terça-feira, 30 de outubro de 2007

Rubem Braga



Um abraço de mulher





Subi ao avião com indiferença, e como o dia não estava bonito, lancei apenas um olhar distraído a essa cidade do Rio de Janeiro e mergulhei na leitura de um jornal. Depois fiquei a olhar pela janela e não via mais que nuvens, e feias. Na verdade, não estava no céu; pensava coisas da terra, minhas pobres, pequenas coisas. Uma aborrecida sonolência foi me dominando, até que uma senhora nervosa ao meu lado disse que "nós não podemos descer!".

O avião já havia chegado a São Paulo, mas estava fazendo sua ronda dentro de um nevoeiro fechado, à espera de ordem para pousar. Procurei acalmar a senhora. Ela estava tão aflita que embora fizesse frio se abanava com uma revista. Tentei convencê-la de que não devia se abanar, mas acabei achando que era melhor que o fizesse. Ela precisava fazer alguma coisa, e a única providência que aparentemente podia tomar naquele momento de medo era se abanar.

Ofereci-lhe meu jornal dobrado, no lugar da revista, e ficou muito grata, como se acreditasse que, produzindo mais vento, adquirisse maior eficiência na sua luta contra a morte. Gastei cerca de meia hora com a aflição daquela senhora.

Notando que uma sua amiga estava em outra poltrona, ofereci-me para trocar de lugar, e ela aceitou. Mas esperei inutilmente que recolhesse as pernas para que eu pudesse sair de meu lugar junto à janela; acabou confessando que assim mesmo estava bem, e preferia ter um homem — "o senhor" — ao lado. Isto lisonjeou meu orgulho de cavalheiro: senti-me útil e responsável. Era por estar ali eu, um homem, que aquele avião não ousava cair. Havia certamente piloto e co-piloto e vários homens no avião.

Mas eu era o homem ao lado, o homem visível, próximo, que ela podia tocar. E era nisso que ela confiava: nesse ser de casimira grossa, de gravata, de bigode, a cujo braço acabou se agarrando. Não era o meu braço que apertava, mas um braço de homem, ser de misteriosos atributos de força e proteção. Chamei a aeromoça, que tentou acalmar a senhora com biscoitos, chicles, cafezinho, palavras de conforto, mão no ombro, algodão nos ouvidos, e uma voz suave e firme que às vezes continha uma leve repreensão e às vezes se entremeava de um sorriso que sem dúvida faz parte do regulamento da aeronáutica civil, o chamado sorriso para ocasiões de teto baixo.

Mas de que vale uma aeromoça? Ela não é muito convincente; é uma funcionária. A senhora evidentemente a considerava uma espécie de cúmplice do avião e da empresa e no fundo (pelo ressentimento com que reagia às suas palavras) responsável por aquele nevoeiro perigoso. A moça em uniforme estava sem dúvida lhe escondendo a verdade e dizendo palavras hipócritas para que ela se deixasse matar sem reagir. A única pessoa de confiança era evidentemente eu: e aquela senhora, que no aeroporto tinha certo ar desdenhoso e solene, disse suas malcriações para a aeromoça e se agarrou definitivamente a mim.

Animei-me então a pôr a minha mão direita sobre a sua mão, que me apertava o braço. Esse gesto de carinho protetor teve um efeito completo: ela deu um profundo suspiro de alívio, cerrou os olhos, pendeu a cabeça ligeiramente para o meu lado e ficou imóvel, quieta. Era claro que a minha mão a protegia contra tudo e contra todos, estava como adormecida. O avião continuava a rodar monotonamente dentro de uma nuvem escura; quando ele dava um salto mais brusco, eu fornecia à pobre senhora uma garantia suplementar apertando ligeiramente a minha mão sobre a sua: isto sem dúvida lhe fazia bem. Voltei a olhar tristemente pela vidraça; via a asa direita, um pouco levantada, no meio do nevoeiro.

Como a senhora não me desse mais trabalho, e o tempo fosse passando, recomecei a pensar em mim mesmo, triste e fraco assunto. E de repente me veio a idéia de que na verdade não podíamos ficar eternamente com aquele motor roncando no meio do nevoeiro - e de que eu podia morrer. Estávamos há muito tempo sobre São Paulo. Talvez chovesse lá embaixo; de qualquer modo a grande cidade, invisível e tão próxima, vivia sua vida indiferente àquele ridículo grupo de homens e mulheres presos dentro de um avião, ali no alto. Pensei em São Paulo e no rapaz de vinte anos que chegou com trinta mil-réis no bolso uma noite e saiu andando pelo antigo viaduto do Chá, sem conhecer uma só pessoa na cidade estranha. Nem aquele velho viaduto existe mais, e o aventuroso rapaz de vinte anos, calado e lírico, é um triste senhor que olha o nevoeiro e pensa na morte.

Outras lembranças me vieram, e me ocorreu que na hora da morte, segundo dizem, a gente se lembra de uma porção de coisas antigas, doces ou tristes. Mas a visão monótona daquela asa no meio da nuvem me dava um torpor, e não pensei mais nada. Era como se o mundo atrás daquele nevoeiro não existisse mais, e por isto pouco me importava morrer. Talvez fosse até bom sentir um choque brutal e tudo se acabar. A morte devia ser aquilo mesmo, um nevoeiro imenso, sem cor, sem forma, para sempre. Senti prazer em pensar que agora não haveria mais nada, que não seria mais preciso sentir, nem reagir, nem providenciar, nem me torturar; que todas as coisas e criaturas que tinham poder sobre mim e mandavam na minha alegria ou na minha aflição haviam-se apagado e dissolvido naquele mundo de nevoeiro. A senhora sobressaltou-se de repente e muito aflita começou a me fazer perguntas. O avião estava descendo mais e mais e entretanto não se conseguia enxergar coisa alguma. O motor parecia estar com um som diferente: podia ser aquele o último e desesperado tredo ronco do minuto antes de morrer arrebentado e retorcido.

A senhora estendeu o braço direito, segurando 0 encosto da poltrona da frente, e então me dei conta de que aquela mulher de cara um pouco magra e dura tinha um belo braço, harmonioso e musculado. Fiquei a olhá-lo devagar, desde o ombro forte e suave até as mãos de dedos longos. E me veio uma saudade extraordinária da terra, da beleza humana, da empolgante e longa tonteira do amor. Eu não queria mais morrer, e a idéia da morte me pareceu tão errada, tão feia, tão absurda, que me sobressaltei. A morte era uma coisa cinzenta, escura, sem a graça, sem a delicadeza e o calor, a força macia de um braço ou de uma coxa, a suave irradiação da pele de um corpo de mulher moça. Mãos, cabelos, corpo, músculos, seios, extraordinário milagre de coisas suaves e sensíveis, tépidas, feitas para serem infinitamente amadas. Toda a fascinação da vida me golpeou, uma tão profunda delícia e gosto de viver uma tão ardente e comovida saudade, que retesei os músculos do corpo, estiquei as pernas, senti um leve ardor nos olhos. Não devia morrer! Aquele meu torpor de segundos atrás pareceu-me de súbito uma coisa doentia, viciosa, e ergui a cabeça, olhei em volta, para os outros passageiros, como se me dispusesse afinal a tomar alguma providência.

Meu gesto pareceu inquietar a senhora. Mas olhando novamente para a vidraça adivinhei casas, um quadrado verde, um pedaço de terra avermelhada, através de um véu de neblina mais rala. Foi uma visão rápida, logo perdida no nevoeiro denso, mas me deu uma certeza profunda de que estávamos salvos porque a terra existia, não era um sonho distante, o mundo não era apenas nevoeiro e havia realmente tudo o que há, casas, árvores, pessoas, chão, o bom chão sólido, imóvel, onde se pode deitar, onde se pode dormir seguro e em todo o sossego, onde um homem pode premer o corpo de uma mulher para amá-la com força, com toda sua fúria de prazer e todos os seus sentidos, com apoio no mundo.

No aeroporto, quando esperava a bagagem, vi de perto a minha vizinha de poltrona. Estava com um senhor de óculos, que, com um talão de despacho na mão, pedia que lhe entregassem a maleta. Ela disse alguma coisa a esse homem, e ele se aproximou de mim com um olhar inquiridor que tentava ser cordial. Estivera muito tempo esperando; a princípio disseram que o avião ia descer logo, era questão de ficar livre a pista; depois alguém anunciara que todos os aviões tinham recebido ordem de pousar em Campinas ou em outro campo; e imaginava quanto incômodo me dera sua senhora, sempre muito nervosa. "Ora, não senhor." Ele se despediu sem me estender a mão, como se, com aqueles agradecimentos, que fora constrangido pelas circunstâncias a fazer, acabasse de cumprir uma formalidade desagradável com relação a um estranho - que devia permanecer um estranho. Um estranho — e de certo ponto de vista um intruso, foi assim que me senti perante aquele homem de cara desagradável. Tive a impressão de que de certo modo o traíra, e de que ele o sentia.

Quando se retiravam, a senhora me deu um pequeno sorriso. Tenho uma tendência romântica a imaginar coisas, e imaginei que ela teve o cuidado de me sorrir quando o homem não podia notá-lo, um sorriso sem o visto marital, vagamente cúmplice. Certamente nunca mais a verei, nem o espero. Mas o seu belo braço foi um instante para mim a própria imagem da vida, e não o esquecerei depressa.



O texto acima foi publicado no livro “Os melhores contos – Rubem Braga”, seleção de Davi Arrigucci Jr., Global Editora – São Paulo, e selecionado por Ítalo Moriconi para compor o livro “Os cem melhores contos brasileiros do século”, Editora Objetiva – Rio de Janeiro, 2000, pág. 169.

terça-feira, 23 de outubro de 2007

Triálogos


No Brasil, poesia e informação

Depois de ter conquistado a França, a crônica veio para o Brasil. Era chamada de folhetim (assim como capítulos inteiros de romances) e ocupava o espaço livre de rodapé do jornal com ares de leitura de entretenimento. Era uma pequena pausa para descanso do leitor em meio a tantas notícias e reportagens que já preenchiam as páginas dos jornais. José de Alencar, Machado de Assis, Raul Pompéia, Aluísio Azevedo, entre outros grandes nomes da literatura brasileira, foram folhetinistas do século passado.A imprensa brasileira no século XIX era lida somente pelos homens de governo e pela elite intelectual. O folhetim representou no Brasil a abertura dos jornais para novas camadas sociais. Crônicas e romances, com roupagem de folhetim, representaram a expansão da imprensa naquela época. Mas tratava-se de um gênero popular, e por isso era menosprezado por diversos escritores. O folhetim que deu origem à crônica foi o de variedades, que apresentava registros e comentários sobre a vida cotidiana na sociedade. Os folhetinistas criavam um vínculo entre escritor, leitor e obra. O primeiro deveria ter estilo e ser criativo, o segundo deveria seguir as histórias do primeiro e a terceira, a obra, interagia tanto com o escritor quanto com o leitor. Daí a relação direta que cronistas da atualidade, como Carlos Heitor Cony, ainda cultivam com o público.A seção A Semana, inaugurada no Jornal do Comércio em 1852, é considerada um marco na definição da crônica brasileira. Joaquim Manuel de Macedo escrevia crônicas sobre a cidade e sociedade do Rio de Janeiro no século XX. Poucos anos depois, o escritor Paulo Barreto modernizou a crônica ao sair às ruas para exercer o jornalismo de forma inédita. Nas suas crônicas ficaram para trás o comentário imaginativo, a subjetivação e a recriação do real. Nascia o gênero “crônica brasileira”. No Brasil, o termo “crônica” se situa entre o relato poético da realidade e a informação da atualidade. Não se encontra um gênero equivalente à crônica brasileira na produção jornalística ou literária de outros países. “Crônica”, no jornalismo mundial, é fiel ao seu uso na Idade Média, estando mais ligado à idéia de narração histórica.Como outros gêneros literários, a crônica, gênero híbrido de jornalismo e literatura, também sofreu influências do Modernismo no Brasil. Nas duas primeiras décadas do século XX, período pré-modernista, a literatura brasileira se dividiu em duas correntes diferentes: uma, conservadora, estreitamente ligada ao parnasianismo; outra, mais livre, já contendo em si o embrião da estética literária inovadora que se consolidaria na Semana de 22. Humberto Campos e Coelho Neto, cronistas de estilo rebuscado, dividiram espaço na imprensa com as crônicas de linguagem e estilo simples dos seus contemporâneos João do Rio e Lima Barreto. A crônica, na mão dos que apoiavam a revolução modernista, transformou-se em arma de luta. Irreverente e despojada dos elementos retóricos da linguagem acadêmica, a crônica dos modernistas era recheada de críticas e impressões pessoais.A Semana de Arte Moderna de 1922 levou a literatura se aproximar da realidade nacional e fez a imprensa brasileira adotar a linguagem simples e clara. O cronista escrevia para um público leitor crescente e cada vez mais exigente. Na década de 30, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Rubem Braga, com seus estilos diversos, dão uma caracterização especial à crônica.
De acordo com José Marques de Melo, no seu livro A Opinião no Jornalismo Brasileiro, a crônica moderna mantém o tom de “conversa fiada”, mas passa a usar a notícia e o imediatismo jornalístico. Diversos cronistas, mediadores literários entre os fatos e os leitores, se inspiravam nos jornais e faziam das matérias jornalísticas temas para suas crônicas. Assim, a crônica moderna, produto do jornal e produzida para o jornal, torna-se, segundo o autor, um gênero eminentemente jornalístico. E como acontece com uma matéria jornalística ou uma notícia, ela também pode “envelhecer”. Como também, na medida em que o acontecimento do qual trata se distancia no tempo, o seu valor factual se perde enquanto cresce o seu valor histórico. Mas isso não afeta a sua natureza literária. Originária do folhetim, a crônica tem em sua essência a arte da palavra e o objetivo de observar os acontecimentos cotidianos com certa dose de lirismo.
Saiba mais:
Encyclopaedia Britannica do Brasil;A Crônica, de Jorge de Sá, Série Princípios, ed. Ática;Crônica - História, teoria e prática, de Flora Bender e Ilka Laurito, ed. Scipione;A crônica na imprensa brasileira atual, Trabalho de Conclusão de Curso de Comunicação Social de Mirian Cristina da Cruz na Universidade Estadual de Londrina;Crônica, uma crônica de Ivan Lessa (http://www.bbcbrasil.com.br);Revista Cult n° 45;Revista Imprensa n° 100, 1996;A Crônica - O Gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil, Organização Fundação Casa de Rui Barbosa, ed. da UNICAMP;Proleitura nº 20, junho de 98- Revista do curso de Letras da Unesp;A Opinião no Jornalismo Brasileiro, de José Marques de Melo, ed. Vozes

Priscila Fernandes

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Cartas para o Érico Verissimo

Lá na redação do Estadão tem uma caixinha de madeira onde fica a correspondência para os cronistas. Gosto de meter a mão lá dentro e ver como anda o ibope de cada um, antes de pegar as minhas. Na segunda-feira, ajudado pelo atenciosíssimo Mauro Dias (o cronista de amanhã), achamos uma carta para o Érico Veríssimo. Pra quem não sabe, o Érico morreu em 1975 e deixou o quase diário Luis Fernando. Tudo isso é veríssimo.

Me apropriei da carta ouvindo uma música ao longe que me pedia para olhar - por ele - os lírios do campo. A carta, muito bem escrita por uma senhora do interior de Minas Gerais, dizia o seguinte ao ilustre imortal morto:

"Prezado Senhor:
Vamos fazer uma cruzada em favor da agricultura do País. A agricultura já chegou ao fundo do poço e os governantes ainda não perceberam.

Use a sua força, o seu espaço, no sentido de despertar os dirigentes para este gravíssimo problema.

Os pequenos e médios municípios agrícolas de todo o País estão `quebrados'.

O povo está sofrido e triste, sem perspectivas nenhuma.

O leite não vale nada.

O café não vale nada.

O milho não vale nada, etc. Como o pequeno e médio agricultor vão sobreviver?

Ajude-nos a ajudar o Brasil."

Aqui, meu caro Érico, terminava a carta da mineira para o gaúcho. Mas, se me permite a intimidade (afinal já adaptei uns textos seus para a televisão) e aproveitando que você deve estar aí de alerta, vou acrescentar outros pedidos a você.

A missivista (que palavra, hein!) fala na agricultura. Eu poderia falar na saúde. Só uma coisa, para exemplificar: sabe quanto tá a diária do quarto do Hospital Albert Einstein? 1.200 reais. Mais caro que a do hotel mais luxuoso de Paris, o George V. Como você vê, em termos de saúde, já estamos no Primeiro Mundo. Serra, serra, serrador, serra o papo do vovô!

Mas o que eu queria te contar, mestre Érico, é sobre outro ministro do Fernando Henrique. O dos Esportes. O nome dele é Carlos Melles. Você não vai acreditar o que ele fez. Percebeu que o futebol brasileiro estava desorganizado, arrombado, desorientado. Basta te dizer que o campeão brasileiro do ano passado, o São Caetano (sim, o inquérito policial chegou à conclusão que o jogo de São Januário foi paralisado por culpa do Vasco.

Portanto a partida foi dada como perdida e o São Caetano foi campeão. Ou não?), eu dizia, o São Caetano, não vai disputar o campeonato da primeira divisão deste ano. Já o Fluminense, também da segunda, vai. Sei que é difícil entender isso. Nem tente.

Mas voltemos ao ministro, meu caro. Todo mundo sabe que quem afundou o futebol brasileiro nos últimos 40 anos, foram três pessoas: o Havellange, o Ricardo Teixeira e o Fábio Koff. E o que fez o ministro para moralizar o futebol brasileiro de vez? Montou uma equipe para resolver a situação. Sabe quem são os membros dessa equipe, Érico? O Havellange, o Teixeira e o Koff.

Vou repetir para não parecer confuso: o Havellange, o Teixeira e o Koff foram chamados para dar dignidade, respeito e colocar ordem na casa do nosso futebol que eles enrolaram durante quatro décadas. E ainda colocou o senhor Edson Arantes do Nascimento (ex-Pelé) para dar uma certa cor à comissão.

Pode perguntar para o Luis Fernando que ele confirma.

Então era isso que a mineira Regina e o mineiro aqui queriam te dizer. Em estando com Deus por aí - de repente você cruza com ele num churrasco - conte as novidades. E pergunta se ele ainda é brasileiro. Ele vai disfarçar e sair pela tangente, você vai ver.

É que está mesmo uma vergonha a gente sair por aí (e por aqui) dizendo que é brasileiro. Até Deus duvida.

terça-feira, 9 de outubro de 2007

Canção na plenitude

Não tenho mais os olhos de menina nem corpo adolescente, e a pele translúcida há muito se manchou.Há rugas onde havia sedas, sou uma estruturaagrandada pelos anos e o peso dos fardos bons ou ruins.(Carreguei muitos com gosto e alguns com rebeldia.)O que te posso dar é mais que tudo o que perdi: dou-te os meus ganhos.A maturidade que consegue rir quando em outros tempos choraria, busca te agradar quando antigamente quereria apenas ser amada.Posso dar-te muito mais do que beleza e juventude agora: esses dourados anos me ensinaram a amar melhor, com mais paciênciae não menos ardor, a entender-te se precisas, a aguardar-te quando vais, a dar-te regaço de amante e colo de amiga, e sobretudo força — que vem do aprendizado. Isso posso te dar: um mar antigo e confiável cujas marés — mesmo se fogem — retornam, cujas correntes ocultas não levam destroços mas o sonho interminável das sereias.

Lya Luft
O texto acima foi extraído do livro “Secreta Mirada”

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Armário


Eu queria, senhora, ser o seu armário e guardar os seus tesouros como um corsário. Que coisa louca: ser seu guarda-roupa! Alguma coisa sólida circunspecta e pesada nessa sua vida tão estabanada. Um amigo de lei (de que madeira eu não sei). Um sentinela do seu leito com todo o respeito.Ah, ter gavetinhas para suas argolinhas.Ter um vão para seu camisolão e sentir o seu cheiro, senhora, o dia inteiro.

Meus nichos como bichos engoliriam suas meias-calças, seus soutiens sem alças, e tirariam nacos dos seus casacos, e no meu chão,como trufas, as suas pantufas...Seus echarpes, seus jeans, seus longos e afins. Seus trastes e contrastes.

Aquele vestido com asa e aquele de andar em casa.Um turbante antigo. Um pulôver amigo. Bonecas de pano. Um brinco cigano.Um chapéu de aba larga.Um isqueiro sem carga. Suéteres de lã e um estranho astracã.

Ah, vê-la se vendo no meu espelho, correndo.Puxando, sem dores, os meus puxadores.Mexendo com o meu interior à procura de um pregador. Desarrumando meu ser por um prêt-à-porter... Ser o seu segredo,senhora, e o seu medo.E sufocar com agravantes todos os seus amantes.


Luís Fernando Veríssimo

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

O que é uma crônica?

O próprio nome já nos dá uma dica: etimologicamente, a palavra vem do grego chrónos, que significa "tempo". Daí o seu caráter: relato acontecimentos do tempo de hoje, de fatos do cotidiano. Desde a consolidação da imprensa, a crônica se caracterizou como uma seção de jornal ou revista em que se escreve sobre acontecimentos do dia-a-dia, sempre numa linguagem leve, de caráter jornalístico. O que levou o crítico literário Antônio Cândido a afirmar que a crônica "é filha do jornal e da era da máquina, onde tudo acaba tão depressa. Ela não foi feita originalmente para o livro, mas para essa publicação efêmera que se compra num dia e no dia seguinte é usada para embrulhar um par de sapatos ou forrar o chão da cozinha".
Na definição do jornalista Nilson Lage, "crônica é um texto desenvolvido de forma livre e pessoal, a partir de acontecimentos de atualidade ou situações de permanente interesse humano".