sábado, 2 de janeiro de 2010

Sabiás e rouxinóis

Nos meus tempos de criança tive um tio que era grande contador de histórias. Este dom, se o tornava querido da criançada, era também uma fonte de maçadas. Bastava um dia de chuva, ou um de nós preso na cama por um resfriado, já Tio Fausto era requisitado para nos distrair. Embora sua paciência e imaginação fossem quase inesgotáveis, certas vezes refugavam a tarefa, e vinha então o recurso que nos obrigava a desistir do intento: "Em Portugal canta o rouxinol e aqui no Brasil canta o sabiá, mas a distância entre cá e lá é tão grande que o que se canta cá não se ouve lá, e o que se canta lá não se ouve cá. Por isso é que ninguém sabe a história da casinha amarela que eu vou contar. Quer que eu conte?... Em Portugal canta o rouxinol..." E a cantilena recomeçava até que o mais persistente entregasse os pontos,

Lembrei-me desta velha história quando, viajando por quase toda a Europa sem qualquer dificuldade, em Portugal apenas consegui fazer-me entender e a custo compreendia a gente da terra. Não é só que o português engula bom número de sílabas, nem que a pronúncia seja carregada e outra a sintaxe, dando à frase um tom que ao brasileiro parece pomposo. É que as palavras usadas na linguagem corrente são outras ou têm sentido diferente do nosso. Assim foi que, perguntando ao porteiro do hotel em Lisboa se havia trem para a praia da Nazaré, o homem respondeu-me em tom de espanto: — "Trem não, minha Senhora, que é demasiado distante..."

Que eu saiba, o trem foi inventado justamente para as grandes distâncias, mas não discuti, — "E ônibus?"

— "Ai, minha Sra., de ônibus V. Excia. levaria o dia todo para lá chegar. É preferível a camionete". — "Camionete... (pensei num caminhão pequeno e fechado) mas não será muito incômodo?" E o diálogo continuou até que se esclarecesse o quiproquó: Em Portugal trem é carro puxado por cavalos, ônibus é o nosso trem vagaroso que chamamos leiteiro, camionete é nosso ônibus, sendo que toda esta complicação teria sido evitada se, de início, eu tivesse perguntado pelo combóio.

Quem passou por Lisboa numa escala rápida, sabe da inutilidade de indagar onde se toma o bonde, expressão totalmente desconhecida e sem relação com "o elétrico", e se, na pressa da partida, quiser saber como ir até o navio, terá que perguntar pelo barco, à moda da terra. Na conversa, portugueses e brasileiros regalam-se de ouvir um do outro expressões e modismos que lhes parecem do melhor cômico. O português não sabe o que é "dar uma prosa", e se quer tirar um cochilo fala em "passar pelas brasas". Já no telefone leva-se um susto quando em vez de alô ouve-se um berro: — "Está lá?..." e a telefonista perplexa não entende que meia dúzia é seis.

Nas compras a confusão é ainda maior; quem quiser ir a uma loja de armarinho comprar carretel de linha, cadarço, colchetes, grampos, terá que procurar o retroveiro onde peça um carrinho de fio, nastro, molas e ganchos, sendo que as vitrinas são montras, as meias de homem peúgas, as mulheres é que usam cuecas e o homens calções. Numa casa de doces pedi balas, e responderam-me que só em loja de armas; quando apontei o que queria foi um alívio: — "Ah, V. Excia. quer rebuçados e caramelos, ou, sob a influência americana, "drops", mas nada de balas.

Ali chocolate é uma coisa e cacau outra, conforme aprendeu uma brasileira que pedindo "chocolate na xícara" teve a pronta resposta: — "Não há, minha Sra. Só temos cacau em chávena." Realmente existe a diferença , o chocolate sendo o cacau preparado com leite e a chávena um termo caído em desuso, só empregado pelos que apreciam os arcaísmos.

Creio que o português tem um vocabulário mais amplo que o nosso e usa os termos com mais exatidão, sendo também incapaz de interpretar o pensamento incorretamente expresso pela sintaxe brasileira. Assim foi que um amigo meu, pedindo uma lata de bolachas, após longa espera recebeu uma lata cuidadosamente aberta e esvaziada. Ao seu protesto, o próprio gerente da loja veio dar razão ao empregado: — "V. Excia. pediu uma lata "de" bolachas, e aí está. Se pedisse uma lata "com" bolachas, a coisa era outra".

Foi para evitar mal-entendidos que, ainda na praia da Nazaré, o copeiro da pensão encerrou assim nosso diálogo: — "Seu Leandro, esta noite os pernilongos não me deixaram dormir". — "Perdão, minha Sra.?" — "Os mosquitos, Seu Leandro". — "Ai, V. Excia. quer dizer os melgas?..." — "Não sei se são melgas, mas diga-me, aqui há maleita?" — "Perdão, minha Sra.?" — "Digo malária.." O homem olhou-me de banda e teve uma inspiração: — "V. Excia. não prefere falar em francês ou inglês?..."

Tinha razão o bom do homem. Assim que abandonamos o vernáculo nos entendemos perfeitamente.

Vejo agora nos jornais que vamos ter um Congresso da Língua Portuguesa, ao qual comparecerão seis filólogos lusitanos, e tenho medo que este grupo de escol resolva mexer outra vez na nossa ortografia, quando não tente unificar a língua d'aquém e d'além-mar.

Francamente, não vejo porque reviram e reformam a pobre ortografia, quando a língua falada em cada pais é tão diversa. As reformas só têm tido o magnífico resultado de tornar analfabetos nossos poucos alfabetizados. Quantos de nós, que escrevemos profissionalmente, sabemos onde colocar os acentos ou se, afinal de contas, Pedro Calmon conseguiu defender o H de Bahia? O escritor ou jornalista geralmente escreve como aprendeu em criança, fiando-se no trabalho do especialista que é o revisor ortográfico indispensável a cada editora e redação. O povo escreve como lhe dá na cabeça, e a meninada que já passou por mais de uma reforma manda a ortografia às favas.

Os ingleses pouco se incomodam que os americanos simplifiquem "night", em "nite" e "through" em "thru", e não me consta que a França jamais se tenha preocupado com o francês falado e escrito no Canadá ou nas colônias, nem que a "Madre Pátria" espanhola estenda seu cuidado maternal até zelar pelo castiço da língua de Cervantes, cujos termos, nesta América Latina, mudam perigosamente de sentido de um país a outro.

Que venham os filólogos lusitanos, mas não se assanhem os mestres nacionais. Aproveitem a ocasião para ouvir as últimas maledicências correntes no Chiado e as novas anedotas sobre Salazar. Por sua vez, forneçam aos nossos irmão d'além-mar um estoque de anedotas cariocas que, repetidas em Lisboa, terão "imensa piada", e tenham a camaradagem de ensinar-lhes os sambas deste carnaval, que o samba é o produto brasileiro mais cotado em Portugal. No mais, lembrem-se que "o que se canta cá não se ouve lá, e o que se canta lá não se ouve cá".

Se temos garganta de sabiá, não vamos desafinar fingindo de rouxinóis.


Vera Pacheco Jordão


Vera Pacheco Jordão nasceu em São Paulo e tornou-se carioca por opção. Especializou-se em literatura, foi professora e durante muito tempo trabalhou em uma editora onde selecionava livros estrangeiros para tradução e publicação no Brasil. Seu livro "Maneco, o byroniano", que foi editado pelos "Cadernos de Cultura" do Ministério da Educação, é uma coletânea de ensaios do melhor teor literário, o primeiro dos quais sobre Álvares de Azevedo. Tendo viajado pela Europa, escreveu crônicas deliciosas como a que agora apresentamos, extraída do livro "Antologia do Humorismo e Sátira", Editora Civilização Brasileira — Rio de Janeiro, 1957, pág. 399.


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