sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Casa para alugar

Ontem fui ver uma casa vazia, que espera seus inquilinos. Onde fica, qual o seu aluguel, isto não são coisas contidas no ofício da cronista. Estava toda escancarada para um sol que lampejava enviesado, desconcertando pelo seu absurdo de má pintura. Já era quase noite num canto do céu. E havia um rasgão azul cintilante, feito para clarear a casinha, que se oferecia, toda branca e nova, para quem quisesse e pudesse. Quando entrei — um operário cantava, outro metia a cabeça pintalgada de branco sob a torneira do jardim. Havia água, espaço, terra em torno, muros cercando o pequeno domínio. Muitas pessoas têm ido ver a casinha vazia. As mulheres ficam perturbadas por um amontoado de sonhos que se desencadeiam, mal elas põem os pés no pequeno terraço. "Aqui fecharei com persianas; será quase um jardim, para que o neném não saia. E mandarei pintar da mesma cor da parede essa tremenda barra de cor verde, na sala de jantar, fingindo mármore".Depois de uma pausa, talvez ainda acrescentem:

"Este quarto será transformado em escritório, porque tem muita parede, e bem se pode nele instalar a grande estante de dois metros e oitenta. E neste canto do quarto cabe a cama de casal".

A casinha será medida, considerada por uma respeitável quantidade de pessoas. Alguém se alegrará com o quintal, nele instalando em imaginação a casa do seu cachorro ou o galinheiro. Pessoas poéticas verão crescidas, aninhando as paredes, amorosas trepadeiras, assim como as begônias no terraço, mais as avencas e os gerânios.

Gostei de ver a casinha desalugada. Ainda não se sabe de quem será! É um palco pequeno e adornado, esperando por seus atores. Até a música que o operário cantarolava me parecia qualquer canto de apresentação, antes de uma peça, cuja primeira parte constará, talvez, da invasão de uma família com sua velha e seu papagaio, seu piano que não encontra parede, sua moça que reclama tudo, e a mãe que briga com os fornecedores. Um gato morrerá, quase, de susto, traumatizado com a alvura das paredes desconhecidas. A jovem achará a barra de imitação de mármore o tipo da coisa suburbana. 0 pai, vindo de uma era de casas mais enfestadas, defenderá aquela aparência de suntuosidade com o calor que só as discussões domésticas podem ter. Haverá um filho estudando, brigas sobre o horário do almoço, objetos perdidos na mudança, e o martirológio da dona da casa entoado por ela própria, sem que ninguém se importe com seu drama. Pode ser que a moça se case, que haja na salinha de barra verde uma mesa com comes e bebes. Acontecerá, quem sabe, em certa madrugada, riscar o escuro o choro de uma criancinha recém-nascida pungentemente cantando dos difíceis começos, doloridos começos de qualquer vida. Haverá alegria, haverá dívidas de dar nó na garganta, e festa de formatura, e discussões políticas. A casinha nova, então, terá paredes riscadas, gordura sobre o forro da cozinha, portas sem chave, torneiras escorrendo. Na ex-cobiçada pequena casa pessoas baterão portas com raiva:

— "Esta casa é um inferno!"

Outras chegarão nela, já toda sabida e experimentada, como amante sem segredo, e irão diretamente a um canto mais fresco do terraço, ou para a profundeza de um quarto.

— "Eu estava morrendo de calor (ou de cansaço). Não agüentava mais a rua."

Terá a casinha tão perfeitamente pura, hoje, pregos caídos da parede, ladrilhos que faltam, como dentadura incompleta. Se passar algum tempo mais — talvez que o velho morra, e se enterre com a roupa feita ainda para o casamento da filha em seu caixão, que no alto será levantado, quando atravessar o portãozinho.

Ah, casinha que espera seus donos, branca e bonita como uma noiva menina! Estás preparada para teu destino. E, antes dos moradores — compactos fantasmas de vida e de morte já te povoam, eu sei.


Dinah Silveira de Queiroz


Dinah Silveira de Queiroz nasceu em 09/11/1910 na capital paulista. Publicou seu primeiro conto em 1937, e dois anos depois lançou seu primeiro livro, "Floradas na Serra", obtendo grande sucesso e sendo premiada pela Academia Paulista de Letras. Em 1954 recebeu o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto de sua obra. Desempenhou as funções de adido cultural do Brasil junto à nossa Embaixada em Madrid. É a autora de "A Sereia Verde", "Margarida La Roque", "Aventuras do Homem Vegetal", "A Muralha", "O Oitavo Dia", "As Noites do Morro do Encanto", "Eles Herdarão a Terra" e "Os Invasores", dentre outros. Como cronista, assinou no jornal A Manhã, do Rio de Janeiro, a seção "Café da Manhã", e no Jornal do Commércio, da mesma cidade, a seção "Jornalzinho Pobre". Colaborou em programas na Rádio Ministério da Educação e na Rádio Nacional.

sábado, 2 de janeiro de 2010

Sabiás e rouxinóis

Nos meus tempos de criança tive um tio que era grande contador de histórias. Este dom, se o tornava querido da criançada, era também uma fonte de maçadas. Bastava um dia de chuva, ou um de nós preso na cama por um resfriado, já Tio Fausto era requisitado para nos distrair. Embora sua paciência e imaginação fossem quase inesgotáveis, certas vezes refugavam a tarefa, e vinha então o recurso que nos obrigava a desistir do intento: "Em Portugal canta o rouxinol e aqui no Brasil canta o sabiá, mas a distância entre cá e lá é tão grande que o que se canta cá não se ouve lá, e o que se canta lá não se ouve cá. Por isso é que ninguém sabe a história da casinha amarela que eu vou contar. Quer que eu conte?... Em Portugal canta o rouxinol..." E a cantilena recomeçava até que o mais persistente entregasse os pontos,

Lembrei-me desta velha história quando, viajando por quase toda a Europa sem qualquer dificuldade, em Portugal apenas consegui fazer-me entender e a custo compreendia a gente da terra. Não é só que o português engula bom número de sílabas, nem que a pronúncia seja carregada e outra a sintaxe, dando à frase um tom que ao brasileiro parece pomposo. É que as palavras usadas na linguagem corrente são outras ou têm sentido diferente do nosso. Assim foi que, perguntando ao porteiro do hotel em Lisboa se havia trem para a praia da Nazaré, o homem respondeu-me em tom de espanto: — "Trem não, minha Senhora, que é demasiado distante..."

Que eu saiba, o trem foi inventado justamente para as grandes distâncias, mas não discuti, — "E ônibus?"

— "Ai, minha Sra., de ônibus V. Excia. levaria o dia todo para lá chegar. É preferível a camionete". — "Camionete... (pensei num caminhão pequeno e fechado) mas não será muito incômodo?" E o diálogo continuou até que se esclarecesse o quiproquó: Em Portugal trem é carro puxado por cavalos, ônibus é o nosso trem vagaroso que chamamos leiteiro, camionete é nosso ônibus, sendo que toda esta complicação teria sido evitada se, de início, eu tivesse perguntado pelo combóio.

Quem passou por Lisboa numa escala rápida, sabe da inutilidade de indagar onde se toma o bonde, expressão totalmente desconhecida e sem relação com "o elétrico", e se, na pressa da partida, quiser saber como ir até o navio, terá que perguntar pelo barco, à moda da terra. Na conversa, portugueses e brasileiros regalam-se de ouvir um do outro expressões e modismos que lhes parecem do melhor cômico. O português não sabe o que é "dar uma prosa", e se quer tirar um cochilo fala em "passar pelas brasas". Já no telefone leva-se um susto quando em vez de alô ouve-se um berro: — "Está lá?..." e a telefonista perplexa não entende que meia dúzia é seis.

Nas compras a confusão é ainda maior; quem quiser ir a uma loja de armarinho comprar carretel de linha, cadarço, colchetes, grampos, terá que procurar o retroveiro onde peça um carrinho de fio, nastro, molas e ganchos, sendo que as vitrinas são montras, as meias de homem peúgas, as mulheres é que usam cuecas e o homens calções. Numa casa de doces pedi balas, e responderam-me que só em loja de armas; quando apontei o que queria foi um alívio: — "Ah, V. Excia. quer rebuçados e caramelos, ou, sob a influência americana, "drops", mas nada de balas.

Ali chocolate é uma coisa e cacau outra, conforme aprendeu uma brasileira que pedindo "chocolate na xícara" teve a pronta resposta: — "Não há, minha Sra. Só temos cacau em chávena." Realmente existe a diferença , o chocolate sendo o cacau preparado com leite e a chávena um termo caído em desuso, só empregado pelos que apreciam os arcaísmos.

Creio que o português tem um vocabulário mais amplo que o nosso e usa os termos com mais exatidão, sendo também incapaz de interpretar o pensamento incorretamente expresso pela sintaxe brasileira. Assim foi que um amigo meu, pedindo uma lata de bolachas, após longa espera recebeu uma lata cuidadosamente aberta e esvaziada. Ao seu protesto, o próprio gerente da loja veio dar razão ao empregado: — "V. Excia. pediu uma lata "de" bolachas, e aí está. Se pedisse uma lata "com" bolachas, a coisa era outra".

Foi para evitar mal-entendidos que, ainda na praia da Nazaré, o copeiro da pensão encerrou assim nosso diálogo: — "Seu Leandro, esta noite os pernilongos não me deixaram dormir". — "Perdão, minha Sra.?" — "Os mosquitos, Seu Leandro". — "Ai, V. Excia. quer dizer os melgas?..." — "Não sei se são melgas, mas diga-me, aqui há maleita?" — "Perdão, minha Sra.?" — "Digo malária.." O homem olhou-me de banda e teve uma inspiração: — "V. Excia. não prefere falar em francês ou inglês?..."

Tinha razão o bom do homem. Assim que abandonamos o vernáculo nos entendemos perfeitamente.

Vejo agora nos jornais que vamos ter um Congresso da Língua Portuguesa, ao qual comparecerão seis filólogos lusitanos, e tenho medo que este grupo de escol resolva mexer outra vez na nossa ortografia, quando não tente unificar a língua d'aquém e d'além-mar.

Francamente, não vejo porque reviram e reformam a pobre ortografia, quando a língua falada em cada pais é tão diversa. As reformas só têm tido o magnífico resultado de tornar analfabetos nossos poucos alfabetizados. Quantos de nós, que escrevemos profissionalmente, sabemos onde colocar os acentos ou se, afinal de contas, Pedro Calmon conseguiu defender o H de Bahia? O escritor ou jornalista geralmente escreve como aprendeu em criança, fiando-se no trabalho do especialista que é o revisor ortográfico indispensável a cada editora e redação. O povo escreve como lhe dá na cabeça, e a meninada que já passou por mais de uma reforma manda a ortografia às favas.

Os ingleses pouco se incomodam que os americanos simplifiquem "night", em "nite" e "through" em "thru", e não me consta que a França jamais se tenha preocupado com o francês falado e escrito no Canadá ou nas colônias, nem que a "Madre Pátria" espanhola estenda seu cuidado maternal até zelar pelo castiço da língua de Cervantes, cujos termos, nesta América Latina, mudam perigosamente de sentido de um país a outro.

Que venham os filólogos lusitanos, mas não se assanhem os mestres nacionais. Aproveitem a ocasião para ouvir as últimas maledicências correntes no Chiado e as novas anedotas sobre Salazar. Por sua vez, forneçam aos nossos irmão d'além-mar um estoque de anedotas cariocas que, repetidas em Lisboa, terão "imensa piada", e tenham a camaradagem de ensinar-lhes os sambas deste carnaval, que o samba é o produto brasileiro mais cotado em Portugal. No mais, lembrem-se que "o que se canta cá não se ouve lá, e o que se canta lá não se ouve cá".

Se temos garganta de sabiá, não vamos desafinar fingindo de rouxinóis.


Vera Pacheco Jordão


Vera Pacheco Jordão nasceu em São Paulo e tornou-se carioca por opção. Especializou-se em literatura, foi professora e durante muito tempo trabalhou em uma editora onde selecionava livros estrangeiros para tradução e publicação no Brasil. Seu livro "Maneco, o byroniano", que foi editado pelos "Cadernos de Cultura" do Ministério da Educação, é uma coletânea de ensaios do melhor teor literário, o primeiro dos quais sobre Álvares de Azevedo. Tendo viajado pela Europa, escreveu crônicas deliciosas como a que agora apresentamos, extraída do livro "Antologia do Humorismo e Sátira", Editora Civilização Brasileira — Rio de Janeiro, 1957, pág. 399.


Aí pelas três da tarde


Nesta sala atulhada de mesas, máquinas e papéis, onde invejáveis escreventes dividiram entre si o bom senso do mundo, aplicando-se em idéias claras apesar do ruído e do mormaço, seguros ao se pronunciarem sobre problemas que afligem o homem moderno (espécie da qual você, milenarmente cansado, talvez se sinta um tanto excluído), largue tudo de repente sob os olhares a sua volta, componha uma cara de louco quieto e perigoso, faça os gestos mais calmos quanto os tais escribas mais severos, dê um largo "ciao" ao trabalho do dia, assim como quem se despede da vida, e surpreenda pouco mais tarde, com sua presença em hora tão insólita, os que estiveram em casa ocupados na limpeza dos armários, que você não sabia antes como era conduzida. Convém não responder aos olhares interrogativos, deixando crescer, por instantes, a intensa expectativa que se instala. Mas não exagere na medida e suba sem demora ao quarto, libertando aí os pés das meias e dos sapatos, tirando a roupa do corpo como se retirasse a importância das coisas, pondo-se enfim em vestes mínimas, quem sabe até em pêlo, mas sem ferir o decoro (o seu decoro, está claro), e aceitando ao mesmo tempo, como boa verdade provisória, toda mudança de comportamento. Feito um banhista incerto, assome em seguida no trampolim do patamar e avance dois passos como se fosse beirar um salto, silenciando de vez, embaixo, o surto abafado dos comentários. Nada de grandes lances. Desça, sem pressa, degrau por degrau, sendo tolerante com o espanto (coitados!) dos pobres familiares, que cobrem a boca com a mão enquanto se comprimem ao pé da escada. Passe por eles calado, circule pela casa toda como se andasse numa praia deserta (mas sempre com a mesma cara de louco ainda não precipitado) e se achegue depois, com cuidado e ternura, junto à rede languidamente envergada entre plantas lá no terraço. Largue-se nela como quem se larga na vida, e vá ao fundo nesse mergulho: cerre as abas da rede sobre os olhos e, com um impulso do pé (já não importa em que apoio), goze a fantasia de se sentir embalado pelo mundo.


Raduan Nassar


Texto extraído do livro "Menina a caminho", Companhia das Letras - São Paulo, 1997. pág.71.