos trancos e barrancos.
Planejei cada passo tomado,
Em cada estrada ou caminho estreito,
Mas mais, mais do que isto,
Fiz do meu jeito.
Sim, sei que há quem diga
Que o olho foi maior que a barriga.
Mas em nenhum momento hesitei,
Engoli tudo e não regurgitei,
Enfrentei tudo
E não fiquei mudo.
E fiz do meu jeito.
Amei, ri e chorei.
Tive a minha cota de desengano,
Mas agora, que as lágrimas secaram
Tudo me parece tão mexicano...
Pensar que fiz tudo isso
E, posso dizer, não sem muito peito.
Não mesmo, não este aqui:
Fiz do meu jeito.
Pois afinal um homem o que é
Se não sabe ficar de pé
E dizer o que realmente acredita
Sem temer a desdita?
Os autos estão aí
Pra mostrar que não fugi.
E fiz do meu jeito.
(Mas com a última cortina pendendo
Eis o mote para um psiquiatra.
Trocaria o meu jeito correndo
Pelo jeito do Frank Sinatra).


Luis Fernando Veríssimo
Site do Ricardo Noblat

terça-feira, 14 de abril de 2009

O lampião da Rua do Fogo

Ali, naquele velho canto onde a Rua de Joaquim Rodrigues faz um recanteio, morava Seu Maia, casado com Dona Placidina, numa casa de beirais, janelas virgens da profanação das tintas, porta da rua e porta do meio. Portão do quintal, abrindo no velho cais do Rio Vermelho. Isso, há muito tempo, antes da rua passar a 13 de Maio e da casa ser fantasiada de platibanda.

Seu Maia era muito conhecido em Goiás e era porteiro da Intendência. Boa pessoa. Serviçal, amigo de todo mundo e companheirão de boas farras. Gostava de uma pinguinha em doses dobradas, dessas antigas que pegavam fogo. Então, se misturava vinho, conhaque e aniseta; só voltava para casa carregado pelos companheiros, que o entregavam aos cuidados da mulher.

Esta, acostumada, embora com a sina ruim, como dizia, não poupava a descalçadeira quando recebia o marido naquele fogo, arrastando a língua, de pernas moles, isto quando não virava valente, quebrando pratos e panelas e disposto a lhe chegar a peia.

Dona Placidina era muito prática, nessas e noutras coisas... Ajeitava logo um café amargo, misturado com frutinhas de jurubeba torrada, que o marido engolia careteando e o empurrava para a rede, onde roncava até pela manhã ou se agitava e falava a noite inteira.

— Coitada de Dona Placidina, comentavam as amigas. Seu Maia é um santo homem sem esse diabo da pinga.

E ensinavam remédios, simpatias, responsos, rezas fortes. Simpatia que dera certo em outros casos, era nada para ele. Remédios? Inofensivos como a água do pote. Os próprios santos se faziam desentendidos dos responsos, velas acesas e jaculatórias recitadas.

Dona Placidina, cansada daquele marido incorrigível, acabou botando o coração ao largo, embora achasse, no íntimo, que melhor seria uma boa hora de morte para ela... ou antes, para o marido, esta parte no subconsciente.

Naquele dia, como a dose da boa fosse mais pesada, Seu Maia, que já vinha se ressentindo do fígado com passamentos e vista escura, se achou pior.

Os amigos o trouxeram para casa mais cedo. Tiveram mesmo de o levar para a cama e o meter entre as cobertas. De nada valeu a chazada caseira.

No dia seguinte, chamaram Seu Foggia que diagnosticou empanchamento e doença do coração. Receitou um purgativo e uma poção. Seu Maia piorou. Dona Placidina se desdobrou em cuidados especiais. Esqueceu o defeito do marido, as desavenças, os pratos quebrados e passou a sentir, antecipadamente, os percalços da viuvez.

Os amigos não arredaram. Faz-se a conferência médica das vizinhas prestativas. Escalda-pés, benzimentos, sinapismo, nada deu jeito. Nem valeu promessa de muito boa cera ao senhor São Sebastião. Seu Maia morreu.

Os companheiros tomaram conta do morto. Levaram o corpo.Vestiram-lhe o fato preto de sarjão, que tinha sido do casamento. Calçaram meias, ajuntaram-lhe as mãos no peito. Pearam as pernas e passaram um lenção branco, bem apertado, no queixo. Chamaram um canapé, largo de palhinha, para o meio da sala, deitaram o cadáver, cobriram com um lençol. Cuidou-se do pucarinho de água benta, com seu ramo de alecrim. Acenderam-se as quatro velas e, nos pés do morto, botou-se um caco de telha com brasa e grãos de incenso. Era assim que se arrumava defunto em Goiás, antigamente.

Os amigos foram chegando, tomando posição e começou o velório. Dona Placidina, entregue aos cuidados das amigas, mal escapava de uma vertigem, caía noutra. Afinal, à força de chás de arruda, de casca de tomba e de Água Florida de Murray, voltou a si e, como era decidida e de espírito prático, botou de parte o abatimento e passou a cuidar do pessoal que fazia sentinela.

Café com biscoito pelas 10 horas. Mais tarde, mexido de lombo de porco e ovos fritos com farofa, comido na cozinha, e requentão quando a noite esfriou mais e os galos passaram amiudar.

Entre a diligência caseira e suspiros puxados, a viúva, de vez em quando, levantava a ponta do lençol que cobria o marido e enxugava umas lágrimas hipotéticas. “Bom marido”, lastimava e, lá consigo, “não fosse a pinga, era a falta que tinha...”

No dia seguinte, veio o caixão com tampa solta, como de costume. Agasalharam ali o defunto. Chegaram mais amigos e mais comadres. Dona Placidina louvava as virtudes conjugais do finado, em crises nervosas de choro seco — sem lágrimas, o choro mais difícil que existe.

A cada visita que chegava, com seu carinhoso abraço e formalíssimos “meus pêsames”; havia uma exaltação no choro ressecado da viúva.

Pelas duas horas, começou a fazer vento de chuva e um trovão surdo se ouviu ao lado da Santa Bárbara. Como o caixão teria mesmo de ser carregado na força dos braços, os amigos resolveram apressar o saimento, antes que o tempo enfarruscado se decidisse em água. Vento da Santa Bárbara é chuva certa no São Miguel. E enterro debaixo de chuva era a coisa mais estragada que podia acontecer em Goiás.

Dona Placidina se debruçou em cima do morto. Não queria deixar sair Seu Maia, coitado... As amigas com chazadas de alecrim. Os amigos tomaram conta das alçadas e ganharam a rua. Entraram na outra, que era Direita, naquele tempo. Passaram a ponte da Lapa, subiram e entraram no Rosário para encomendação do corpo.

Os sinos das igrejas, todas, dobrando a lamentação de finados. Pela intenção do morto, cada amigo mandava dar um sinal nas igrejas, quanto quisesse. Ainda que os sinos tocam como a gente quer, alegres ou soturnos.

Os sineiros sempre tiveram esmero especial para anjinho ou defunto. Essas duas palavras, em Goiás, delimitavam as circunstâncias da idade, sem mais explicações. Anjinho era criança mesma ou moça virgem e, defunto, gente pecadora.

Ia o cortejo subindo e os homens se revezando nas alças, que o morto estava pesado. Com a doença curta, nem tivera tempo de emagrecer. Iam depressa, que a chuva já tinha posto uma carapuça branca no cocuruto do Canta Galo.

Na frente, um popular, afeito àquele préstimo, carregava a tampa que só ia ser colocada na beira da cova. Outros levavam os dois tamboretes, tradicionais, para o descanso do ataúde, quando se trocavam os que iam carregando. Os músicos, de fardão escuro, tocavam um funeral muito triste. Sendo de notar que não havia enterro em Goiás sem acompanhamento de música, somente os muito pobrezinhos. Na rabeira, a molecada da rua. Queriam ver o caixão descer no buraco, se divertiam com aquilo.

Na esquina da Rua do Fogo com a Rua da Abadia, existiu, durante muito tempo, um poste de lampião antigo, saliente, fora de linha, puxando mesmo para o meio da rua. Era um tropeço. Coisa embaraçosa. Não foram poucos os esbarros, cabeçadas, encontrões verificados ali.

Enterros que subiam, já de longe, começavam a torcer à direita para se desviar do lampião, que não tinha outra conseqüência senão atrapalhar. Naquele dia, com a aflição da chuva que vinha perto e com o peso do caixão que era demais, ninguém se lembrou do poste. Foi quando o compadre Mendanha, que ia na alça dianteira pela esquerda, pisou de mau jeito num calhau roliço, falseou o pé, fraquejou a perna e... bumba! Lá se foi o caixão bater com toda força no lampião.

Com a violência do baque, o defunto abriu os olhos, desarrumou as mãos e fez força de levantar o corpo.

A essa hora, o pessoal do enterro tinha se desabalado, em doida carreira pela rua abaixo e largado o morto se soltando da laçada das pernas. O dia inda estava claro, não era hora de assombração. Alguns, mais esclarecidos, resolveram voltar e ver de perto o acontecido.

Encontraram Seu Maia de pé, muito amarelo, escorado no poste, com tremuras pelo corpo e olhando, com desânimo o caixão vazio. Reconheceram, então, que o mesmo estava vivo e que era preciso voltar com ele para casa. Guardaram o caixão inútil na igreja da Abadia e desceram a rua, amparando o ex-morto.

Todas as janelas, agora, com gente assombrada ante aquele caso novo na cidade. A meninada na frente, gritava:

— Evém o defunto...

De dentro das casas, os moradores corriam para as portas e só se ouvia:

— Vem ver, Maricota... vem ver, Joaninha. Óia o defunto que evém voltando...

Amparado pelos amigos, metido naquele sarjão preto, desusado, calçado só de meias, lenço na cara e muito devagarinho vinha Seu Maia de volta.

Um portador foi na frente avisar Dona Placidina, daquela ressurreição e conseqüente retorno, ao que ela só teve expressão sintomática:

— Seja pelo amor de Deus.

Seu Maia chegou afinal, entrou, recebendo um abraço de boas-vindas mais ou menos calorosas da mulher. Bebeu um cordial. Meteu-se na cama e de novo foram chamar Seu Foggia. Este veio. Examinou, apalpou, auscultou, pediu para ver a língua. Concluiu, com sabedoria, que tinha sido um ataque de catalepsia, muito parecido com a morte, mas que não era morte, não.

A providência tinha sido o lampião do meio da rua, senão teria sido mesmo enterrado vivo.

A cidade comentou o caso por muito tempo. Seu Maia foi entrevistado por todos os sensacionalistas da terra — gente insuportável daquele tempo. Muita língua desocupada levantou a suspeita de que vários fulanos e sicranos daquele tempo tivessem sido enterrados vivos e toda a gente ficou se pelando de catalepsia. Os letrados foram até o Chernoviz e Langard. Conferiram-se diploma no assunto e discorriam de doutor e com muita prosódia, sobre catalepsia ou morte aparente.

Enquanto os comentaristas faziam roda, o doente recuperava a saúde. Dona Placidina, muito prática como sempre, aproveitou o acontecimento para uma pequena homilia doméstica, complicada e cheia de boa dialética feminina, de que “aquilo fora aviso do céu e castigo de Deus...”

E já pelo choque emocional — vá lá que naquele tempo não havia destas coisas não — já pelo medo de novo ataque e de ser mesmo enterrado vivo, o certo é que o homem moderou a bebida.

Dona Placidina, no entanto, já havia, no seu foro íntimo, aceitado a idéia da viuvez e aquela volta inesperada do marido vivo não melhorou de muito os pontos de vista da ex-viúva.

Alguns meses depois, Seu Maia adoecia gravemente. Vieram os amigos da primeira viagem. Apareceram as clássicas e inefáveis comadres. Deram-se os remédios. Da botica e extrabotica. Foi bem purgado e lhe aplicaram ventosas e sinapismos. Nada serviu. Seu Maia morreu.

Seu Foggia então declarou que, por via das dúvidas, só levassem o morto quando começasse a feder. Fez-se de novo o velório com todas as regrinhas de costume. Café com biscoito pelas dez horas. Viradinho de feijão e lingüiça comidos, com voracidade e discrição na cozinha, e quentão forte de canela e gengibre, quando a noite esfriou e os galos amiudaram.

Contaram-se casos. Louvaram as virtudes do finado, num breve necrológio. Passaram a anedotas discretas. Falou-se da carestia da vida, dos erros do governo e se fez a filosofia da morte.

A viúva chorou, mais ou menos conformada com aquela segunda via. O compadre Mendanha tomou conta de trocar as velas que iam se consumindo, de regrar o pucarinho de água benta com seu raminho de alecrim.

No dia seguinte, quando perceberam que não mais haveria engano, os amigos ajuntaram as alças e levantaram o caixão.

Dona Placidina, muito experiente, despediu-se do morto em soluços alternados. Teimou com as amigas: dessa vez havia de acompanhar, ao menos até a porta.

O compadre Mendanha, muito metódico e apegado aos velhos hábitos de sempre pegar caixão pela alça da frente e da esquerda, tomou posição. Outros pegaram pelos lados, adiante saiu a tampa, carregada por um popular e os tamboretes indispensáveis, renteando o caixão aberto.

Espalhado pelas ruas, o acompanhamento, só de homens. Agrupada com seus instrumentos enlaçados de crepes, a banda do funeral. Arrumado o cortejo, Dona Placidina botou o corpo fora da porta e chamou alto:

— Compadre Mendanha... Escuta, compadre, cuidado com o lampião da Rua do Fogo, viu... Não vá acontecer como da outra vez.


Cora Coralina

domingo, 22 de fevereiro de 2009

À noite, ronda a maldição de Moudros

Um amigo me escreve dizendo que durante uma noite de insônia, em um hospital de Paris onde havia sido operado, escreveu mentalmente dois capítulos de um romance que há muitos anos cortejava em vão. Na noite seguinte, nova insônia, e mais dois capítulos. Ao sair de lá, levava dez capítulos do romance debaixo do braço, pois de manhã, ao acordar (se assim se pode dizer de alguém que praticamente não dormiu), pegava papel e lápis e anotava tudo aquilo que a insônia lhe havia ditado. Embora cubano, meu amigo Joel Rosell estava sendo vítima da distante maldição de Moudros.

Moudros é uma aldeia da ilha grega de Limnos, o que nos autoriza a imaginá-la branca como são brancas as aldeias gregas agarradas nas pedras e franjadas do mar. Igualmente brancas, porém, eram até poucos anos atrás as noites dos seus habitantes. Ali ninguém dormia ou deveria dormir. Uma antiga maldição encarregava-se de espantar o sono dos pobres aldeões.

A história tem origem no século XIX, em plena guerra greco-turca, quando os habitantes de Moudros mataram uns tantos turcos e atiraram os cadáveres num poço de propriedade de um mosteiro do monte Athos. Foi um erro. Os turcos encontraram os cadáveres e, pensando que os monges tivessem sido os assassinos, retribuíram matando todos eles e incendiando suas construções. Todos, não, dois escaparam, refugiaram-se em outro mosteiro, e de lá emitiram sua maldição: doravante, para remoer sua culpa, nenhum habitante de Moudros haveria de dormir.
A partir de então, durante mais de cem anos, todo dia 23 de agosto, os cerca de três mil monges da comunidade religiosa do monte Athos repetiram a maldição em forma de canto litúrgico.

Nos quartos escuros das brancas casas de Moudros certamente houve aldeões que passaram noites sem dormir. Que belos romances, que elegias, que concertos teriam produzido se, em vez de pensar nos frades, tivessem ouvido seu ditado interior.

Penso no meu amigo em seu leito de hospital. Na primeira noite, quando em meio ao desconforto e à dor o sono não veio, ele deve ter começado a escrever sem empenho, à toa, só para atravessar o tempo que o separava da manhã. Mas na segunda noite, quando já tinha dois capítulos e a urgência de chegar aos seguintes, desejou que o sono não viesse, para permitir-lhe avançar no silêncio.

Na insônia, tanto faz abrir os olhos ou mantê-los fechados, tudo é escuridão. E na escuridão uma palavra, uma palavra que inevitavelmente trará outras atrás de si, bate como um aríete na consciência exigindo atenção, exigindo portas abertas. O insone sabe que se a aceitar perderá a possibilidade de adormecer. E ainda assim ouve sua voz como um canto de sereia. Se ceder à palavra, à infindável família das palavras, terá que dobrar-se às suas exigências, será posto a ferros como o remador de uma galé. E remará a noite toda levando adiante a nau que, palavra a palavra, se constrói. À noite, não basta submeter-se às palavras, há que memorizá-las, repeti-las à medida que se fazem à frente e são escolhidas, gravá-las no basalto da memória para que não se esfumem com o dia.

Sim, é claro, pode o insone levantar-se, acender uma luz na escuridão da casa, ligar o computador. Mas sabe que se o fizer estará perdendo a condição quase fetal da insônia, em que as palavras não são bem palavras mas vozes, ecos vindos de um distante flutuar, que trazem discursos alheios a nós mesmos. Então ele rema e rema na escuridão, para alcançar um capítulo, um poema ou apenas uma frase.


(COLASANTI, Marina. À noite, ronda a maldição de Moudros. In: ─ . Os últimos lírios no estojo de seda. Belo Horizonte: Editora Leitura, 2007, pp. 12-4, “Crônicas Ilustradas”, vol. 1.)

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

O Enterro do Sinhô

J. B. SILVA, o popular Sinhô dos mais deliciosos sambas cariocas, era um desses homens que ainda morrendo da morte mais natural deste mundo dão a todos a impressão de que morreram de acidente. Zeca Patrocínio, que o adorava e com quem ele tinha grandes afinidades de temperamento, era assim também: descarnado, lívido, frangalho de gente, mas sempre fagueiro, vivaz, agilíssimo, dir-se-ia um moribundo galvanizado provisoriamente para uma farra. Que doença era a sua? Parecia um tísico nas últimas. Diziam que tinha muita sífilis. Certamente o rim estava em pantanas. Fígado escangalhado. Ouvia-se de vez em quando que o Zeca estava morrendo. Ora em Paris, ora em Todos os Santos, subúrbio da Central. E de repente, na Avenida, a gente encontrava o Zeca às três da madrugada, de smoking, no auge da excitação e da verve. Assim me aconteceu uma vez, e o que o punha tão excitado naquela ocasião era precisamente a última marcha carnavalesca de Sinhô, o famoso Claudionor...

que pra sustentar família
foi bancar o estivador...

Me apresentaram a Sinhô na câmara-ardente do Zeca. Foi na pobre nave da igreja dos pretos do Rosário. Sinhô tinha passado o dia ali, era mais de meia-noite, ia passar a noite ali e não parava de evocar a figura do amigo extinto, contava aventuras comuns, espinafrava tudo quanto era músico e poeta, estava danado naquela época com o Vila e o Catulo, poeta era ele, músico era ele. Que língua desgraçada! Que vaidade! mas a gente não podia deixar de gostar dele desde logo, pelo menos os que são sensíveis ao sabor da qualidade carioca. O que há de mais povo e de mais carioca tinha em Sinhô a sua personificação mais típica, mais genuína e mais profunda. De quando em quando, no meio de uma porção de toadas que todas eram camaradas e frescas como as manhãs dos nossos suburbiozinhos humildes, vinha de Sinhô um samba definitivo, um Claudionor, um Jura, com um "beijo puro na catedral do amor", enfim uma dessas coisas incríveis que pareciam descer dos morros lendários da cidade, Favela, Salgueiro, Mangueira, São Carlos, fina-flor extrema da malandragem carioca mais inteligente e mais heróica... Sinhô!

Ele era o traço mais expressivo ligando os poetas, os artistas, a sociedade fina e culta às camadas profundas da ralé urbana. Daí a fascinação que despertava em toda a gente quando levado a um salão.

Vi-o pela última vez em casa de Álvaro Moreyra. Sinhô cantou, se acompanhando, o "Não posso mais, meu bem, não posso mais", que havia composto na madrugada daquele dia, de volta de uma farra. Estava quase inteiramente afônico. Tossia muito e corrigia a tosse bebendo boas lambadas de Madeira R. Repetiu-se a toada um sem número de vezes. Todos nós secundávamos em coro. Terán, que estava presente, ficou encantado.

Não faz uma semana eu estava em casa de um amigo onde se esperava a chegada de Sinhô para cantar ao violão. Sinhô não veio. Devia estar na rua ou no fundo de alguma casa de música, cantando ou contando vantagem, ou então em algum botequim. Em casa é que não estaria; em casa, de cama, é que não estaria. Sinhô tinha que morrer como morreu, para que a sua morte fosse o que foi: um episódio de rua, como um desastre de automóvel. Vinha numa barca da Ilha do Governador para a cidade, teve uma hemoptise fulminante e acabou.

Seu corpo foi levado para o necrotério do Hospital Hahnemanniano, ali no coração do Estácio, perto do Mangue, à vista dos morros lendários... A capelinha branca era muito exígua para conter todos quantos queriam bem ao Sinhô, tudo gente simples, malandros, soldados, marinheiros, donas de rendez-vous baratos, meretrizes, chauffeurs, macumbeiros (lá estava o velho Oxunã da Praça Onze, um preto de dois metros de altura com uma belida num olho), todos os sambistas de fama, os pretinhos dos choros dos botequins das ruas Júlio do Carmo e Benedito Hipólito, mulheres dos morros, baianas de tabuleiro, vendedores de modinhas... Essa gente não se veste toda de preto. O gosto pela cor persiste deliciosamente mesmo na hora do enterro. Há prostitutazinhas em tecido opala vermelho. Aquele preto, famanaz do pinho, traja uma fatiota clara absolutamente incrível. As flores estão num botequim em frente, prolongamento da câmara-ardente. Bebe-se desbragadamente. Um vaivém incessante da capela para o botequim. Os amigos repetem piadas do morto, assobiam ou cantarolam os sambas (Tu te lembra daquele choro?). No cinema d'a Rua Frei Caneca um bruto cartaz anunciava "A Última Canção" de Al Johnson. Um dos presentes comenta a coincidência. O Chico da Baiana vai trocar de automóvel e volta com um landaulet que parece de casamento e onde toma assento a família de Sinhô. Pérola Negra, bailarina da companhia preta, assume atitudes de estrela. Não tem ali ninguém para quebrar aquele quadro de costumes cariocas, seguramente o mais genuíno que já se viu na vida da cidade: a dor simples, natural, ingênua de um povo cantador e macumbeiro em torno do corpo do companheiro que durante tantos anos foi por excelência intérprete de sua alma estóica, sensual, carnavalesca.


Manuel Bandeira


Na crônica acima, extraída do livro “Os Reis Vagabundos e mais 50 crônicas”, Editora do Autor, Rio de Janeiro, 1966, pág. 11, ele narra sua convivência em vida com o famoso compositor da música popular brasileira, Sinhô, que muitos dizem ser o autor do primeiro samba, e a cena de seu velório, o que a faz uma peça descritiva de alto valor.