terça-feira, 20 de novembro de 2007

Cumplicidade de mãe e filha


A mãe, com as duas filhas adolescentes, passou por mim na rua movimentada. Todos os dias passam por nós mães com filhas adolescentes em ruas movimentadas. Mas aquela, com as suas filhas, chamou-me a atenção, me fez parar, virar a cabeça para vê-las se afastando de braços dados, num tititi característico.


Disse tititi e era isso mesmo. Elas iam periquitando num tititi de mãe e filha, de fêmea e suas crias. As meninas do lado, a mãe no meio. No meio (também) emocional. E a filha da esquerda dizia: Porque aquele vestido da vitrina Mãe, acho que o meu presente , dizia a da direita. E a fala de uma e outra foi se picotando e se afastando, deixando rastros assim: Com que sapato devo ir? ela já ganhou a blusa, eu não E a mãe respondendo: Você não acha que está pedindo demais?


As frases eram banais. E agora ao lembrá-las penso que poderia fazer uma crônica só dessa conversinha de mãe e filha, a exemplo do que, certa vez, fez Fernando Sabino com frases de mãe ralhando com filho. Mas há algo diferente que me atrai naquelas mãe e filhas. Nelas surpreendi, de relance, uma coisa chamada cumplicidade. Uma cumplicidade da qual, talvez, nem se dessem conta.


Quem as visse, de um ponto de vista banal, diria: lá vai uma jovem e bela mãe com duas filhas adolescentes, que estão aprendendo a ser belas. Mas não era só isto. Era cumplicidade mesmo, num sentido que eu mesmo estou tentando entender. Por isto, parei dois minutos para decifrar o que o texto vivo passava ante meus olhos.


E ali mesmo me veio essa frase-sensação: as mulheres são mais cúmplices dos filhos e filhas que nós, os compactos e solitários machos, cuja cumplicidade acanhada se desloca e vai se exibir nas mesas dos bares com os amigos ou nos almoços e reuniões de diretoria. Aí, a confraria dos homens exercita enviesadamente o seu afeto. O afeto e a agressividade. Porque a cumplicidade não se realiza só em carinhos. Também nas agressões sibilinas ou explícitas.


É isso: a mulher e as duas filhas personificaram algo que eu percebia, mas não tinha ainda configurado. Deixaram assim de ser três pessoas quaisquer, numa tarde qualquer, de uma cidade qualquer. Posso até dizer onde isto aconteceu. Foi na Visconde de Pirajá, às 4h23, em frente ao número 444. Mas poderia também ser ali na Savassi. Ou em qualquer rua do mundo. O que importa é que, de repente, desenhou-se claramente dentro de mim esta sensação: as mulheres são mais cúmplices dos filhos e filhas que nós, os compactos e solitários machos. Repito esta frase e acrescento numa autocrítica assustada: nós, os exilados do afeto. Por nós mesmos, pelas relações familiares e sociais, que avalizamos.


As fêmeas têm com as crias uma intimidade invejável. Os machos são limitados (claro, há raríssimas exceções). Aceitam a limitação física. A intimidade física, verbal, afetiva das mães com os filhos e filhas começa no ventre. Aí, nós, os homens já estamos (literalmente) meio por fora. E depois vem a amamentação, nova cumplicidade fluindo exteriorizadamente. E depois ainda os passeios diários com a criança pelas praças ou praia, levar e trazer ao colégio e à piscina, pegar e levar à aula disto e daquilo, enquanto o pai está lá dispersando sua afetividade em papéis, que jogará no lixo diariamente ou arquivará para poder jogá-los pela janela no fim do ano.


Enquanto isto a cumplicidade entre a mãe e as crias segue prosperando. Com a filha, as primeiras revelações e escolhas: do sutiã, do batom, da roupa de aniversário. A filha aprendendo a dizer aqueles nomes da vaidade e da descoberta do corpo: vestidos drapeados tecem conversa de uma e outra; conversa plissada com evasé costurando preferências; os cremes preferidos para a pele, os emolientes, os chás para avermelhar ou clarear os cabelos tingindo as horas; as técnicas de depilação, as visitas ao cabeleireiro, a peregrinação peripatética às butiques, a ida ao primeiro ginecologista, enfim, tudo isto vai desenrolando intermináveis e sensuais rituais femininos, que se reduplicam quando a filha vira mãe e se socorre da mãe avó para novos aprendizados.


E o homem meio de longe, meio de banda que nem quitanda. Até a primeira cueca para o filho é a mãe que compra. O homem parece assumir o filho só na hora de passar-lhe a oficina e o escritório. Alguns conseguem cumplicidade na hora de jogar tênis, mergulhar, conversar sobre a moto, lavar o carro. Mas é pouco.


Enquanto isto, por divisão de trabalho, os homens estão alienados desse contato físico-emocional com os filhos. Claro, existe o fim de semana. Aí, ao pai é dado lembrar-se de que é pai. Mas é pouco. Na França, domingo de manhã, o pai sai com os filhos para comprar pão e jornal. Nos Estados Unidos, nos feriados longos, os políticos se fazem fotografar com a família esquiando e cavalgando. Mas é pouco.


Enquanto isto, mães e filhas desfilam a natural cumplicidade numa rua qualquer, numa cidade qualquer, aos olhos de qualquer um.


Affonso Romano de Sant'Anna

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