terça-feira, 27 de julho de 2010

A crônica

Crônica, do grego chrónos, tempo, cronicar, feito Tácito, relatar o tempo ou tempos.

Por que nós, brasileiros, fizemos do gênero especialidade da casa — feito muqueca de peixe ou tutu à mineira?

Eu, pela parte que me cabe — e é pouquíssima a parte que me cabe —, eu tenho minhas teoriazinhas.

Primeiro lugar, porque nós trabalhamos bem com poucas armas, isto é, Euclides da Cunha à parte, nosso fôlego literário é curto.

Não há nenhum demérito nisso.

Se a América Latina fornece caudalosos escritores, como Vargas Llosa, Roa Bastos e Alejo Carpentier, nós, por outro lado, somos excelentes no pinga-pinga do conto: o próprio Machado de Assis, Lima Barreto, Alcântara Machado, Dalton Trevisan, Clarice Lispector, Rubem Fonseca.

Segundo lugar, porque nós temos consciência da extraordinária violência com que o tempo vai levando as coisas e as gentes, daí a necessidade de registrar, de alguma forma, o que se passou e passa no âmbito pessoal e intransferível.

Terceiro lugar, em conseqüência disso que acabei de falar: somos muito pessoais, vemos e vivemos muito a nossa vida e a celebramos quase que no próprio instante em que ela se passa.

A crônica é a nossa autobustificação, por assim dizer.

Ou, em termos da realidade atual: é a nossa autonomeação para assessor disso ou secretário daquilo outro.

E em quarto e último lugar: dinheiro.

Não há motivo nenhum para se ficar encabulado.

Quem não escreve por dinheiro não é digno da profissão.

Um romance vende cinco mil exemplares e o autor, com alguma sorte, pega o equivalente a uns tantos salários mínimos.

Se dividirmos tempo gasto no trabalho e na vida de estante do livro, vai dar nisso mesmo: salário mínimo.

O cronista, por outro lado, mesmo mal pago — e quando é bom não é esse o caso —, tem uns cobres garantidos no fim do mês, se o empregador for bom pagador.

Conseqüentemente: aí está, viva e atuante, a crônica do cronista brasileiro.

Pouco importa que o cronista ou a cronista limite-se a relatar seu encontro no bar ou sua ida ao cabeleireiro.

Tanto faz que seja elitista ou literariamente limitador.

E daí que tenha menos profundidade que mergulhadores mais audazes como Milan Kundera e Marion Zimmer Bradley?

A crônica vai registrando, o cronista vai falando sozinho diante de todo mundo.


Ivan Lessa


Ivan Lessa fez parte do grupo que colaborou e que, durante muito tempo, fez sucesso no jornal "O Pasquim". Carioca, filho de Orígines Lessa e Elsie Lessa, escreve com sucesso, valendo-se de um humor cheio de ironias. Auto-asilado na Inglaterra, segundo ele por ter-se desencantado com o Brasil, trabalha na BBC de Londres. O texto acima consta do livro "Ivan vê o mundo", Editora Objetiva — Rio de Janeiro, 1999.


segunda-feira, 26 de julho de 2010

O assombro das noites

Nunca esqueci a noite em que, acordando de um pesadelo, vi luz acesa na sala e fui ver quem estava lá. Ajoelhada diante da mesa, cabeça baixa, terço nas mãos, tia Zizinha rezava, madrugada alta, tudo em silêncio, ela magrinha, parecia um passarinho molhado, sentindo frio.

Era devota, a minha tia, não deveria ficar impressionado, mesmo assim fiquei. Sabia que ela rezava por todos nós, por mim, pelo meu avô que estava doente, pelo mundo inteiro. Evitei que ela me visse e voltei para a cama, perdera o medo do pesadelo, sabia que os fantasmas não mais me assustariam.

Anos depois, muitos anos depois, viajava com o Otto Maria Carpeaux, fazíamos palestras agendadas por diretórios de estudantes, centros de estudos, era um mambembe não-remunerado e estranhíssimo, pois Carpeaux era gago, eu falava mal e pronunciava as palavras de forma errada, mesmo assim, havia gente que deseja ouvir-nos.

Em Florianópolis, num hotel modesto, acordei no meio da noite e olhei para a cama ao lado. Estava vazia. Carpeaux sofria de insônia, imaginei que ele, sem fazer barulho, na ponta dos pés, tivesse saído do quarto, tomando cuidado para não me acordar.

Não acendi a luz, mas saí da cama, fui à saleta anexa ao quarto, que também estava escura. Voltado contra a parede, numa direção que eu não podia determinar (Roma? Meca? Jerusalém?), Carpeaux estava de joelhos, cabeça baixa, os braços estendidos, como um anacoreta medieval, perdido num deserto de estrelas.

Carpeaux era judeu vienense, convertera-se ao catolicismo, segundo alguns, para conseguir visto no Vaticano que o tirasse da Gestapo, que o procurava. Eu sabia tudo sobre Carpeaux, menos o seu passado europeu, sobre o qual ele nunca falava. Não freqüentava igrejas, evitava qualquer discussão sobre temas religiosos.

Tia Zizinha... Carpeaux... Uma noite dessas, tomo coragem e fico de joelhos diante de meus espantos.


Carlos Heitor Cony


CONY, Carlos Heitor. O assombro das noites. In: Antologia de Crônicas: crônica brasileira contemporânea, Manuel da Costa Pinto (org.). São Paulo: Moderna, 2005, pp. 20-1, coleção “Lendo & Relendo”.