segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

Organiza o Natal


Alguém observou que cada vez mais o ano se compõe de 10 meses; imperfeitamente embora, o resto é Natal. É possível que, com o tempo, essa divisão se inverta: 10 meses de Natal e 2 meses de ano vulgarmente dito. E não parece absurdo imaginar que, pelo desenvolvimento da linha, e pela melhoria do homem, o ano inteiro se converta em Natal, abolindo-se a era civil, com suas obrigações enfadonhas ou malignas. Será bom.


Então nos amaremos e nos desejaremos felicidades ininterruptamente, de manhã à noite, de uma rua a outra, de continente a continente, de cortina de ferro à cortina de nylon — sem cortinas. Governo e oposição, neutros, super e subdesenvolvidos, marcianos, bichos, plantas entrarão em regime de fraternidade. Os objetos se impregnarão de espírito natalino, e veremos o desenho animado, reino da crueldade, transposto para o reino do amor: a máquina de lavar roupa abraçada ao flamboyant, núpcias da flauta e do ovo, a betoneira com o sagüi ou com o vestido de baile. E o supra-realismo, justificado espiritualmente, será uma chave para o mundo.


Completado o ciclo histórico, os bens serão repartidos por si mesmos entre nossos irmãos, isto é, com todos os viventes e elementos da terra, água, ar e alma. Não haverá mais cartas de cobrança, de descompostura nem de suicídio. O correio só transportará correspondência gentil, de preferência postais de Chagall, em que noivos e burrinhos circulam na atmosfera, pastando flores; toda pintura, inclusive o borrão, estará a serviço do entendimento afetuoso. A crítica de arte se dissolverá jovialmente, a menos que prefira tomar a forma de um sininho cristalino, a badalar sem erudição nem pretensão, celebrando o Advento.


A poesia escrita se identificará com o perfume das moitas antes do amanhecer, despojando-se do uso do som. Para que livros? perguntará um anjo e, sorrindo, mostrará a terra impressa com as tintas do sol e das galáxias, aberta à maneira de um livro.


A música permanecerá a mesma, tal qual Palestrina e Mozart a deixaram; equívocos e divertimentos musicais serão arquivados, sem humilhação para ninguém.


Com economia para os povos desaparecerão suavemente classes armadas e semi-armadas, repartições arrecadadoras, polícia e fiscais de toda espécie. Uma palavra será descoberta no dicionário: paz.


O trabalho deixará de ser imposição para constituir o sentido natural da vida, sob a jurisdição desses incansáveis trabalhadores, que são os lírios do campo. Salário de cada um: a alegria que tiver merecido. Nem juntas de conciliação nem tribunais de justiça, pois tudo estará conciliado na ordem do amor.


Todo mundo se rirá do dinheiro e das arcas que o guardavam, e que passarão a depósito de doces, para visitas. Haverá dois jardins para cada habitante, um exterior, outro interior, comunicando-se por um atalho invisível.


A morte não será procurada nem esquivada, e o homem compreenderá a existência da noite, como já compreendera a da manhã.


O mundo será administrado exclusivamente pelas crianças, e elas farão o que bem entenderem das restantes instituições caducas, a Universidade inclusive.


E será Natal para sempre.



Carlos Drummond de Andrade



Texto extraído do livro "Cadeira de Balanço", Livraria José Olympio Editora - Rio de Janeiro, 1972, pág. 52.

sábado, 29 de dezembro de 2007

O nascimento da crônica

Há um meio certo de começar a crônica por trivialidade. É dizer: Que calor! Que desenfreado calor! Diz-se isto, agitando as pontas do lenço, bufando como um touro, ou simplesmente sacudindo a sobrecasaca. Resvala-se do calor aos fenômenos atmosféricos, fazem-se algumas conjecturas acerca do sol e da lua, outras sobre amarela, manda-se um suspiro a Petrópolis, e La glace est rompue; está começando a crônica.

Mas, leitor amigo, esse meio é mais velho ainda do que as crônicas, que apenas datam de Esdras. Antes de Esdras, antes de Moisés, antes de Abraão, Isaque e Jacó, antes mesmo de Noé, houve calor e crônicas. No paraíso é provável, é certo que o calor era mediano, e não é prova do contrário o fato de adão andar nu. Adão andava nu por duas razões, uma capital e outra providencial. A primeira é que não havia alfaiates, não havia sequer casimiras; a segunda é que, ainda havendo-os, Adão andava baldo ao naipe. Digo que esta razão é providencial, porque as nossas províncias estão nas circuntâncias do primeiro homem.

Quando a fatal curiosidade de Eva fez-lhes perder o paraíso, cessou, com essa degradação, a vantagem de uma temperatura igual e agradável. Nasceu o calor e o inverno; vieram as neves, os tufões, as secas, todo o cortejo de males, distribuídos pelos doze meses do ano.

Não posso dizer positiviamente em que ano nasceu a crônica; mas há toda a probalidade de crer que foi coetânea das primeiras duas vizinhas. Essas vizinhas, entre o jantar e a merenda, sentaram-se à porta, para debicar os sucessos do dia. Provavelmente começaram a lastimar-se do calor. Uma dizia que não pudera comer ao jantar, a outra que tinha a camisa mais ensopada do que as ervas que comera. Passar das ervas às plantações do morador fronteiro, e logo às tropelias amatórias do dito morador, e ao resto, era a coisa mais fácil, natural e possível do mundo. Eis a origem da crônica.

Que eu, sabedor ou conjeturador de tão alta prosápia, queria repetir o meio de que lançaram mãos as duas avós do cronista, é realmente cometer uma trivialidade; e contudo, leitor, seria dificil falar desta quinzena sem dar à canícula o lugar de honra que lhe compete. Seria; mas eu dispensarei esse meio quase tão velho como o mundo, para somente dizer que a verdade mais incontestável que achei debaixo do sol é que ninguém se deve queixar, porque cada pessoa é sempre mais feliz do que outra.

Não afirmo sem prova.

Fui há dias a um cemitério, a um enterro, logo de manhã, num dia ardente como todos os diabos e suas respectivas habitações. Em volta de mim ouvia o estribilho geral: que calor! Que sol! É de rachar passarinho! É de fazer um homem doido!

Íamos em carros! Apeamo-nos à porta do cemitério e caminhamos um longo pedaço. O sol das onze horas batia de chapa em todos nós; mas sem tirarmos os chapéus, abríamos os de sol e seguíamos a suar até o lugar onde devia verificar-se o enterramento. Naquele lugar esbarramos com seis ou oito homens ocupados em abrir covas: estavam de cabeça descoberta, a erguer e fazer cair a enxada. Nós enterramos o morto, voltamos nos carros, e daí às nossas casas ou repartições. E eles? Lá os achamos, lá os deixamos, ao sol, de cabeça descoberta, a trabalhar com a enxada. Se o sol nos fazia mal, que não faria àqueles pobres-diabos, durante todas as horas quentes do dia?
Machado de Assis.
Texto extraído do livro " As cem melhores crônicas brasileiras".

quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Ter ou não ter namorado


Quem não tem namorado é alguém que tirou férias não remuneradas de si mesmo.

Namorado é a mais difícil das conquistas.


Difícil porque namorado de verdade é muito raro. Necessita de adivinhação, de pele, saliva, lágrima, nuvem, quindim, brisa ou filosofia. Paquera, gabiru, flerte, caso, transa, envolvimento, até paixão, é fácil.


Mas namorado, mesmo, é muito difícil. Namorado não precisa ser o mais bonito, mas ser aquele a quem se quer proteger e quando se chega ao lado dele a gente treme, sua frio e quase desmaia pedindo proteção. A proteção não precisa ser parruda, decidida; ou bandoleira basta um olhar de compreensão ou mesmo de aflição.


Quem não tem namorado é quem não tem amor é quem não sabe o gosto de namorar. Há quem não sabe o gosto de namorar. Se você tem três pretendentes, dois paqueras, um envolvimento e dois amantes; mesmo assim pode não ter nenhum namorado.


Não tem namorado quem não sabe o gosto de chuva, cinema sessão das duas, medo do pai, sanduíche de padaria ou drible no trabalho.


Não tem namorado quem transa sem carinho, quem se acaricia sem vontade de virar sorvete ou lagartixa e quem ama sem alegria.


Não tem namorado quem faz pacto de amor apenas com a infelicidade. Namorar é fazer pactos com a felicidade ainda que rápida, escondida, fugidia ou impossível de durar.


Não tem namorado quem não sabe o valor de mãos dadas; de carinho escondido na hora em que passa o filme; de flor catada no muro e entregue de repente; de poesia de Fernando Pessoa, Vinícius de Moraes ou Chico Buarque lida bem devagar; de gargalhada quando fala junto ou descobre meia rasgada; de ânsia enorme de viajar junto para a Escócia ou mesmo de metrô, bonde, nuvem, cavalo alado, tapete mágico ou foguete interplanetário.


Não tem namorado quem não gosta de dormir agarrado, de fazer cesta abraçado, fazer compra junto.


Não tem namorado quem não gosta de falar do próprio amor, nem de ficar horas e horas olhando o mistério do outro dentro dos olhos dele, abobalhados de alegria pela lucidez do amor.


Não tem namorado quem não redescobre a criança própria e a do amado e sai com ela para parques, fliperamas, beira - d'água, show do Milton Nascimento, bosques enluarados, ruas de sonhos ou musical da Metro.


Não tem namorado quem não tem música secreta com ele, quem não dedica livros, quem não recorta artigos; quem gosta sem curtir; quem curte sem aprofundar.


Não tem namorado quem nunca sentiu o gosto de ser lembrado de repente no fim de semana, na madrugada, ou meio-dia do dia de sol em plena praia cheia de rivais.


Não tem namorado quem ama sem se dedicar; quem namora sem brincar; quem vive cheio de obrigações; quem faz sexo sem esperar o outro ir junto com ele.


Não tem namorado quem confunde solidão com ficar sozinho e em paz.


Não tem namorado quem não fala sozinho, não ri de si mesmo e quem tem medo de ser afetivo.


Se você não tem namorado porque não descobriu que o amor é alegre e você vive pesando duzentos quilos de grilos e medos, ponha a saia mais leve, aquela de chita e passeie de mãos dadas com o ar. Enfeite-se com margaridas e ternuras e escove a alma com leves fricções de esperança. De alma escovada e coração estouvado, saia do quintal de si mesmo e descubra o próprio jardim.


Acorde com gosto de caqui e sorria lírios para quem passe debaixo de sua janela. Ponha intenções de quermesse em seus olhos e beba licor de contos de fada. Ande como se o chão estivesse repleto de sons de flauta e do céu descesse uma névoa de borboletas, cada qual trazendo uma pérola falante a dizer frases sutis e palavras de galanteria.


Se você não tem namorado é porque ainda não enlouqueceu aquele pouquinho necessário a fazer a vida parar e de repente parecer que faz sentido. ENLOU-CRESÇA.


Arthur da Távola


*Obs.: Este texto, frequentemente, tem sido atribuído a Carlos Drummond de Andrade. Mas, de fato, é de Artur da Távola. Foi publicado no livro: "Amor a sim mesmo" (sic) - (coletânea de crônicas de Távola), Ed. Círculo do Livro, por cortesia da Ed. Nova Fronteira S.A. copyright - © 1.984 Paulo Alberto M. Monteiro de Barros (nome real de Artur da Távola).

segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

O suor e a lágrima


Fazia calor no Rio, 40 graus e qualquer coisa, quase 41. No dia seguinte, os jornais diriam que fora o mais quente deste verão que inaugura o século e o milênio. Cheguei ao Santos Dumont, o vôo estava atrasado, decidi engraxar os sapatos. Pelo menos aqui no Rio, são raros esses engraxates, só existem nos aeroportos e em poucos lugares avulsos.


Sentei-me naquela espécie de cadeira canônica, de coro de abadia pobre, que também pode parecer o trono de um rei desolado de um reino desolante.


O engraxate era gordo e estava com calor — o que me pareceu óbvio. Elogiou meus sapatos, cromo italiano, fabricante ilustre, os Rosseti. Uso-o pouco, em parte para poupá-lo, em parte porque quando posso estou sempre de tênis.


Ofereceu-me o jornal que eu já havia lido e começou seu ofício. Meio careca, o suor encharcou-lhe a testa e a calva. Pegou aquele paninho que dá brilho final nos sapatos e com ele enxugou o próprio suor, que era abundante.


Com o mesmo pano, executou com maestria aqueles movimentos rápidos em torno da biqueira, mas a todo instante o usava para enxugar-se — caso contrário, o suor inundaria o meu cromo italiano.


E foi assim que a testa e a calva do valente filho do povo ficaram manchadas de graxa e o meu sapato adquiriu um brilho de espelho à custa do suor alheio. Nunca tive sapatos tão brilhantes, tão dignamente suados.


Na hora de pagar, alegando não ter nota menor, deixei-lhe um troco generoso. Ele me olhou espantado, retribuiu a gorjeta me desejando em dobro tudo o que eu viesse a precisar nos restos dos meus dias.


Saí daquela cadeira com um baita sentimento de culpa. Que diabo, meus sapatos não estavam tão sujos assim, por míseros tostões, fizera um filho do povo suar para ganhar seu pão. Olhei meus sapatos e tive vergonha daquele brilho humano, salgado como lágrima.


Carlos Heitor Cony


O texto acima foi publicado no jornal “Folha de São Paulo”, edição de 19/02/2001, e faz parte do livro “Figuras do Brasil – 80 autores em 80 anos de Folha”, Publifolhas – São Paulo, 2001, pág. 319, organização de Arthur Nestrovski.

sábado, 22 de dezembro de 2007


"O cronista é um colecionador de instantes. É o olhar sensível que percorre as esquinas do cotidiano e registra - fatos, momentos, um riso furtivo, a dor anônima, o medo, cansaços. O cronista é página em branco, sempre à espera. É caleidoscópio mágico a combinar o mesmo de nosso dia-a-dia em novas imagens. O cronista é um arqueólogo da rotina, desentranhando histórias do que, tantas vezes, nos escapa. "



(Fragmento extraído da orelha da capa, sem autor mencionado, do livro Crônicas de um Fim de Século, Zuenir Ventura, Rio de Janeiro: Objetiva, 1999.)

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

O cronista é um escritor crônico


O primeiro texto que publiquei em jornal foi uma crônica. Devia ter eu lá uns 16 ou 17 anos. E aí fui tomando gosto. Dos jornais de Juiz de Fora, passei para os jornais e revistas de Belo Horizonte e depois para a imprensa do Rio e São Paulo. Fiz de tudo (ou quase tudo) em jornal: de repórter policial a crítico literário. Mas foi somente quando me chamaram para substituir Drummond no Jornal do Brasil, em 1984, que passei a fazer crônica sistematicamente. Virei um escritor crônico.


O que é um cronista?


Luís Fernando Veríssimo diz que o cronista é como uma galinha, bota seu ovo regularmente. Carlos Eduardo Novaes diz que crônicas são como laranjas, podem ser doces ou azedas e ser consumidas em gomos ou pedaços, na poltrona de casa ou espremidas na sala de aula.


Já andei dizendo que o cronista é um estilita. Não confundam, por enquanto, com estilista. Estilita era o santo que ficava anos e anos em cima de uma coluna, no deserto, meditando e pregando. São Simeão passou trinta anos assim, exposto ao sol e à chuva. Claro que de tanto purificar seu estilo diariamente o cronista estilita acaba virando um estilista.


O cronista é isso: fica pregando lá em cima de sua coluna no jornal. Por isto, há uma certa confusão entre colunista e cronista, assim como há outra confusão entre articulista e cronista. O articulista escreve textos expositivos e defende temas e idéias. O cronista é o mais livre dos redatores de um jornal. Ele pode ser subjetivo. Pode (e deve) falar na primeira pessoa sem envergonhar-se. Seu "eu", como o do poeta, é um eu de utilidade pública.


Que tipo de crônica escrevo? De vários tipos. Conto casos, faço descrições, anoto momentos líricos, faço críticas sociais. Uma das funções da crônica é interferir no cotidiano. Claro que essas que interferem mais cruamente em assuntos momentosos tendem a perder sua atualidade quando publicadas em livro. Não tem importância. O cronista é crônico, ligado ao tempo, deve estar encharcado, doente de seu tempo e ao mesmo tempo pairar acima dele.


Affonso Romano de Sant'Anna



Texto extraído do jornal "O Globo" - Rio de Janeiro.

sábado, 15 de dezembro de 2007

O verão e as mulheres

Talvez tenha acabado o verão. Há um grande vento frio cavalgando as ondas, mas o céu está limpo e o sol é muito claro. Duas aves dançam sobre as espumas assanhadas. As cigarras não cantam mais. Talvez tenha acabado o verão.

Estamos tranqüilos. Fizemos este verão com paciência e firmeza, como os veteranos fazem a guerra. Estivemos atentos à lua e ao mar; suamos nosso corpo; contemplamos as evoluções de nossas mulheres, pois sabemos o quanto é perigoso para elas o verão.

Sim, as mulheres estão sujeitas a uma grande influência do verão; no bojo do mês de janeiro elas sentem o coração lânguido, e se espreguiçam de um modo especial; seus olhos brilham devagar, elas começam a dizer uma coisa e param no meio, ficam olhando as folhas das amendoeiras como se tivessem acabado de descobrir um estranho passarinho. Seus cabelos tornam-se mais claros e às vezes os olhos também; algumas crescem imperceptivelmente meio centímetro. Estremecem quando de súbito defrontam um gato; são assaltadas por uma remota vontade de miar; e certamente, quando a tarde cai, ronronam para si mesmas.

Entregam-se a redes; é sabido, ao longo de toda a faixa tropical do globo, que as mulheres não habituadas a rede e que nelas se deitam ao crepúsculo, no estio, são perseguidas por fantasias e algumas imaginam que podem voar de uma nuvem a outra nuvem com facilidade. Sendo embaladas, elas se comprazem nesse jogo passivo e às vezes tendem a se deixar raptar, por deleite ou preguiça.

Observei uma dessas pessoas na véspera do solstício, em 20 de dezembro, quando o sol ia atingindo o primeiro ponto do Capricórnio, e a acompanhei até as imediações do Carnaval. Sentia-se que ia acontecer algo, no segundo dia da lua cheia de fevereiro; sua boca estava entreaberta: fiz um sinal aos interessados, e ela pôde ser salva.

Se realmente já chegou o outono, embora não o dia 22, me avisem. Sucederam muitas coisas; é tempo de buscar um pouco de recolhimento e pensar em fazer um poema.

Vamos atenuar os acontecimentos, e encarar com mais doçura e confiança as nossas mulheres. As que sobreviveram a este verão.

Rubem Braga

Março, 1953.


Extraído do livro "A Cidade e a Roça", Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1964, pág. 27.

domingo, 9 de dezembro de 2007

Como quem volta

Como quem volta à casa antiga, chego e me instalo. Mas não é uma casa antiga. É uma antiga casa nova, pois é para fazer o novo que fomos convocados.
Existe o novo? me pergunto. Um novo desvinculado de tudo o que o antecedeu, um novo primeiro, inaugural, que nasce consigo?

Quando entrei no Caderno B a primeira vez, havia palmeirinhas no patamar da escada, vidros jateados com arabescos separando as salas e linóleo verde no tampo das mesas, debaixo das máquinas de escrever. Eu também tinha um estremecimento de palmeiras na alma, farfalhar de medo e insegurança. Tudo era novo para mim. Vinha de belas-artes, jornalismo só se aprendia na redação e era terreno de gente atirada, ruidosa, homens, de preferência. Eu ali hesitante, sem me sentir atirada, sem saber onde me punha, sem saber como agir, o que dizer, sem saber. E nada ruidosa.

Anos depois chegaria ao jornal armada, porque havia ameaça de invasão por parte dos militares. Entreguei a Carlos Lemos, então secretário do jornal, a pistola Beretta 22 que levava na bolsa, quase uma bijuteria que meu pai havia me dado para me proteger, porque morava sozinha com meu irmão no Parque Lage. Não lembro, mas certamente Lemos sorriu do meu gesto de valentia. Já não era a mocinha hesitante que havia chegado àquela casa, era a jornalista disposta a defendê-la.

Aqui aprendi tudo o que havia para se aprender em jornalismo. Até a falar alto e a contar piadas, mais alto nos dias em que fazíamos o fechamento de três cadernos e a redação ficava tensa, de olho no relógio. E aprendi com Amílcar de Castro a ousadia estética que havia sido inaugurada por Reynaldo Jardim, e que nunca mais esqueceria, a guilhotina agindo sobre as fotos com entusiasmo de revolução francesa.

Máquinas de escrever, linóleo, guilhotina, fotos em papel, que antiga deve parecer a um jovem essa conversa. E, no entanto, apesar de eu ter passado pela cerimônia de iniciação de todo jovem jornalista daquela época - descer à oficina e ter o próprio nome fundido em chumbo pelo linotipista, nome que, com seu novo peso, ainda guardo em alguma gaveta - éramos moderníssimos.

Não sei se ainda saberíamos produzir uma modernidade igual àquela. Como se o novo só se concretizasse depois de emitido pelo Caderno B. Éramos todos repórteres investigativos do novo, daquilo que, como ainda não se dizia mas já existia igualzinho, acabava de pintar nas bocas. Ou melhor, que se preparava para pintar nas bocas e que só pintaria, de fato, depois de sacramentado pelo B. Passar o fim de semana sem ter lido antes o Caderno B era um risco que os descolados não se permitiam.

Em certo momento criamos - digo criamos por vaidade, pois quem criou mesmo foi Alberto Dines, nós apenas realizamos - a Página de Verão. Começava a esquentar, mudava o horário e lá íamos nós. Que alegria fazê-la, viver a cidade que nem sabujo, farejando pelos cantos, antenas sempre ligadas, olho nos detalhes, nos esboços, nos nascedouros. E a cidade toda, não apenas a Zona Sul, embora a Zona Sul, et pour cause, fosse a nossa praia. Uma crônica, uma coluna, uma reportagem, assim era a Página. E ilustrações a traço. Durante alguns anos, a impressão que tivemos era de que o verão não aconteceria em sua plenitude sem ela. Mas as páginas são sempre mais propensas a acabar do que os verões.

Tivemos o Jornal de Poesia, página dupla, mensal, com o que de mais atual estivesse ocorrendo entre os bardos. Lira tocando na imprensa diária, como nunca depois.

E durante oito anos, barbarizamos no teatro. Nunca mais o Rio teve uma cobertura teatral como naquele período. Era editor Paulo Affonso Grisolli, que acabou de falecer em Portugal. Diretor de teatro, e mais tarde de televisão, ele ensaiava de um lado, editava do outro, sempre de olho nos palcos. A redação se encheu de gente de teatro, uns que vinham conversar, outros que eram redatores, como Luis Carlos Maciel e Tite de Lemos. Cheguei até a fazer os figurinos para uma peça de Grisolli que apresentamos no MAM, tudo modesto, tudo sem dinheiro, mas parte da efervescência que vivíamos e que levávamos para as mesas com tampo de linóleo.

Gente maravilhosa passou por elas. Quando adentrei no B, quem mais se alegrou foi José Ramos Tinhorão, que, não sendo ainda essa sumidade da MPB, era redator. Cabia a ele, até então, por falta de mulher na redação, fazer as matérias femininas. Com a minha chegada, nunca mais teve que se preocupar com a altura das bainhas. Nonato Masson, especialista em cangaço, editor, que criou sessões memoráveis como Onde o Rio é Mais Carioca. Cláudio Mello e Souza, o poeta com peito de havaiano, como o definia Nelson Rodrigues. João Antônio, redator tímido que em silêncio afiava suas garras para as letras, e que um dia me mostrou, com alma exposta, os contos que acabara de mandar para o concurso literário do Paraná. Roberto Drummond, que tinha medo do Rio, que tinha medo do mundo, que sentava a um canto com as costas contra a parede e de vez em quando fugia para Belo Horizonte para nunca mais voltar, até que não voltou. Juarez Barroso, belo contista que só não produziu ampla obra porque morreu cedo. Carlos Eduardo Novaes, que ali consolidou seu humor. Fernando Gabeira, a quem eu dava carona na volta e que enfrentava o trânsito com longos discursos políticos. E o inigualável time dos cronistas, Clarice, Drummond, Sabino e o recém-republicado Carlinhos.

A velha nova casa guarda ainda as pegadas dos antigos habitantes. O nosso desafio agora é fazer um caderno tão novo quanto aquele que fizemos junto

Marina Colasanti

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

A Mulher Madura


O rosto da mulher madura entrou na moldura de meus olhos.


De repente, a surpreendo num banco olhando de soslaio, aguardando sua vez no balcão. Outras vezes ela passa por mim na rua entre os camelôs. Vezes outras a entrevejo no espelho de uma joalheria. A mulher madura, com seu rosto denso esculpido como o de uma atriz grega, tem qualquer coisa de Melina Mercouri ou de Anouke Aimé.


Há uma serenidade nos seus gestos, longe dos desperdícios da adolescência, quando se esbanjam pernas, braços e bocas ruidosamente. A adolescente não sabe ainda os limites de seu corpo e vai florescendo estabanada. É como um nadador principiante, faz muito barulho, joga muita água para os lados. Enfim, desborda.


A mulher madura nada no tempo e flui com a serenidade de um peixe. O silêncio em torno de seus gestos tem algo do repouso da garça sobre o lago. Seu olhar sobre os objetos não é de gula ou de concupiscência. Seus olhos não violam as coisas, mas as envolvem ternamente. Sabem a distância entre seu corpo e o mundo.


A mulher madura é assim: tem algo de orquídea que brota exclusiva de um tronco, inteira. Não é um canteiro de margaridas jovens tagarelando nas manhãs.


A adolescente, com o brilho de seus cabelos, com essa irradiação que vem dos dentes e dos olhos, nos extasia. Mas a mulher madura tem um som de adágio em suas formas. E até no gozo ela soa com a profundidade de um violoncelo e a sutileza de um oboé sobre a campina do leito.


A boca da mulher madura tem uma indizível sabedoria. Ela chorou na madrugada e abriu-se em opaco espanto. Ela conheceu a traição e ela mesma saiu sozinha para se deixar invadir pela dimensão de outros corpos. Por isto as suas mãos são líricas no drama e repõem no seu corpo um aprendizado da macia paina de setembro e abril.


O corpo da mulher madura é um corpo que já tem história. Inscrições se fizeram em sua superfície. Seu corpo não é como na adolescência uma pura e agreste possibilidade. Ela conhece seus mecanismos, apalpa suas mensagens, decodifica as ameaças numa intimidade respeitosa.


Sei que falo de uma certa mulher madura localizada numa classe social, e os mais politizados têm que ter condescendência e me entender. A maturidade também vem à mulher pobre, mas vem com tal violência que o verde se perverte e sobre os casebres e corpos tudo se reveste de uma marrom tristeza.


Na verdade, talvez a mulher madura não se saiba assim inteira ante seu olho interior. Talvez a sua aura se inscreva melhor no olho exterior, que a maturidade é também algo que o outro nos confere, complementarmente. Maturidade é essa coisa dupla: um jogo de espelhos revelador.


Cada idade tem seu esplendor. É um equívoco pensá-lo apenas como um relâmpago de juventude, um brilho de raquetes e pernas sobre as praias do tempo. Cada idade tem seu brilho e é preciso que cada um descubra o fulgor do próprio corpo.


A mulher madura está pronta para algo definitivo.


Merece, por exemplo, sentar-se naquela praça de Siena à tarde acompanhando com o complacente olhar o vôo das andorinhas e as crianças a brincar. A mulher madura tem esse ar de que, enfim, está pronta para ir à Grécia. Descolou-se da superfície das coisas. Merece profundidades. Por isto, pode-se dizer que a mulher madura não ostenta jóias. As jóias brotaram de seu tronco, incorporaram-se naturalmente ao seu rosto, como se fossem prendas do tempo.


A mulher madura é um ser luminoso é repousante às quatro horas da tarde, quando as sereias se banham e saem discretamente perfumadas com seus filhos pelos parques do dia. Pena que seu marido não note, perdido que está nos escritórios e mesquinhas ações nos múltiplos mercados dos gestos. Ele não sabe, mas deveria voltar para casa tão maduro quanto Yves Montand e Paul Newman, quando nos seus filmes.


Sobretudo, o primeiro namorado ou o primeiro marido não sabem o que perderam em não esperá-la madurar. Ali está uma mulher madura, mais que nunca pronta para quem a souber amar.



Affonso Romano de Sant'Anna


O texto acima foi extraído do livro "A Mulher Madura", Editora Rocco - Rio de Janeiro, 1986, pág. 09.

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Nasce o escritor


Há dias, porém, estando no Rádio City, de Nova York, gozando o esplendor do espetáculo mais célebre do mundo com suas cem estandardizadas "girls" de pernas perfeitas realizando, sem erros, a matemática de suas danças ginásticas, veio-me à cabeça o saudoso teatrinho de Itapira. A emoção me tomou. Comparei o valor artístico técnico daquela faustosa apoteose de belezas e de luzes com a escura ribalta interiorana onde uma companhia andeja de comediantes italianos representava, para uma parva platéia de caipiras, nada menos nada mais que o Hamlet de Shakespeare. Eu estava lá, anelante. Adivinhava, mais que compreendia, que o ator, encarnando Hamlet, realizava um sonho.


Ator fracassado, ficara-lhe na alma o anseio de participar do drama do príncipe torvo. Avaliava a carga passional que animava esse personagem imortal e ele também queria, fosse como fosse, viver o instante dramático do filho humilhado e espoliado punindo a mãe adúltera e o padrasto assassino, usurpador do trono. Havia uma grandeza épica naquele artista frustrado dando todo seu gênio interior à sua realização histriônica diante daqueles jecas de boca mole fascinados pelos trajes de máscara dos comparsas e, sobretudo, pelo lucilar das espadas prateadas e frias.


Raramente me era dado sentir tanto e tão bem a arte mercê do amor que por ela manifestava aquele mambembe das ribaltas. Que eram os jogos acrobáticos daquelas duzentas pernas impecáveis na simetria dos movimentos e subversivas na insinuação do sexo, diante do Hamlet itapirense ele e o gênio de Shakespeare sozinhos no lusco-fusco daquela ribalta alumiada por lampiões de querosene na qual acordava do seu maravilhoso transe com as palmas finais dos seus cômicos assistentes?


Todas essas emoções me fatalizavam à sorte de artista. Não havia escapar. Eu me comovia demais com esse mundo rico de humanidade. Seus panoramas ficavam, cromáticos, fascinantes na minha memória e os personagens me pediam uma linguagem pela qual pudessem transladar para outros as emoções que me haviam tão intimamente comunicado. Foi então que comecei a rabiscar as primeiras páginas de prosa e de verso.


Já lia e muito. Todos os livros de papai ia devorando. Michaud, Flammarion, Alexandre Dumas, Dante, Tasso, Ariosto. mistura de história, vulgarização científica, ficção, poemas, o que me caísse diante das pupilas, de Pinocchio a D. Quixote, do drama épico das cruzadas às aventuras do Conde de Monte Cristo tudo ia devorando à tarde e à noite. Comecei, então, a escrever um terrível romance de cordel resíduos mentais das aventuras de d’Artagnan e dos personagens de Ponson du Terrail. Era uma história complicada na qual certamente entrava meu tio-avô capitão, pois parte da trama se passava nas batalhas napoleônicas. Mamãe era a única leitora dos sucessivos cadernos que lhe apresentava. Paciente, ela se emaranhava nas aventuras bélicas dos meus personagens entretida mais pela riqueza episódica do que pelo sentimento, porquanto nessa moxinifada romântica não entrava mulher.


De certa forma, mesmo castamente, eu estava fora do problema do amor e do sexo.


Os primeiros versos que escrevi foram polêmicos e satíricos. Eu fizera alguma diabrura e mamãe fechou-me num quarto. A certa altura, pela frincha da porta, reclamei um lanche. Estava com fome. A travessura deveria ter sido séria, pois mamãe, sempre tão frouxa pela sua ternura, continuava policial e severa. Então peguei num pedaço de papel rasgado ao caderno e escrevi.


"Esta é uma coisa desumana.

Mamãe me nega até uma banana."


Fiz escorregar o poema pela frincha da porta e pouco depois esta se abria. Esperava-me o lanche: bananas com queijo. Descobri, então, uma das utilidades múltiplas da poesia.



Menotti del Picchia

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

De afrodisíacos


Tenho um pouco de pudor de contar, mas só um pouco, porque sei que vou acabar contando mesmo. É porque lá em casa a gente não podia falar nem diabo, que levava sabão, quanto mais... ah, no fim eu falo. Coisa do Teodoro, ele quem me contou, você sabe, marido depois de um certo tempo de casamento fala certas coisas com a mulher. O seu não fala? Pois é, e de novo tem um tempão que aconteceu. Lembra aquela história dos queijos? Igual. Demorou um par de anos pra me contar. O pessoal dele é assim, sem pressa. Tem uma história deles lá, que o pai dele, meu sogro, esperou 52 anos pra relatar. Diz ele que esperou os protagonistas morrerem. Tem condição? Mas o Teodoro — foi quando a gente mudou pra casa nova — teve de ir nas Goiabeiras tratar um marceneiro e passou, pra aproveitar, na casa da tia dele, a Carlina do Afonso, e encontrou lá o Gomide. Tou encompridando, acho que é só por medo do fim, mas agora já comecei, então. Então, diz o Teodoro, que o Gomide tirou do bolso do paletó uma trouxinha de palha de milho, cortadas elas todas iguaizinhas e amarradas com uma embirinha da mesma palha. Escolheu, escolheu, pegou uma bem lisa e bem branquinha, tirou o canivete do outro bolso, lambeu a palha pra lá, pra cá, e ficou um tempão lhe passando firme a lâmina, do meio pras pontas, de ponta a ponta, entremeando com lambidas. Depois, ainda segurando a palha entre os dedos, foi a hora de tirar e picar o fumo de rolo bem fininho. Ia picando e pondo na concha da mão. Acabou, guardou o rolo e ficou socavando o fumo na mão com a ponta do canivete. Depois pegou a palha, mais uma lambida e foi pondo nela o fumo, espalhando ele por igual na canaleta formada, pressionando bem pra ficar bem firme. Deu mais uma lambida na parte mais próxima do fumo e com os polegares e indicadores foi enrolando o cigarro devagarinho, uma enrolada e uma lambida, uma enrolada e uma lambida. Com o canivete dobrou uma das pontas para o fumo não escapar, tirou a binga do bolso, acendeu e pegou a pitar. Agora é que vem, ai, ai. Teodoro falou que o tempo todo da operação ele não despregava o olho daquilo. Disse que nem sabe o que tia Carlina arengava, só punha sentido no Gomide fazendo o pito. Diz ele que foi uma coisa tão esquisita — esquisita, não —, tão encantada que ele ficou de pau duro. É isso. Falou também que ficou doido pra sair dali, comprar palha, fumo de rolo e repetir tudo igualzinho ao Gomide. Eu entendo. Quando conheci o Teodoro, ele fumava e eu achava muito emocionante. Tenho muita saudade de quando não existia essa amolação de cigarro dar câncer, nem de mulher ser magra. A gente tinha mais tempo para o que precisa, não é mesmo? Será que faz mal mesmo? Colesterol, depois de tanto barulho, estão falando que já tem do bom. Qualquer dia vou pedir ao Teodoro pra dar uma fumadinha, só pra fazer tipo.


Adélia Prado


Texto extraído do livro "Filandras", Editora Record - Rio de Janeiro, 2001, pág. 53.

sábado, 1 de dezembro de 2007



O vôo da águia

Já que estamos nesse clima de recomeçar, com a alma limpa para novas coisas, vou iniciar transcrevendo algo que recebi. Havia pensado em outra crônica, coisa tipo "propostas para um novo milênio", como o fez Ítalo Calvino. Mas à$ vezes um texto parabólico, elíptico, pode nos dizer mais que outros pretensamente objetivos. Ei-lo:


"A águia é a única ave que chega a viver 70 anos. Mas para isso acontecer, por volta dos 40, ela precisa tomar uma séria e difícil decisão.


Nessa idade, suas unhas estão compridas e flexíveis. Não conseguem mais agarrar as presas das quais se alimenta. Seu bico, alongado e pontiagudo, curva-se. As asas, envelhecidas e pesadas em função da espessura das penas, apontam contra o peito. Voar já é difícil.


Nesse momento crucial de sua vida a águia tem duas alternativas: não fazer nada e morrer, ou enfrentar um dolorido processo de renovação que se estenderá por 150 dias.


A nossa águia decidiu enfrentar o desafio. Ela voa para o alto de uma montanha e recolhe-se em um ninho próximo a um paredão, onde não precisará voar. Aí, ela começa a bater com o bico na rocha até conseguir arrancá-lo. Depois, a águia espera nascer um novo bico, com o qual vai arrancar as velhas unhas. Quando as novas unhas começarem a nascer, ela passa a arrancar as velhas penas. Só após cinco meses ela pode sair para o vôo de renovação e viver mais 30 anos.


"Esse texto foi mandado como um cartão de fim de ano pela Rose Saldiva, da Saldiva Propaganda. Tem mais um parágrafo explicitando, comentando essa parábola e o titulo geral é "Renovação".


Achei que você ia gostar de tomar conhecimento disto, sobretudo quando janeiro nos inunda com sua luz.Este texto vale mais que mil ilustrações.


Sei como é difícil uma nova ou surpreendente idéia para cartão de fim de ano. Mas esse, além de bater fortemente em nosso imaginário, dispara em nós uma série de correlações e desdobramentos.


A: abertura é seca e forte. Não há uma palavra sobrando. Parece as batidas do destino na Quinta Sinfonia de Beethoven. Releiam. "A águia é a única ave que chega a viver 70 anos. Mas para isso acontecer, por volta dos 40, ela precisa tomar uma séria e difícil decisão.” ·Já li em algum lugar que Jung dizia que, em torno dos 40, alguma coisa subterrânea começa a ocorrer com a gente e os seres humanos sentem que estão no auge de sua força criativa. É quando podem (ou não) entrar em contato com forças profundas de sua personalidade.


Já ouvi de especialistas em administração de empresas que tem uma hora em que elas começam a crescer e seus dirigentes têm que tomar uma decisão — ou fazem com que cresçam de vez assumindo mais pesados desafios ou, então, fecham, porque ficar estagnado é apenas adiar a morte.


Já mencionei em outras crônicas o personagem Jean Barois (de Roger Martin du Gard) que fez um testamento aos 40 anos, quando achava que estava no auge de sua potência intelectual, temendo que na velhice, carcomido e alquebrado, fizesse outro testamento que negasse tudo aquilo em que acreditava quando jovem. Com efeito, envelhecendo, fez realmente outro testamento que desautorizava e desmentia o anterior. É que sua perspectiva na trajetória da vida mudara, como muda a de um viajante ou a do observador de um fenômeno.


O ano está começando.


Mais grave ainda: um século está se iniciando.


Gravíssimo: mais que um ano, mais que um século, um novo milênio está se inaugurando.Três vezes Sísifo: o ano, o século, o milênio.


Sísifo — aquele que foi condenado a rolar uma pedra montanha acima, sabendo que quando estivesse quase chegando no topo — cataprum!... a pedra despencaria e ele teria que empurrá-la, de novo, lá para o alto.


Pois bem: "A águia é a única ave que chega a viver 70 anos. Mas para isso acontecer, por volta dos 40 anos, ela precisa tomar uma séria e difícil decisão. Nesta idade suas unhas estão compridas. Não conseguem mais agarrar as presas das quais alimenta. Seu bico, alongado e pontiagudo, curva-se. As asas, envelhecidas e pesadas em função da espessura das penas, apontam contra o peito. Voar já é difícil.”


Nossa sociedade pensou ter inventado uma maneira de resolver, nos seres humanos, o drama da águia: a cirurgia plástica. Silicone aqui e acolá, repuxar a pele acolá e aqui, pintar e implantar cabelos. Isto feito, a águia sai flanando pelos salões, praias, telas, ruas, escritórios e passarelas.


Mas aquela outra águia prefere uma solução que veio de dentro. Talvez mais dolorosa. Recolher-se a um paredão, destruir o velho e inútil bico, esperar que outro surja e com ele arrancar as penas, num rito de reiniciação de 150 dias.


Então a águia, digamos, acabou de descasar.


(Tem que redimensionar seu corpo e seus desejos, desmontar casa e sentimentos, realocar objetos e sensações, reassumir filhos.)


Então a águia, digamos, acabou de perder o emprego.


(Tem que descobrir outro trajeto diário, outras aptidões, enfrentar a humilhação.)


ntão, a águia,digamos, acabou de mudar de país.(A crise ou o amor levou-a a outras paragens, tem que reaprender a linguagem de tudo e reinventar sua imagem em outro espelho.)


Então, a águia, digamos, acabou de perder alguém querido.(É como se uma parte do corpo lhe tivessem sido arrancada, sente que não poderá mais voar como antes, que o azul lhe é inútil.)


Então, a águia, digamos, está numa nova situação em que está sendo desafiada a mostrar sua competência.(Tem medo do fracasso, acha que não terá garras nem asas para voar mais alto.)


Então, a águia, digamos, andou olhando sua pele, sua resistência física, certos achaques de velhice.


Pois bem. Há que jogar fora o bico velho, arrancar as velhas penas, e recomeçar.


Época de metamorfose.


Os estudiosos da metamorfose dizem que não apenas larvas se transformam em borboletas. Para nosso espanto as próprias pedras passam também por silenciosas metamorfoses.


Enfim, parece que estamos condenados à metamorfose. Morrer várias vezes e várias vezes renascer. Até que, enfim, cheguemos à metamorfose final, onde o que era sonho e carne se converte em pó.


Mas que fique sempre no azul o imponderável vôo da águia.



Affonso Romano de Sant'Anna


Texto extraído do jornal “O Globo”, Segundo Caderno, edição de 03/01/2001, pág. 8.

Arrumação


Um dia você cisma de arrumar aquele armário. Papéis, pastas, recibos, recortes, projetos, entrevistas, resenhas, cartas. Vai tentando pôr ordem na bagunça, colocando no lugar certo umas coisas, jogando outras fora, e aí esbarra com uma agenda velha. Por que teria sido guardada? Você abre ao acaso e lê:


O viajante alemão Von Martius conta que ouviu numa fazenda perdida de Minas Gerais, em 1818, as filhas do fazendeiro cantarem acompanhando-se ao piano uma música de Tomás Antônio Gonzaga, "No Regaço". Pelo que fala Martius, Gonzaga era compositor conhecido e apreciado. E note-se que já estava morto havia uns 10 anos e havia mais de 20 fora degredado de Vila Rica para Moçambique. Por que algum pesquisador universitário não procura as músicas dele?


Abre noutra página e lê:


Stendhal - "Mesmo as mulheres mais bonitas parecem menos bonitas no segundo dia". Que ele me perdoe a paráfrase: as mulheres feias também parecem menos feias no segundo dia.


Você procura a data do seu aniversário e encontra:"O melhor destino é não nascer, e o segundo, depois desse, é morrer ao nascer". (Louis de Leon, teólogo francês, 1528.) O astral católico andava baixíssimo naqueles anos da Reforma. Luterana.


E logo abaixo:


O profeta Ezequiel viu uma roda cheia de luzes girando no ar, formada por quatro rodas que giravam umas dentro das outras, deslocando-se nas quatro direções, com seres luminosos dentro. Parecia um disco voador cheio de ETs. Também quem mandou acatar a ordem do Senhor e comer pão com cocô de vaca durante um ano inteiro?


Você vira páginas e encontra uma quase cheia de anotações, escritas com tintas diferentes, separadas por um traço:


Idéias para histórias infantis. Pianista infantil de sucesso viaja por vários países carregando uma grande frustração. O que ele queria mesmo era ficar em casa jogando Mortal Kombat e espreitando a governanta no banho. Dilúvio moderno, também simbólico, mas cheio de aventuras: meninos isolados num prédio de apartamentos, pais isolados no prédio do escritório, faltam gêneros, luz, andares de baixo inundados, defesa contra piratas vindos de prédios vizinhos, organização da comunidade, comunicações interrompidas, é preciso reinventar muita coisa. Ladrão de sonhos: um jovem vidrado em eletrônica inventa um aparelho de captar sonhos, parecido com uma televisão, em que qualquer um pode ver os sonhos do outro.


Você pensa que a anotação é velha, porque esta história você já escreveu, olha outra vez a data da agenda, 1991, e abre noutra página:


- Aonde é que o senhor quer chegar?


- Já estou de volta, minha senhora. Eu sou mineiro.


Abre no mês de dezembro e lê, no dia 10:


Placa DG-8865. Carro que bateu na traseira do meu. Mulher nervosa gritando: "Por que o senhor parou?" - tentando me convencer de que sinal amarelo é pra passar. Eta país...


Passa algumas páginas, anotações inúteis, e pára no dia 19:


"Acabou em pizza". Era gíria de paulista. Nos anos 60, quando ouvi isso pela primeira vez, deliciado, me explicaram: é briga de corintiano e palmeirense, não dá em nada, acaba em pizza. Gaúcho também tem seu jeito de dizer a mesma coisa: "Em briga de gaúcho, quem morre é o boi". Acaba em churrasco.


Você lê na última página, sob o título "Epígrafe", uma frase de Bernard Shaw, tirada do prefácio de "Matusalém", e já não sabe para que a anotou, talvez por ser intrigante, nem sabe para epígrafe de qual conto, ou romance, ou artigo iria ela, e a acha de novo intrigante:


"A Natureza não privilegia o homem. Se o homem não der certo, a Natureza tentará outra experiência.


"Você olha aquela agenda quase sem serventia, como certas chaves que não usamos nem tiramos do chaveiro, esquecidos de que portas abriam, mas esperançosos de que abram alguma, algum dia, e a coloca de novo no armário.



Ivan Angelo

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

A Grande Noite do Ceguinho


Amigos, na minha crônica de ontem, apresentei o único torcedor ceguinho do mundo. É Tricolor de não sei quantas encarnações. E não perde uma do Fluminense. Mete-se nas arquibancadas com a sua bengalinha branca. Torce, como ninguém, os 90 minutos. Discute impedimentos acusa pênaltis não marcados, é mais opinante do que ninguém. E quando aparece todos dizem "Olha o Ceguinho! Olha o Ceguinho!" E uma coisa eu digo: todos podem trair o Fluminense, menos o Ceguinho.


Pois bem. O meu artigo saiu ontem e vocês não imaginam: logo de manhã, choveram os telefonemas. Todos queriam saber "Como é? O Ceguinho não enxerga e vê?" Tive de explicar que há uma óptica do amor. Não existe nada mais límpido do que a visão do sentimento. Uma leitora insinuou a dúvida: "Não é triste um Ceguinho na torcida Tricolor?" Esclareci que não há ninguém mais alegre do que o Ceguinho do Fluminense.


A leitora fez espanto: "Alegre?" E eu, taxativo: "Alegre como o pardal da manhã" E esta, justamente a sensação que me dá o Ceguinho. Lembro-me de uma passagem de minha infância profunda. Certa manhã, ao acordar, olhei para a janela e lá estava, pulando no peitoril, um pardal. Era a alegia da vida em forma de passarinho.


Tanto falei da alegria do Ceguinho que, por fim, a leitora, se convenceu. Outro que, desde o primeiro momento, se interessou pelo comovente "pó-de-arroz" foi o Antônio Egídio, da publicidade do Jornal dos Sports. Quando cheguei na Redação ele veio me falar e com vibração. Repetia, de olho rútilo: "E o Ceguinho? E o Ceguinho?" Parecia-lhe que o Ceguinho era uma figura tão encantada quanto o Gravatinha.


Também o Antônio quis que eu contasse coisas sobre o Ceguinho.


Fiz-lhe a vontade. Disse ao Antônio que a alegria está ao alcance de qualquer um. O Ceguinho é feliz e por quê? Há príncipes, reis, rainhas, duques, potentados que ainda não descobriram a doçura da vida. Eis o que eu queria dizer: a felicidade do Ceguinho chama-se Fluminense. Com o Tricolor, sua vida passou a ter um sentido. Não sentiu mais nenhuma solidão. Foi como se, de repente, a sua treva se enchesse de estrelas.


Por isso, já disse e vivo repetindo que não há torcida como a do Fluminense. Temos tudo. Há Ministros na massa Tricolor; paus-de-arara; e grã-finas; e marias-cachuchas; e presidentes; e veterinários; e crioulões. Falei em "presidentes". Em 1919, quando decidimos com o Flamengo, lá estava, na Tribuna de Honra, Epitácio Pessoa, de fraque. Era Presidente e, ao lado de D. Guilhermina Guinle, viu o Tricolor golear o Rubro-Negro por 4 a 0. Se duvidarem, encontraremos um Mandarim, ou um esquimó, entre os que sonham com as nossas vitórias.


Mas faltava um Ceguinho. Por coincidência, sentei-me ao seu lado, no jogo Fluminense x Bonsucesso. E, quando o "pó-de-arroz" entrou em campo, o Ceguinho gritou: "Ademar está mais magro". Para a óptica generosa do seu amor, Ademar sempre estará mais magro. E quando acabou o jogo, o Ceguinho levantou-se. Vou repetir a imagem que usei acima. O Fluminense ganhara de 4 a 0. E a noite do Ceguinho encheu-se de estrelas.



Nélson Rodrigues

domingo, 25 de novembro de 2007

Por Vários Motivos

Durante uma recepção elegante, a flor dos Ponte Pretas estava a mastigar o excelente jantar, quando uma senhora que me fora apresentada pouco antes disse que adorou meus livros e que está ávida de ler o próximo.

— Como vai se chamar?Fiquei meio chateado de revelar o nome do próximo livro. Ela podia me interpretar mal. Como ela insistisse, porém, eu disse:


— "Vaca Porém Honesta."


(*)Madame deu um sorriso amarelo mas acabou concordando que o nome era muito engraçado, muito original. Depois — confessando-se sempre leitora implacável, dessas que sabem até de cor o que a gente escreve —, madame pediu para que não deixássemos de incluir aquela crônica do afogado.


— Qual? — perguntei.


— Aquela do camarada que ia se afogando, aí os carros foram parando na praia de Botafogo para ver se salvavam o homem. Depois um carro bateu no outro, houve confusão e até hoje ninguém sabe se o afogado morreu ou salvou-se. Lembra-se? Aquela é uma de suas melhores crônicas.


Foi então que eu contei pra ela o caso do colecionador de partituras famosas, que um dia foi a um editor de música procurando o original de certa sonata que fora composta por Haydn e Schumann juntos. O editor ficou olhando para ele e o colecionador esclareceu: - Sei que essa partitura é raríssima, mas eu pagaria qualquer preço por ela.


— Vai ser um pouco difícil — disse o editor — conseguir uma partitura composta por Haydn e Schumann juntos, por vários motivos. Primeiro: quando Schumann nasceu, Haydn tinha morrido no ano anterior.


A leitora que se lembra de tudo que eu escrevi estranhou e perguntou:


— Por que me contou essa história?


— Porque lembra a história que estamos vivendo agora. A crônica sobre o afogado que a senhora diz ser uma das minhas melhores crônicas... quem escreveu foi Fernando Sabino.


Ela achou engraçadíssimo. Papai agrada em festa.


(*) O título, mais tarde, foi trocado, porque a vaca protestou.
Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto)


Texto extraído do livro "O melhor da crônica brasileira", José Olympio Editora - Rio de Janeiro, 1997, pág. 88.

terça-feira, 20 de novembro de 2007

Como comecei a escrever


Quando eu tinha 10 anos, ao narrar a um amigo uma história que havia lido, inventei para ela um fim diferente, que me parecia melhor. Resolvi então escrever as minhas próprias histórias.
Durante o meu curso de ginásio, fui estimulado pelo fato de ser sempre dos melhores em português e dos piores em matemática — o que, para mim, significava que eu tinha jeito para escritor.


Naquela época os programas de rádio faziam tanto sucesso quanto os de televisão hoje em dia, e uma revista semanal do Rio, especializada em rádio, mantinha um concurso permanente de crônicas sob o titulo "O Que Pensam Os Rádio-Ouvintes". Eu tinha 12, 13 anos, e não pensava grande coisa, mas minha irmã Berenice me animava a concorrer, passando à máquina as minhas crônicas e mandando-as para o concurso. Mandava várias por semana, e era natural que volta e meia uma fosse premiada.


Passei a escrever contos policiais, influenciado pelas minhas leituras do gênero. Meu autor predileto era Edgar Wallace. Pouco depois passaria a viver sob a influência do livro mais sensacional que já li na minha vida, que foi o Winnetou de Karl May, cujas aventuras procurava imitar nos meus escritos.


A partir dos 14 anos comecei a escrever histórias "mais sérias", com pretensão literária. Muito me ajudou, neste início de carreira,ter aprendido datilografia na velha máquina Remington do escritório de meu pai. E a mania que passei a ter de estudar gramática e conhecer bem a língua me foi bastante útil.


Mas nada se pode comparar à ajuda que recebi nesta primeira fase dos escritores de minha terra Guilhermino César, João Etienne filho e Murilo Rubião -- e, um pouco mais tarde, de Marques Rebelo e Mário de Andrade, por ocasião da publicação do meu primeiro livro, aos 18 anos.


De tudo, o mais precioso à minha formação, todavia, talvez tenha sido a amizade que me ligou desde então e pela vida afora a Hélio Pellegrino, Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos, tendo como inspiração comum o culto à Literatura.


Fernando Sabino



Texto extraído do livro "Para Gostar de Ler - Volume 4 - Crônicas", Editora Ática - São Paulo, 1980, pág. 8.
Tudo sobre Fernando Sabino em "
Biografias".

Cumplicidade de mãe e filha


A mãe, com as duas filhas adolescentes, passou por mim na rua movimentada. Todos os dias passam por nós mães com filhas adolescentes em ruas movimentadas. Mas aquela, com as suas filhas, chamou-me a atenção, me fez parar, virar a cabeça para vê-las se afastando de braços dados, num tititi característico.


Disse tititi e era isso mesmo. Elas iam periquitando num tititi de mãe e filha, de fêmea e suas crias. As meninas do lado, a mãe no meio. No meio (também) emocional. E a filha da esquerda dizia: Porque aquele vestido da vitrina Mãe, acho que o meu presente , dizia a da direita. E a fala de uma e outra foi se picotando e se afastando, deixando rastros assim: Com que sapato devo ir? ela já ganhou a blusa, eu não E a mãe respondendo: Você não acha que está pedindo demais?


As frases eram banais. E agora ao lembrá-las penso que poderia fazer uma crônica só dessa conversinha de mãe e filha, a exemplo do que, certa vez, fez Fernando Sabino com frases de mãe ralhando com filho. Mas há algo diferente que me atrai naquelas mãe e filhas. Nelas surpreendi, de relance, uma coisa chamada cumplicidade. Uma cumplicidade da qual, talvez, nem se dessem conta.


Quem as visse, de um ponto de vista banal, diria: lá vai uma jovem e bela mãe com duas filhas adolescentes, que estão aprendendo a ser belas. Mas não era só isto. Era cumplicidade mesmo, num sentido que eu mesmo estou tentando entender. Por isto, parei dois minutos para decifrar o que o texto vivo passava ante meus olhos.


E ali mesmo me veio essa frase-sensação: as mulheres são mais cúmplices dos filhos e filhas que nós, os compactos e solitários machos, cuja cumplicidade acanhada se desloca e vai se exibir nas mesas dos bares com os amigos ou nos almoços e reuniões de diretoria. Aí, a confraria dos homens exercita enviesadamente o seu afeto. O afeto e a agressividade. Porque a cumplicidade não se realiza só em carinhos. Também nas agressões sibilinas ou explícitas.


É isso: a mulher e as duas filhas personificaram algo que eu percebia, mas não tinha ainda configurado. Deixaram assim de ser três pessoas quaisquer, numa tarde qualquer, de uma cidade qualquer. Posso até dizer onde isto aconteceu. Foi na Visconde de Pirajá, às 4h23, em frente ao número 444. Mas poderia também ser ali na Savassi. Ou em qualquer rua do mundo. O que importa é que, de repente, desenhou-se claramente dentro de mim esta sensação: as mulheres são mais cúmplices dos filhos e filhas que nós, os compactos e solitários machos. Repito esta frase e acrescento numa autocrítica assustada: nós, os exilados do afeto. Por nós mesmos, pelas relações familiares e sociais, que avalizamos.


As fêmeas têm com as crias uma intimidade invejável. Os machos são limitados (claro, há raríssimas exceções). Aceitam a limitação física. A intimidade física, verbal, afetiva das mães com os filhos e filhas começa no ventre. Aí, nós, os homens já estamos (literalmente) meio por fora. E depois vem a amamentação, nova cumplicidade fluindo exteriorizadamente. E depois ainda os passeios diários com a criança pelas praças ou praia, levar e trazer ao colégio e à piscina, pegar e levar à aula disto e daquilo, enquanto o pai está lá dispersando sua afetividade em papéis, que jogará no lixo diariamente ou arquivará para poder jogá-los pela janela no fim do ano.


Enquanto isto a cumplicidade entre a mãe e as crias segue prosperando. Com a filha, as primeiras revelações e escolhas: do sutiã, do batom, da roupa de aniversário. A filha aprendendo a dizer aqueles nomes da vaidade e da descoberta do corpo: vestidos drapeados tecem conversa de uma e outra; conversa plissada com evasé costurando preferências; os cremes preferidos para a pele, os emolientes, os chás para avermelhar ou clarear os cabelos tingindo as horas; as técnicas de depilação, as visitas ao cabeleireiro, a peregrinação peripatética às butiques, a ida ao primeiro ginecologista, enfim, tudo isto vai desenrolando intermináveis e sensuais rituais femininos, que se reduplicam quando a filha vira mãe e se socorre da mãe avó para novos aprendizados.


E o homem meio de longe, meio de banda que nem quitanda. Até a primeira cueca para o filho é a mãe que compra. O homem parece assumir o filho só na hora de passar-lhe a oficina e o escritório. Alguns conseguem cumplicidade na hora de jogar tênis, mergulhar, conversar sobre a moto, lavar o carro. Mas é pouco.


Enquanto isto, por divisão de trabalho, os homens estão alienados desse contato físico-emocional com os filhos. Claro, existe o fim de semana. Aí, ao pai é dado lembrar-se de que é pai. Mas é pouco. Na França, domingo de manhã, o pai sai com os filhos para comprar pão e jornal. Nos Estados Unidos, nos feriados longos, os políticos se fazem fotografar com a família esquiando e cavalgando. Mas é pouco.


Enquanto isto, mães e filhas desfilam a natural cumplicidade numa rua qualquer, numa cidade qualquer, aos olhos de qualquer um.


Affonso Romano de Sant'Anna

domingo, 18 de novembro de 2007



Uma Crônica


Eu sei que a gente se acostuma, mas não devia.


A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E porque à medida que se acostuma esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.



A gente se acostuma a acordar de manhã, sobressaltado porque está na hora. A tomar café correndo porque está atrasado. A ler jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíches porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e a dormir pesado sem ter vivido o dia. A gente se acostuma a abrir a janela e a ler sobre a guerra. E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz.



E aceitando as negociações de paz, aceita ler todo dia de guerra, dos números, da longa duração. A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto. A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que paga. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com o que pagar nas filas em que se cobra.



A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes, a abrir as revistas e a ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema, a engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos. A gente se acostuma à poluição. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às besteiras das músicas, às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À luta. À lenta morte dos rios. E se acostuma a não ouvir passarinhos, a não colher frutas do pé, a não ter sequer uma planta.



A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber. Vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente se senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente só molha os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda satisfeito porque tem sono atrasado.



A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, de tanto acostumar, se perde de si mesma.



Marina Colasanti

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Luís Fernando Veríssimo

Um escritor que passasse a respeitar a intimidade gramatical das suas palavras seria tão ineficiente quanto um gigolô que se apaixonasse pelo seu plantel. Acabaria tratando-as com a deferência de um namorado ou com a tediosa formalidade de um marido. A palavra seria a sua patroa! Com que cuidados, com que temores e obséquios ele consentiria em sair com elas em público, alvo da impiedosa atenção de lexicógrafos, etimologistas e colegas. Acabaria impotente, incapaz de uma conjunção. A Gramática precisa apanhar todos os dias para saber quem é que manda.


(Veríssimo, Luís Fernando. O gigolô das palavras. In: - . O nariz e outras crônicas. São Paulo: Ática, 11ª ed., 3ª impressão, 2004, p. 92, coleção "Para Gostar de Ler", nº 14.)

terça-feira, 30 de outubro de 2007

Rubem Braga



Um abraço de mulher





Subi ao avião com indiferença, e como o dia não estava bonito, lancei apenas um olhar distraído a essa cidade do Rio de Janeiro e mergulhei na leitura de um jornal. Depois fiquei a olhar pela janela e não via mais que nuvens, e feias. Na verdade, não estava no céu; pensava coisas da terra, minhas pobres, pequenas coisas. Uma aborrecida sonolência foi me dominando, até que uma senhora nervosa ao meu lado disse que "nós não podemos descer!".

O avião já havia chegado a São Paulo, mas estava fazendo sua ronda dentro de um nevoeiro fechado, à espera de ordem para pousar. Procurei acalmar a senhora. Ela estava tão aflita que embora fizesse frio se abanava com uma revista. Tentei convencê-la de que não devia se abanar, mas acabei achando que era melhor que o fizesse. Ela precisava fazer alguma coisa, e a única providência que aparentemente podia tomar naquele momento de medo era se abanar.

Ofereci-lhe meu jornal dobrado, no lugar da revista, e ficou muito grata, como se acreditasse que, produzindo mais vento, adquirisse maior eficiência na sua luta contra a morte. Gastei cerca de meia hora com a aflição daquela senhora.

Notando que uma sua amiga estava em outra poltrona, ofereci-me para trocar de lugar, e ela aceitou. Mas esperei inutilmente que recolhesse as pernas para que eu pudesse sair de meu lugar junto à janela; acabou confessando que assim mesmo estava bem, e preferia ter um homem — "o senhor" — ao lado. Isto lisonjeou meu orgulho de cavalheiro: senti-me útil e responsável. Era por estar ali eu, um homem, que aquele avião não ousava cair. Havia certamente piloto e co-piloto e vários homens no avião.

Mas eu era o homem ao lado, o homem visível, próximo, que ela podia tocar. E era nisso que ela confiava: nesse ser de casimira grossa, de gravata, de bigode, a cujo braço acabou se agarrando. Não era o meu braço que apertava, mas um braço de homem, ser de misteriosos atributos de força e proteção. Chamei a aeromoça, que tentou acalmar a senhora com biscoitos, chicles, cafezinho, palavras de conforto, mão no ombro, algodão nos ouvidos, e uma voz suave e firme que às vezes continha uma leve repreensão e às vezes se entremeava de um sorriso que sem dúvida faz parte do regulamento da aeronáutica civil, o chamado sorriso para ocasiões de teto baixo.

Mas de que vale uma aeromoça? Ela não é muito convincente; é uma funcionária. A senhora evidentemente a considerava uma espécie de cúmplice do avião e da empresa e no fundo (pelo ressentimento com que reagia às suas palavras) responsável por aquele nevoeiro perigoso. A moça em uniforme estava sem dúvida lhe escondendo a verdade e dizendo palavras hipócritas para que ela se deixasse matar sem reagir. A única pessoa de confiança era evidentemente eu: e aquela senhora, que no aeroporto tinha certo ar desdenhoso e solene, disse suas malcriações para a aeromoça e se agarrou definitivamente a mim.

Animei-me então a pôr a minha mão direita sobre a sua mão, que me apertava o braço. Esse gesto de carinho protetor teve um efeito completo: ela deu um profundo suspiro de alívio, cerrou os olhos, pendeu a cabeça ligeiramente para o meu lado e ficou imóvel, quieta. Era claro que a minha mão a protegia contra tudo e contra todos, estava como adormecida. O avião continuava a rodar monotonamente dentro de uma nuvem escura; quando ele dava um salto mais brusco, eu fornecia à pobre senhora uma garantia suplementar apertando ligeiramente a minha mão sobre a sua: isto sem dúvida lhe fazia bem. Voltei a olhar tristemente pela vidraça; via a asa direita, um pouco levantada, no meio do nevoeiro.

Como a senhora não me desse mais trabalho, e o tempo fosse passando, recomecei a pensar em mim mesmo, triste e fraco assunto. E de repente me veio a idéia de que na verdade não podíamos ficar eternamente com aquele motor roncando no meio do nevoeiro - e de que eu podia morrer. Estávamos há muito tempo sobre São Paulo. Talvez chovesse lá embaixo; de qualquer modo a grande cidade, invisível e tão próxima, vivia sua vida indiferente àquele ridículo grupo de homens e mulheres presos dentro de um avião, ali no alto. Pensei em São Paulo e no rapaz de vinte anos que chegou com trinta mil-réis no bolso uma noite e saiu andando pelo antigo viaduto do Chá, sem conhecer uma só pessoa na cidade estranha. Nem aquele velho viaduto existe mais, e o aventuroso rapaz de vinte anos, calado e lírico, é um triste senhor que olha o nevoeiro e pensa na morte.

Outras lembranças me vieram, e me ocorreu que na hora da morte, segundo dizem, a gente se lembra de uma porção de coisas antigas, doces ou tristes. Mas a visão monótona daquela asa no meio da nuvem me dava um torpor, e não pensei mais nada. Era como se o mundo atrás daquele nevoeiro não existisse mais, e por isto pouco me importava morrer. Talvez fosse até bom sentir um choque brutal e tudo se acabar. A morte devia ser aquilo mesmo, um nevoeiro imenso, sem cor, sem forma, para sempre. Senti prazer em pensar que agora não haveria mais nada, que não seria mais preciso sentir, nem reagir, nem providenciar, nem me torturar; que todas as coisas e criaturas que tinham poder sobre mim e mandavam na minha alegria ou na minha aflição haviam-se apagado e dissolvido naquele mundo de nevoeiro. A senhora sobressaltou-se de repente e muito aflita começou a me fazer perguntas. O avião estava descendo mais e mais e entretanto não se conseguia enxergar coisa alguma. O motor parecia estar com um som diferente: podia ser aquele o último e desesperado tredo ronco do minuto antes de morrer arrebentado e retorcido.

A senhora estendeu o braço direito, segurando 0 encosto da poltrona da frente, e então me dei conta de que aquela mulher de cara um pouco magra e dura tinha um belo braço, harmonioso e musculado. Fiquei a olhá-lo devagar, desde o ombro forte e suave até as mãos de dedos longos. E me veio uma saudade extraordinária da terra, da beleza humana, da empolgante e longa tonteira do amor. Eu não queria mais morrer, e a idéia da morte me pareceu tão errada, tão feia, tão absurda, que me sobressaltei. A morte era uma coisa cinzenta, escura, sem a graça, sem a delicadeza e o calor, a força macia de um braço ou de uma coxa, a suave irradiação da pele de um corpo de mulher moça. Mãos, cabelos, corpo, músculos, seios, extraordinário milagre de coisas suaves e sensíveis, tépidas, feitas para serem infinitamente amadas. Toda a fascinação da vida me golpeou, uma tão profunda delícia e gosto de viver uma tão ardente e comovida saudade, que retesei os músculos do corpo, estiquei as pernas, senti um leve ardor nos olhos. Não devia morrer! Aquele meu torpor de segundos atrás pareceu-me de súbito uma coisa doentia, viciosa, e ergui a cabeça, olhei em volta, para os outros passageiros, como se me dispusesse afinal a tomar alguma providência.

Meu gesto pareceu inquietar a senhora. Mas olhando novamente para a vidraça adivinhei casas, um quadrado verde, um pedaço de terra avermelhada, através de um véu de neblina mais rala. Foi uma visão rápida, logo perdida no nevoeiro denso, mas me deu uma certeza profunda de que estávamos salvos porque a terra existia, não era um sonho distante, o mundo não era apenas nevoeiro e havia realmente tudo o que há, casas, árvores, pessoas, chão, o bom chão sólido, imóvel, onde se pode deitar, onde se pode dormir seguro e em todo o sossego, onde um homem pode premer o corpo de uma mulher para amá-la com força, com toda sua fúria de prazer e todos os seus sentidos, com apoio no mundo.

No aeroporto, quando esperava a bagagem, vi de perto a minha vizinha de poltrona. Estava com um senhor de óculos, que, com um talão de despacho na mão, pedia que lhe entregassem a maleta. Ela disse alguma coisa a esse homem, e ele se aproximou de mim com um olhar inquiridor que tentava ser cordial. Estivera muito tempo esperando; a princípio disseram que o avião ia descer logo, era questão de ficar livre a pista; depois alguém anunciara que todos os aviões tinham recebido ordem de pousar em Campinas ou em outro campo; e imaginava quanto incômodo me dera sua senhora, sempre muito nervosa. "Ora, não senhor." Ele se despediu sem me estender a mão, como se, com aqueles agradecimentos, que fora constrangido pelas circunstâncias a fazer, acabasse de cumprir uma formalidade desagradável com relação a um estranho - que devia permanecer um estranho. Um estranho — e de certo ponto de vista um intruso, foi assim que me senti perante aquele homem de cara desagradável. Tive a impressão de que de certo modo o traíra, e de que ele o sentia.

Quando se retiravam, a senhora me deu um pequeno sorriso. Tenho uma tendência romântica a imaginar coisas, e imaginei que ela teve o cuidado de me sorrir quando o homem não podia notá-lo, um sorriso sem o visto marital, vagamente cúmplice. Certamente nunca mais a verei, nem o espero. Mas o seu belo braço foi um instante para mim a própria imagem da vida, e não o esquecerei depressa.



O texto acima foi publicado no livro “Os melhores contos – Rubem Braga”, seleção de Davi Arrigucci Jr., Global Editora – São Paulo, e selecionado por Ítalo Moriconi para compor o livro “Os cem melhores contos brasileiros do século”, Editora Objetiva – Rio de Janeiro, 2000, pág. 169.