domingo, 27 de janeiro de 2008

Velho olhando o mar


Meu carro pára numa esquina da praia de Copacabana às 9h30m e vejo um velho vestido de branco numa cadeira de rodas olhando o mar à distância. Por ele passam pernas portentosas, reluzentes cabeleiras adolescentes e os bíceps de jovens surfistas. Mas ele permanece sentado olhando o mar à distância.

O carro continua parado, o sinal fechado e o estupendo calor da vida batia de frente sobre mim. Tudo em torno era uma ávida solicitação dos sentidos. Por isto, paradoxalmente, fixei-me por um instante naquele corpo que parecia ancorado do outro lado das coisas. E sem fazer qualquer esforço comecei a imaginá-lo quando jovem. É um exercício estranho esse de começar a remoçar um corpo na imaginação, injetar movimento e desejo nos seus músculos, acelerando nele, de novo, a avareza de viver cada instante.

A gente tem a leviandade de achar que os velhos nasceram velhos, que estão ali apenas para assistir ao nosso crescimento. Me lembro que menino ao ver um velho parente relatar fotos de sua juventude tinha sempre a sensação de que ele estava inventando uma estória para me convencer de alguma coisa.

No entanto, aquele velho que vejo na esquina da praia de Copacabana deve ter sido jovem algum dia, em alguma outra praia, nos braços de algum amor, bebendo e farreando irresponsavelmente e achando que o estoque da vida era ilimitado.

Teria ele algum desejo ao olhar as coxas das banhistas que passam? Olhando alguma delas teria se posto a lembrar de outros corpos que conheceu? Os que por ele passam poderiam supor que ele fazia maravilhas na cama ou nas pistas de dança?

Me lembra ter lido em algum lugar que o inconsciente não tem idade. Ah, sim, foi no livro de Simone de Beauvoir sobre "A velhice". E ali ela também apresentava uma estatística segundo a qual por volta dos 60 anos poucos se declaram velhos; depois dos 80 anos, só 53% se consideram velhos, 36% acham que são de meia-idade e 11% se julgam jovens.

Não sei porque, mas toda vez que vejo um senhor de cabelos brancos andando pela praia penso que ele é um almirante aposentado. Às vezes, concedo e admito que ele pode ser também da Aeronáutica. Por causa disto, durante muito tempo, vendo esses senhores passeando pela areia e calçada, sempre achava que toda a Marinha e Aeronáutica havia se aposentado entre Leblon e Copacabana.

Mas esses senhores de short e boné branco que passam às vezes em dupla pelo calçadão, são mais atléticos que aquele que denominei de velho e, sentado na cadeira, olha o mar.

Ele está ali, eu no meu carro, e me dou conta que um número crescente de amigos e conhecidos tem me pronunciado a palavra "aposentadoria" ultimamente. Isto é uma síndrome grave. Em breve estarei cercado de aposentados e forçosamente me aposentarão. Então, imagino, vou passear de short branco e boné pelo calçadão da praia, fingindo ser um almirante aposentado, aproveitando o sol mais ameno das 9h30m até cair sentado numa cadeira e ficar olhando o mar.

Me lembra ter lido naquele estudo de Simone de Beauvoir sobre a velhice algo neste sentido: "Morrer, prematuramente, ou envelhecer: não há outra alternativa." E, entretanto, como escreveu Goethe: "A idade apodera-se de nós de surpresa." Cada um é, para si mesmo, o sujeito único, e muitas vezes nos espantamos quando o destino comum se torno o nosso: doença, ruptura, luto. Lembro-me de meu assombro quando, seriamente doente pela primeira vez na vida, eu me dizia: "Essa mulher que está sendo transportada numa padiola sou eu." Entretanto, os acidentes contingentes integram-se facilmente à nossa história, porque nos atingem em nossa singularidade: velhice é um destino, e quando ela se apodera de nossa própria vida, deixa-nos estupefatos. "O que se passou, então? A vida, e eu estou velho", escreve Aragon.

Meu carro, no entanto, continua parado no sinal da praia de Copacabana. O carro apenas, porque a imaginação, entre o sinal vermelho e o verde, viajou intensamente. Vou ter de deixar ali o velho e sua acompanhante olhando o mar por mim. Vou viver a vida por ele, me iludir que no escritório transformo o mundo com telefonemas, projetos e papéis. Um dia, talvez, esteja naquela cadeira olhando mar à distância, a vida distante.

Mas que ao olhar para dentro eu tenha muito que rever e contemplar. Neste caso não me importarei que o moço que estiver no seu carro parado no sinal imagine coisas sobre mim. Estarei olhando o mar, o mar interior e terei alegrias de nenhum passante compreenderá.


Affonso Romano de Sant'Anna

Crônica publicada no Jornal do Brasil - Rio de Janeiro - 1998

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

B, de Beatriz


— O que eu gosto mesmo é de puta! — berrou o dr. Ambrósio no aniversário de 15 anos da filha, aproveitando o exato momento em que a música foi suspensa para os convidados cantarem o "parabéns a você".

Fez-se, então, o silêncio mais absoluto que ja presenciei.

O dr. Ambrósio estava num lugar estratégico, à vista de todos, próximo ao bolo com as velinhas acesas. Os convidados, que eram mais de 100 no imenso salão de festas do edifício, interromperam as conversas; os garçons pararam de servir. Na pequena multidão, houve uns poucos que, embora ouvindo os berros, não identificaram exatamente o que fora dito; a maioria das pessoas, porém, escutou aquela confissão insólita e ficou paralisada, sem acreditar nos próprios ouvidos.

— Quem é? É um penetra? — perguntou alguém, sussurrando.

— Não. É o pai da aniversariante! — respondeu outro sussurro.

O dr. Ambrósio aproveitou-se da perplexidade que imobilizara a todos e, embora fosse baixinho e barrigudo, conseguiu rapidamente, numa manobra ágil, subir num banquinho. Colocou as mãos em concha na boca, como um megafone, e, sempre aos berros, continuou:

— Eu adoro puta! Mas tem que ser puta bem puta mesmo, não me venham com aquelas putinhas envergonhadas, meio culpadas, do tipo freirinha que pulou o muro do convento para dar uma voltinha, como muitas que estão aqui no salão. Eu me amarro em puta assumida, bem sacana, bem despudorada.

— Increible... — exclamou, em espanhol, um homem gordo e careca a minha frente, cobrindo o rosto com as mãos, envergonhado.

— Meu Deus! Como é que pode fazer uma coisa dessas no aniversário da filha?!... — ouvi alguém falar atrás de mim. Este comentário foi como um chamamento à realidade. Despertei da paralisia, num salto. Corri em direção ao banquinho e puxei o dr. Ambrósio pelo braço:

— Pare com isso, Ambrósio! Você enlouqueceu?

Ele já tinha parado. Estava inerte, com os ombros curvados, os braços caídos e o olhar perdido. Parecia um palhaço em cima daquele banquinho. Segurei-o pelo braço e ajudei-o a descer com delicadeza. Não oferecia resistência alguma, dava a impressão de estar em estado de choque. Além de completamente bêbado, é claro.

O salão ficou tomado por um grande burburinho, onde se destacava o choro convulsivo da aniversariante, Beatriz, socorrida por vários convidados, que a retiraram do recinto às pressas. Também se podia ouvir com nitidez os berros de Jurema, mulher do dr. Ambrósio, mãe de Beatriz:

— Canalha! Patife! Monstro! Fazer isso no aniversário da filha. Eu sabia que ele ia tentar estragar este grande momento...

Percebi que Jurema vinha caminhando velozmente em direção ao marido, acompanhada pelo namorado da filha, e também pelo homem gordo e careca que falava espanhol e por uma amiga da filha, lindíssima.

O dr. Ambrósio, por um instante, emergiu daquela alienação em que parecia mergulhado e seus olhos brilharam com agressividade.

— Aquelas megeras... Megeras... Bruxas... — ele balbuciava com voz incerta e um ódio inquietante. Mas logo mergulhou outra vez no silêncio e na indiferença.

Tratei de protegê-lo dos convidados que formavam uma aglomeração furiosa. O namorado da filha era o mais exaltado e tentou agredir o dr. Ambrósio. Defendi-o, repelindo o agressor com um empurrão e pedi calma:

— Vamos serenar os ânimos! Com licença, vou retirar o Doutor daqui. Com licença, minha senhora...

— Chama a polícia! Chama a polícia para levar esse desclassificado — berrava o namorado da filha, contido por dois amigos.

— Não. Chama o hospício! — dizia Jurema, igualmente enfurecida.

— Calma, pessoal — eu pedia.

Os convidados formavam uma massa compacta em torno do dr. Ambrósio, o qual eu protegia com um abraço. O silêncio e a perplexidade anteriores foram substituídos por um tumulto cheio de indignação que se tornava perigosamente incontrolável.

— Se me contassem esse lance, eu não acreditava! — disse alguém. — Imagine, o dr. Ambrósio, um modelo de probidade e decência!

— Ele nunca me enganou com esse ar de falso moralista.

— Tem que dar uma surra nesse cara!

— Que nada! É preciso levar direto numa ambulância para uma clínica psiquiátrica...

— Será que ele está drogado?

— Que filho da puta!

— Olha o gabarito do salão! Vamos baixar a bola!

— Baixar a bola!? Agora? O gabarito do salão já foi pra cucuia.

O dr. Ambrósio estava abúlico, sem reação, inteiramente alheio ao que se passava em volta.

No meio daquela gritaria, percebi que o Gordo que falava espanhol e a Amiga Bonita da filha eram os mais equilibrados — e talvez os únicos que observavam a cena com compostura. As outras pessoas estavam revoltadas, tomadas de indignação contra o dr. Ambrósio. Algumas delas por certo aproveitavam para ajustar contas antigas. O cerco se fechava; tive que usar energia para conter os mais agressivos:

— Um momento! Afastem-se! Eu vou retirar o Doutor daqui. Com licença, por favor... O senhor e a senhora aí poderiam me ajudar? — pedi ao Gordo que falava espanhol e à Amiga Bonita da Aniversariante.

Ambos, prontamente, me ajudaram a retirar o dr. Ambrósio ileso daquela confusão indescritível.

O Gordo partiu na frente, incentivando-nos em portunhol para que o seguíssemos.

— Venham! Sigam-me! — ele gritava.

Saímos correndo em direção à calçada e entramos rápido no carro do Gordo, um Landau preto que estava providencialmente estacionado bem na porta do edifício. Ambrósio nos seguia docilmente, como um autômato.

— Gostei quando você pediu minha ajuda, me tratando de "senhora", ali na saída — me disse a Amiga Bonita da Aniversariante, numa zombaria delicada para quebrar a tensão quase insuportável da situação, logo que nos acomodamos no Landau.

Quando alguns convivas mais revoltados já se aproximavam,correndo, do carro, o Gordo engatou a primeira e partiu velozmente.

Na primeira esquina cruzamos com uma ambulância de sirena aberta. Mais adiante, passaram por nós dois Opalas da polícia em alta velocidade.

Corriam, possivelmente, em busca do dr. Ambrósio.

O que mais espantava naquela história era o seu personagem principal. De muitas pessoas eu poderia esperar um lance daqueles, mas nunca de alguém como dr. Ambrósio: um homem contido, sereno, com uma imagem de cidadão respeitável, sempre muito calado e inacessível. Nas fotos de jornal, invariavelmente a figura austera, com a testa franzida protegendo, por certo, pensamentos graves e inescrutáveis: há três décadas, ele ocupava sucessivamente vários cargos importantes no governo. Num discurso recente, o Governador se referira ao dr. Ambrósio como "uma Reserva Moral deste nosso Estado devastado". Um dos tantos adversários políticos, ou até um convidado ressentido pela festa inacabada, poderia se sair agora com alguma ironia solerte do tipo: assim como na floresta, também na moral a devastação já atingiu as reservas.

Aquele episódio era quase inacreditável. Lamentei ter esquecido as Memórias e Reflexões, de Jung, na casa da praia: certamente o mestre teria uma explicação para aquela conduta.

— Increible! Increible! Pobre Ambrossio, non si por que fez esto. Enlouqueceu por unos momentos, talbez... Quando se der cuenta do que fez vá a querer se matar de arrependimiento — disse o Gordo na sua mistura de espanhol e português.

De certa forma adivinhava a minha preocupação. Tentei imaginar o que seria da vida do dr. Ambrósio no futuro: a família, os amigos, a política... O que diria o Governador? E os jornais? Não sei o que um homem como dr. Ambrósio poderia fazer depois daquela bomba atômica que havia jogado sobre sua própria vida.

O Gordo dirigia vagarosamente, sem destino, pelas ruas da cidade. Não sabíamos o que fazer, para onde ir.

O dr. Ambrósio, lentamente, começou a se recuperar. Parecia despertar de um sono letárgico, como se tivesse passado o efeito de uma anestesia.

— Para donde nôs bamos? — perguntou o Gordo em portunhol.

— Han, hum... Me deixem na Rua Duque, no meu escritório. Vou dormir lá — disse o dr. Ambrósio, já quase completamente refeito.

— Quem sabe vamos a um médico? — arrisquei cautelosamente, quase dizendo "a uma clínica".

— Nem pensar! Quero dormir no escritório. Estou bem, estou perfeito — disse o dr. Ambrósio com aquele tom decidido de quem está acostumado a dar ordens sem ser questionado, que era sua marca. Estava refeito, constatei.

O carro seguia vagarosamente. Nós, passageiros, em silêncio: no banco da frente ia o Gordo dirigindo e a Amiga Bonita da Aniversariante: atrás, o dr. Ambrósio se recompunha ao meu lado. Ajeitava a camisa, amarfanhada, e tentava melhorar a gravata fora do lugar.

— Fiquem tranqüilos, que eu estou bem — nos assegurou ele.

De repente, o dr. Ambrósio passou a mão na cabeça e fechou os olhos, como se tivesse sofrido uma dor súbita:

— Puxa vida! O que é que eu fui fazer? Que escândalo!

O Gordo virou para trás e piscou o olho na minha direção, lembrando que profetizara aquela reação.

O carro estacionou na Rua Duque.

— É aqui mesmo, no 5º. andar deste edifício — informou dr. Ambrósio, que sacudiu a cabeça como quem espanta maus pensamentos. Terminou de se recompor e preparou-se para descer. Mas interrompeu o movimento e se voltou na nossa direção:

— Olha, eu queria dizer o seguinte... Eu devo uma explicação a vocês, que tiveram essa atitude solidária... — começou o dr. Ambrósio.

— Não, por favor! — cortou a Amiga Bonita da Aniversariante, energicamente, com expressão severa. — O senhor não nos deve nenhuma explicação! Não queremos saber de nada. O senhor não entendeu que nós estamos ao seu lado? Eu, pessoalmente, sempre tive o senhor na conta de um calhorda, para ser bem franca. Mas, hoje, o senhor cresceu no meu conceito: descobri que é um ser humano sensível e arrojado, capaz de explosões desatinadas...

O dr. Ambrósio, o Gordo e eu olhamos de boca aberta para aquela jovem e linda mulher. Que noite de surpresas!

— Quem é você? — perguntou o dr. Ambrósio.

— Sou Beatriz — disse ela. — Mesmo nome da sua filha. Amiga da sua filha.

— Quantos anos você tem?

— Dezenove.

— Deixe, então, eu te dizer uma coisa, filhinha — falou o dr. Ambrósio numa confidência a Beatriz, como se o Gordo e eu não estivéssemos ali...

Mas parou, arrependido, e se virou para sair do carro:

— Deixa assim — sorriu. — Você tem toda razão. Eu não devo nenhuma explicação. A ninguém! Muito obrigado a vocês. Boa noite.

Saindo do carro, o dr. Ambrósio caminhou em direção ao edifício em passos decididos, abriu a porta e desapareceu. O Gordo engatava a primeira marcha para partir, quando, em mais uma surpresa naquela noite surrealista, Beatriz o deteve com um gesto suave:

— Um momento... — disse ela, um pouco hesitante.

Em seguida, resoluta, virou-se na minha direção:

— Você me leva para beber um suco de laranja?

Fiquei paralisado pela perplexidade. Outra vez. Depois de tantas surpresas naquela noite, já era tempo de ir me acostumando. Quinze para as três da madrugada, olhei no reloginho do Landau, avaliando toda a dimensão daquele convite. O difícil vai ser conseguir laranjas a esta hora.

— É cl-claro... É claro! Vamos tomar um suco, sim! — respondi por fim.

Beatriz apanhou sua bolsa, abriu a porta do carro e disse ao Gordo:

— Nós, então, ficamos aqui. Boa-noite, sr...

— Gardelino, Dom Gardelino — disse o Gordo, com uma cara de quem não se espantaria com mais nada que acontecesse naquela noite.

Beatriz e eu descemos do carro, enquanto o Gordo permanecia uns instantes parado. Depois, sacudiu a cabeça e partiu sozinho no imenso Landau preto.

Ficamos calados por uns instantes na calçada em frente ao edifício onde entrara o dr. Ambrósio. A rua deserta, nós dois sozinhos.

— Que noite! — pensei, olhando para aquela mulher deslumbrante, apaixonado às três da manhã. Como diria o Pequeno Príncipe: meu coração parecia que ia explodir. Ou teria sido o Pequeno Polegar?

Imaginei a orquestra de Gordon Jenkins se acomodando ali no meio da Rua Duque e, quando aquele primeiro violinista negrão, o Everaldo, que foi meia-esquerda do juvenil do Vasco, atacasse os primeiros acordes, Nat King Cole, de smoking dourado, sairia de trás de uma coluna do Hotel Everest cantando Stardust.

— Hoje eu tive uma aula de vida — disse Beatriz quebrando meu devaneio.

— Aula de vida? — perguntei confuso, enquanto a orquestra de Gordon Jenkins e o smoking dourado de Nat King Cole desapareciam.

— Sim, uma aula de vida — disse Beatriz, com empolgação. Aquele lance aparentemente maluco do dr. Ambrósio, na festa de 15 anos da filha, mexeu com a minha cabeça. Foi uma iluminação. Descobri que tem coisas que estão dentro da gente, coisas que a gente tem vontade de fazer e não faz; mas a gente deve fazer. Deve fazer sem tentar dar explicações, nem para os outros, nem para a gente mesmo. Por isso, eu resolvi descer do carro e ficar com você...

Parece uma fábula de La Fontaine! — pensei com assombro, enquanto observava que Beatriz se tornava ainda mais deslumbrante à medida que a noite avançava.

— Quer dizer que... você está aqui comigo, agora... graças ao dr. Ambrósio?... — perguntei, me dando conta de repente daquela verdade.

— Em todos os sentidos! — respondeu ela, rindo da minha nova surpresa. — O dr. Ambrósio nos fez este favor: primeiro, porque, se não fosse a confusão da festa, eu nem teria saído de lá; e, segundo, porque com aquele discurso incrível, implodindo a festa e a vida dele, o dr. Ambrósio conseguiu mexer com a minha cabeça: antes da noite de hoje, mesmo com vontade de ficar, eu teria ido para casa como boa moça de família...

Ela dizia essas coisas de forma irresistível.

Olhei para aquela mulher esplêndida, e foi inevitável lembrar de Dante Alighieri. Dante? Ali, na calçada, às três da manhã? Sim. Há horas em que certos paralelos grandiosos não parecem ridículos; especialmente depois dos uísques de uma festa inacabada: naquele momento em que resolveu descer do Landau do Gordo para ficar comigo, Beatriz de certa forma repetiu, com um gesto, o que a Beatriz Portinari, da Divina Comédia, dissera 700 anos antes, com palavras, ao implorar que Virgilio fosse ao Inferno salvar Dante: "Sou Beatriz (...) Amor me move: só por ele eu falo".

Por certo que a Beatriz de sete séculos atrás fez com que Dante fosse resgatado do Inferno, mas a Beatriz luminosa que me sorria, ali na Rua Duque, foi solidária comigo na fuga de algo pior que o Inferno: uma festa de 15 anos em que o pai da aniversariante declarou de uma tribuna sua paixão pelas putas. O Inferno de Dante, com seus lascivos, glutões, avaros, pródigos, dissipadores, tiranos, salteadores, heréticos, sodomitas e usurários, pareceria um parque de diversões perto do astral da festa de onde fugíramos.

— Para onde é que você vai me levar? — perguntou Beatriz, me pegando pela mão, suavemente.

— Já que fugimos de um Inferno, que tal o Paraíso? — respondi com meu primeiro sorriso daquela noite.

Ela adorou a resposta, me abraçou com força, e sorriu em retribuição: nem no Canto XXXI, Dante conseguiu descrever um sorriso luminoso como aquele.

Antes de embarcarmos no táxi, olhei para o edifício em frente e elevei meu pensamento até a luz acesa no quinto andar:

Obrigado dr. Ambrósio.



José Antônio Pinheiro Machado


"O Brasileiro que Ganhou o Prêmio Nobel", "Recuerdos do Futuro", "Enciclopédia das Mulheres", "Anonymus Gourmet: Receitas & Comentários", "Copos de Cristal", "Na mesa ninguém envelhece", são alguns dos livros do escritor, cozinheiro, apresentador de programas culinários na TV e gourmet gaúcho José Antonio Pinheiro Machado. Seus textos também saíram na revista Playboy, onde foi Redator-Chefe (de onde transcrevemos o texto acima — edição de dezembro/1990), Zero Hora, Correio do Povo, Oitenta, Estado de S. Paulo, Jornal da Tarde, Amanhã, entre outras publicações. Mora em Porto Alegre, onde atua como advogado.


Escrever, Humildade, Técnica

Essa incapacidade de atingir, de entender, é que faz com que eu, por instinto de... de quê? procure um modo de falar que me leve mais depressa ao entendimento. Esse modo, esse "estilo" (!), já foi chamado de várias coisas, mas não do que realmente e apenas é: uma procura humilde. Nunca tive um só problema de expressão, meu problema é muito mais grave: é o de concepção. Quando falo em "humildade" refiro-me à humildade no sentido cristão (como ideal a poder ser alcançado ou não); refiro-me à humildade que vem da plena consciência de se ser realmente incapaz. E refiro-me à humildade como técnica. Virgem Maria, até eu mesma me assustei com minha falta de pudor; mas é que não é. Humildade com técnica é o seguinte: só se aproximando com humildade da coisa é que ela não escapa totalmente. Descobri este tipo de humildade, o que não deixa de ser uma forma engraçada de orgulho. Orgulho não é pecado, pelo menos não grave: orgulho é coisa infantil em que se cai como se cai em gulodice. Só que orgulho tem a enorme desvantagem de ser um erro grave, com todo o atraso que erro dá à vida, faz perder muito tempo.

Clarice Lispectro

Texto extraído do livro "A Descoberta do Mundo", Editora Rocco - Rio de Janeiro, 1999.

Olhando, na praça


Conseguia vê-los gesticulando, de longe. Mais ele do que ela. Ela olhava para os lados, braços abertos como quem pondera a gritaria em praça pública. Brigavam. Estava na cara de quem quisesse ver e ouvir, se chegasse mais perto. Preferi me manter em minha posição de assistente distante. Eu não era dado a escândalos e no fundo, aquilo tudo já começava a me incomodar.

Foi quando ele me chamou.

A principio, achei que não era comigo e ignorei suas mãos em concha, puxando o ar pra si. Continuei olhando para eles; o olhar vago de quem observa, mas não pretende entender. Logo notei que alguns poucos que se juntaram em torno deles — talvez mais ávidos por brigas — me acenavam com os braços, também chamando. Confesso que a situação me constrangeu. Eu não pretendia sair do lugar onde estava para saber de nada ou mesmo para apartar nada, se fosse o caso. Estava decidido a passar a tarde fazendo nada e era exatamente o que aconteceria. Ninguém me tiraria do recolhimento que escolhi viver naquela tarde de sol onde a fumaça de óleo diesel queimado dos ônibus apenas me lembrava do porquê de estar ali. Eu cansara da fumaça dos ônibus, dos ônibus e das pessoas que andavam nos ônibus; acredito que até das pessoas que andavam fora dos ônibus. Por isso escolhi aquela praça para refletir meu cansaço enorme de quase tudo o que existia. Não tinha conseguido chegar a conclusão alguma até o momento em que eles me tiraram de minhas observações com sua discussão silenciosa, ainda que movimentada, observada de longe. O carrinho de bebê estava ali ao léu. Eles sequer pareciam lembrar que carregavam um bebê dentro do carrinho seguro pelas mãos dela até um pouco antes da discussão ter início.

Foi do nada. Caminhavam lado a lado (passaram por mim, inclusive) e pude ver os tristes olhos dela fitando o longe. Nele não reparei, mas olhando pelas costas, sua musculatura forte — ainda que fosse baixo — me chamou a atenção. Quando estavam a uns vinte metros de distância, notei que pararam e ele começou a gritar. Ela balançava os braços e parecia dizer coisas que o deixava cada vez mais irritado. Ele chegou a sacudir os braços dela que os puxou novamente para si, com força. O bebê devia chorar, imagino. Ele bateu o pé direito três vezes — algum cacoete — e passou a enumerar algo na mão direita, como quem conta os erros e acertos do dia. A somatória não devia ser das melhores e a gritaria deve ter aumentado por aí, pois foi quando alguns poucos que passavam, pararam para olhar. Logo, um pequeno grupo se formava, esparsamente, em torno deles.

E agora todos eles me chamavam com suas bocas e braços. O bebê não me chamou. Também não pude ver seu semblante. Devia estar lá, sentado no carrinho, observando os pais discutirem por nada, mas provavelmente pensando em tudo.

Não. Não obedeci ao chamado. Também não fingi não ser comigo e me virei para outro lado. Apenas saí caminhando, como quem vai para casa. Claro que tive de passar por eles na minha ida, por ser o único caminho viável para a volta e por ter aprendido a nunca fugir por ruelas laterais nesses anos todos de vida. O caminho acabava sendo sempre mais longo. Mas minha curiosidade não me atentou para os lábios deles todos que, gesticulando mais do que nunca, quase pulavam ante a minha passagem. A praça parecia mais bela depois de passar por eles. E mesmo que eu não escutasse pássaro algum cantando — ainda que os visse — ou os gritos que ressoavam certamente atrás de mim, eu podia contemplar algumas flores perdidas entre matos e sonhar com aquele bebê sorrindo algum dia, certamente ao ouvir alguma bela melodia ou mesmo um sussurrar de palavras doces, saídas de alguma boca que o aguardaria. Ou numa realidade tácita, poderia ter como companheiro som algum. O mesmo que isentava a mim a participação no que fora chamado e não quisera atender.

E meu álibi era apenas o silêncio do mundo.

Ana Peluso



segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

O defunto inaugural - Relato de um fantasma


Vamos subindo devagar. Quando alcançarmos o espigão, poderei saber para onde... Saber, não: desconfiar. Mas os homens não falam; apenas exalam um ou outro gemido nas rampas mais fortes. Eu não sou tão pesado assim. Pelo contrário: tantos dias exposto ao ar livre, o sol reduziu-me bastante, curtindo-me as carnes.


Conheço estes caminhos. Muitas vezes, bêbado ou vencido pelo cansaço, deixei-me ficar encostado à cangalha, sobre o pedregulho do leito, enquanto o meu cachorro farejava os bichos e a mula aproveitava o capinzinho das margens.


Só acordava quando trovejava lá em cima e me vinha o medo de ser arrastado pelas enxurradas; ou então quando se aproximavam esses caminhões enormes que começam a invadir a serra depois que se abriu a estrada que vira para a encosta de lá.


A garoa afastou-se do vale. Não sei por que os galos ainda cantam. Chegamos ao alto onde o pé de coqueiro joga uma sombra curta para o lado das jazidas.


Deve ser pouco mais de meio-dia. Tomara que o nosso rumo seja no sentido contrário ao dessa sombra. Conquanto para a minha pele seja indiferente solou chuva, prefiro a vertente de cá, onde deve ter ficado o molde irregular das patas da alimária.


Os homens param. Depois se decidem: será mesmo pela estrada nova! Tal corno eu queria. O dia clareou bonito. Nunca o vira assim. Estou feliz. Circulo nele agora participo-lhe da atmosfera.
Vem subindo Josefina com a criança ao colo. Eu queria dar-lhe bom-dia, mas não posso. Se ela soubesse quem vai aqui!... Passou sem desconfiar...


Na ponte provisória um dos homens falseia o pé, e meu corpo rola. Vão pescá-lo mais adiante. Tive receio de que o deixassem seguir com as águas. Já começo a ser menos indiferente ao destino de minha carcaça.


Ao longe — mancha de sangue na vegetação — uma bomba de gasolina. A primeira instalada nestes ermos de montanha. Depois, a estalagem. O dono grita, ao dar com os meus despojos:


— Que há lá em cima que estão mandando defuntos cá para baixo? Já é o segundo!...


Os homens não respondem. Desanimaram não sei por quê. Quererão largar-me ali mesmo, nalguma grota, tal como me encontraram. Se fosse antes, não me importaria. Mas já agora nasce em mim um capricho: chegar primeiro, ganhar a corrida. Eles prosseguem mais soturnos.


A que distância andaria o outro? Foi um tropeiro que informou mais adiante: — Cruzei com ele há coisa de duas léguas da Igrejinha; levantei o lenço. Imagine quem era? O Antão, caçador de parasitas. Catingando já, coitado...


E reconhecendo a qualidade da mercadoria que ia na rede: - Se vosmecês querem chegar na dianteira, carece andar ligeiro. A festança vai ser de arromba. Só estão esperando o material. Parece que pagam bem. Comprar defunto pra cemitério, foi coisa que nunca vi! concluiu o tropeiro soltando uma gargalhada. E depois de relancear o meu corpo embrulhado no lençol:


— Óiá! o pé dele tá aparecendo!...


Agora sim, compreendo por que, e sei para onde me estão carregando: fizeram cemitério nalgum lugar, mas faltou defunto para inaugurá-lo. Daí o pedido às redondezas. Que cemitério será?


O dia vinha escurecendo. Os homens tinham agora pela frente uma planície animada de sapos e pirilampos.


— Engulam a cachaça, disse eu, já impaciente. E toquem depressa!


Minha voz não ressoa, mas produz efeito. Tanto assim que os homens empunham logo o pau da rede e me erguem aos ombros.


E eu vou seguindo, o rosto voltado para a primeira estrela.


Um era careca, o outro tinha bigode. Atravessaram o pântano. Se não conhecessem tão bem o caminho, ficaríamos os três atolados na lama. Quase não se falavam.


— Espanta a varejeira da testa, gritei para o careca... Isto é, quis gritar. O homem sacudiu a cabeça.


— Por menos de quatrocentas pratas, nós voltamos com ele, disse o de bigode.


— Até trezentos, a gente fecha o negócio, responde o careca.


— Vosmecê vê que ele nem tá cheirando!...


Era a minha vantagem sobre o concorrente. Pelo que percebi da conversa deles, e pela marcha batida em que vínhamos, o outro devia ser alcançado na curva do Bananal, antes de o sol raiar. A esse pensamento, trocaram-me de ombro e apressaram a marcha.


Surgiram na cerração as primeiras mulheres que se encaminhavam para o eito. Ao darem comigo, caíram de joelhos, persignando-se. A mais moça fez uma pergunta; a que só de longe o careca respondeu:


— Foi tiro, não; morte de Deus.


— Toca depressa, toca! gritava eu sem poder gritar.


Receavam os homens que outros cadáveres, além do que seguia à frente, estivessem afluindo ao mesmo tempo para o Arraial Novo.


Morrer, sempre se morre por estas terras abandonadas. Mas com a friagem dos últimos dias e o advento dos caminhões, contando-se bem, é fácil encontrar defunto apodrecendo pelos caminhos, ou dentro da mata.


O interesse dos que me carregavam era chegar primeiro e negociar depressa os despojos: o meu, era ganhar a corrida com o colega que ia na frente.


— O outro já deve estar perto, diz o de bigode. Tá largando catinga...


Surge ao longe um bananal oscilando suas folhas tostadas de vento frio. Experimento certo bem-estar, como nunca na vida. Não propriamente um bem-estar comum, mas o sentimento, quase apagado em mim, quando me apanharam na grota, de que ainda vagueio e vaguearei algum tempo pelas imediações de meu corpo.


Mais de quarenta anos tem esta carcaça. À frente dela vou seguindo, como a projeção de uma luz distanciada mas não excluída de sua lanterna.


Que bom este passeio! Tudo tão fluido que posso perceber o que se faz e acontece na área mais próxima de meu corpo.


E lá vai o tropeiro Fagundes — eu me chamava Fagundes (Fagundes?) — descendo de rede para o cemitério do Arraial Novo!...


Por que, nesse arraial, tanta pressa em inaugurá-lo? Por que não esperar pelos defuntos da localidade? A vida lá é boa, eu sei. Tem aguadas, milharais, moinhos; terras férteis e homens fortes. Ninguém há de querer morrer ali, só para estrear cemitério!...


— Eh, Bigode!... Eh, Careca! Depressa!...


No Ribeirão das Mulatas alcançamos os outros. Vão perder a partida. Além do mais, a mercadoria que oferecem apodrece tão depressa que será capaz de ser recusada, mesmo que chegue em primeiro lugar; ao passo que meu corpo, magro e curtido, parece intacto.


E os meus homens passaram silenciosos. Os do outro defunto olharam com raiva. Meus fluidos atravessaram depressa aquela área, como que fugindo ao mau cheiro...


Ao avistarem o arraial que sorria ao longe, no meio do arvoredo, os dois homens suspiraram.
Fui recebido por um bando de crianças em meio do latido geral dos cães. Colocaram-me num estrado que me esperava no centro da igrejinha. Correram a avisar a professora rural, enquanto os meus carregadores, à porta, discutiam o preço.


Os curiosos foram chegando. Descobriram-me a cara. Era a primeira vez que viam defunto. Ante o meu dente único plantado na gengiva esbranquiçada, puseram-se a rir. A maioria eram rapazes.


— Agora o cemitério vai ser cemitério mesmo, dizia um.


— Lá se vai o nosso campo de futebol! suspirava outro.


— Acho que não se devia recorrer a defunto de fora, opinava um terceiro.


— Uma vergonha para nossa terra!


Entrou um cachorro. Dentro da pequena nave ecoavam-lhe os latidos. Entrou em seguida uma velha que se ajoelhou junto de mim, impondo silêncio aos rapazes e ao cachorro. Ao se retirarem de lenço ao nariz, os moços tropeçaram na escadaria com um fardo que cheirava mal, envolto em jornais e folhas de bananeira. Era o outro. Com bastante atraso, numa carrocinha, vinha chegando o terceiro concorrente. Três defuntos ao todo.


Os rapazes indignaram-se. Era a invasão do Arraial por gente podre. Revoltante, aquilo. Foram queixar-se ao Fundador: na pressa de inaugurar o cemitério as mulheres inundam o povoado de cadáveres! Um, ainda passava. Mas tantos assim!... Não acha um perigo, Fundador?
Assim chamava todo mundo a esse velho robusto, três vezes casado, figura principal e dono de quase todo o povoado, que enchera de filhos e netos.


— Vocês se entendam com as mulheres. Elas que inventaram esse negócio de cemitério. Eu, por mim, quando chegar a minha hora, vou morrer sozinho lá em cima, no mato, já disse.
Um dos jovens entristeceu subitamente.


— Não se amofine, rapaz, disse o Fundador batendo-lhe no ombro. Mandarei fazer outro campo para vocês.


— Não estou pensando no campo. Me refiro aos defuntos.


— Ele está fingindo, Fundador! interveio o companheiro. Está com o sentido é no campo mesmo. Não pensa noutra coisa. Eu também. Nosso clube foi desafiado, o senhor sabe. Estávamos treinando todos os dias. Agora, depois desse enterro, como é que vai ser? E com certa astúcia: — O senhor não acha que um só defunto é pouco para dar àquilo um ar de cemitério? Ainda mais um sujeito que ninguém conhece... que nem é cidadão do Arraial.


— Isso mesmo, isso mesmo! ciciava eu aos ouvidos do rapaz.
Mas ele não me ouvia, não me podia ouvir...


— São vocês os culpados, disse o Fundador. Eu mandei abrir um cemitério, vocês fizeram um campo de futebol.


— Saiu sem querer, Fundador, saiu sem querer...


— Até as medidas são iguais, me disseram!


Calou-se o primeiro rapaz, a fisionomia transtornada. E num impulso de paixão que lhe venceu a timidez, dirigiu-se ao velho:


— Fundador, nós nunca tivemos disso aqui! Ninguém falava em morte. Todo mundo só pensava em trabalhar e viver. O senhor bem que podia salvar o nosso time. O jogo está marcado para o fim do mês. Virá gente da redondeza. Nosso clube é novo, mas a vitória é certa. Vai ser uma honra para o Arraial. Se o senhor deixar, nós damos um jeito no cadáver, adia-se a inauguração e em três semanas fazemos outro cemitério. Talvez até melhor do que este...


— Agora é tarde, respondeu o Fundador.


Realmente, era tarde. As velhas já me tinham lavado e agora me vestiam. Nunca me vi tão bem trajado. Larguei os trapos; enfiaram-me um casaco impreciso e negro, entre jaquetão e fraque. Fiquei um defunto bem passável. Pelo menos, limpo.


A professora assumiu um ar doloroso. Vestida também de preto, a face chorosa, embora sem lágrima - era a dona do enterro. Cercavam-na outras mulheres. Conduzia-se como se fora a minha viúva.


Notaram os rapazes nos modos reticentes do Fundador certa indiferença pelos preparativos do enterro. Combinaram não comparecer. Faziam mesmo trabalho surdo contra a cerimônia da inauguração. Serviam-se de dois argumentos: um, que eu não era do lugar; outro que, enchendo-se o povoado de cadáveres, uma epidemia era iminente ali. Se alguém duvidasse, fosse perguntar aos doutores da cidade vizinha.


O Fundador invalidou o último argumento mandando fechar as estradas e enterrar logo os defuntos restantes. À outra razão responderam as mulheres que ninguém sabe quando o nosso dia chegará. Que destino se daria então à nossa carne?


Os rapazes ouviram desconcertados. Jamais cuidaram de tal coisa.


— Sim, é porque vocês são moços, não pensam nisso, insistiam as mulheres. Saibam que não é só de velhice que se morre neste mundo. Vamos pensar um pouco no futuro. Lembrem-se de que a morte anda pegada à nossa pele.


E como os sinos começassem a repicar forte anunciando o meu enterro para o dia seguinte, os rapazes se retiraram desanimados. Desceram até a pracinha. Um sentimento novo amargava-lhes o coração.


— Tudo perdido. Temos que mandar avisar que o jogo foi adiado. Que azar!


Na conversa junto ao chafariz, circulavam uns termos até então desconhecidos no Arraial: "esquife", "féretro", "funeral" e outros, lançados pela professora.


As moças não pareciam tristes. Iam perder o futebol, é verdade; em compensação, o enterro valeria a pena como festa. A primeira cerimônia pública desse gênero que se ia realizar no Arraial. Muitas ficaram em casa, preparando os vestidos.


Vendo-me de preto entre círios e mulheres que rezavam ou fingiam rezar — os rapazes se impressionaram.


Ecoava neles a advertência fúnebre da velha, reforçada agora pelo sino que não parava de tocar. Desistiram da campanha contra o enterro. A cancha ia mesmo virar cemitério...


Eu estava de fato um defunto convincente. As crianças trepavam para espiar, e recuavam de pavor, repelidas sempre pela ponta de lança de meu dente único.


No dia seguinte, o povoado acordou cedo. Fora uma noite diferente, noite em que cada um se deitara com a convicção de que eu estava presente a seu lado. Os cães ganiam a cada minuto. Ninguém punha o rosto à janela.


Para todos, eu era um defunto imenso e difuso, presidindo à noite do Arraial.


Na verdade, não passei um minuto sequer junto a meu corpo. Quem se incumbira disso fora a professora e uma velha.


Flutuei por cima dos telhados, penetrei de mansinho nos lares. Quedei-me junto de várias criaturas, acompanhei-lhes os movimentos íntimos. Como toda essa gente é. simples, a portas fechadas!


De alguns que dormitavam toquei-lhes de leve a nuca. Apenas toquei. O suficiente para apreciar-lhes o estremecimento de pavor. Ninguém me viu. Senti não poder apresentar meu vulto em forma de vapor, como no tempo em que se acreditava em fantasmas. Nem mesmo consegui apagar as lamparinas acesas por minha causa. Talvez porque meus fluidos estivessem enfraquecendo, talvez porque não tardasse a desintegração de meu corpo.


Estou reduzido ao mínimo, pensei. Mas posso perfeitamente dar uma chegadinha até o cemitério, onde vão instalar-me hoje à tarde.


O portão foi colocado, os muros caiados de novo. A cova está aberta. Retiraram as traves do gol. Foi pena. Aquilo tinha mesmo formato de cancha de futebol, mais que de campo-santo. Não sei como vão se arranjar agora os rapazes.


O sino começa a badalar. Os cachorros põem-se a latir. Está chegando a hora. Eu me recolho aonde se acha meu cadáver para assistir ao saimento. Lá está a mesma mulher. (— Mas a senhora não me larga, professora!)


Ah, se eu pudesse articular as palavras. Que olheiras as dela, que maneira suspeita de olhar para um corpo morto.


Já vou sendo levado. O ambiente é festivo. Todo mundo me acompanha exceto o Fundador. Alegou que precisava cortar uns toros lá em cima, deixou Dona Maria doente e grávida na cama, sumiu-se. Não quer saber de nada com a morte; diz que não gosta de cemitério.


Eu também não gosto. Principalmente nas condições em que estou sendo enterrado, com esse péssimo sino que mais parece batucada confusa e sem ritmo. Nunca ouvi tocar tão mal a finados. A população me acompanha com relativa decência. Pelo menos, faz o possível. Os rapazes compareceram, afinal. Friamente.


Sob a aparência fúnebre, as senhoras escondem certo entusiasmo. Algumas quase sorrindo. Estou perto, e estou vendo. De vez em quando se lembram e simulam consternação. Consternação verdadeira, porém, reina atrás, perto da bandinha de música, onde os rapazes deploram ainda a perda do campo. Como compensação, namoram as moças.


— Aqui não, diz uma. Olha o morto.


— Deixa, deixa que ele te aperte, moça — insuflo aos ouvidos dela. Não te preocupes com o que vai lá na frente; aquilo é apenas um corpo abandonado, arranjo de velhas que só pensam na morte.
Parece que a moça me atendeu...


O préstito atravessa o portão de ferro. Meu caixão é colocado perto de seu lugar definitivo. Começo a achar aborrecido o papel a que me obrigaram. Despertar tantas idéias tristes numa aldeia tão despreocupada!... Não reclamo nenhum respeito pelo meu corpo. Será que já está descendo à sepultura? Um momento. Deixem-me voar até lá...


O padre terminava as palavras em latim. Referiu-se depois ao significado da cerimônia: entregava aos futuros mortos do Arraial Novo a sua verdadeira morada; e exortava o povo "a que pensasse sempre na morte!" Quando terminou, todos olhavam para o chão e simulavam tristeza.


Ouviu-se em seguida a voz bonita do vereador distrital. Disse que ali se enterrava um dos últimos tropeiros do nosso amado sertão, "raça que se extingue -ante a avançada progressista dos caminhões"; que me conhecera (onde? como? se nunca me viu, se nunca votei!) e tinha importante declaração a fazer: "Eu não era um defunto estranho ao local, nascera ali mesmo!..." Baixa demagogia... Pois se o Arraial não tinha trinta anos! Os rapazes sorriram. E resolveram, baixinho, expulsar do clube o sujeito amarelento que se prestara ao papel de coveiro.


A professora avança e dá instruções. As moças me cercam e eu me surpreendo numa onda de alegria indefinida. Aura de juventude emanando delas! Que fazer de tanta primavera desaproveitada? Meus fluidos roçam-lhes o colo. Somente os fluidos. A invisível carícia arrepia-lhes a pele, enquanto a musiquinha toca uma coisa triste debaixo das árvores.


Que se passou com elas que enrubesceram de repente? Algumas cruzam os braços ou tapam com o xale o busto arrepiado; outras se escondem, perturbadas, no meio do povo.


Está na hora de eu ir para o fundo. Quem é que me aparece à boca do buraco? A mula com a cangalha! Ó mulinha, ainda bem que não esqueceste o antigo dono. Coitada! Meio desmanchada, como um brinquedo abandonado...


Logo atrás, sorrindo com os dentes brancos, a metade do corpo comida pela sombra, quem vejo? Isabela!


— Tu te lembras, pretinha, daquele banho no ribeirão? o único momento bom de minha vida. Ah! agora não posso, mulinha!... Agora não posso, Isabela! Pois vocês não vêem que estou muito ocupado, inaugurando?!


Os rojões explodem, rejubilam-se as velhas. Só não conseguem chorar. E com frenesi atiram sobre o meu corpo uma chuva de pétalas. Em seguida, torrões de terra, como se me apedrejassem. Abraçam-se e despedem-se felizes.


Tinham arranjado sede para os seus despojos.


O portão foi fechado. E eu fiquei lá dentro, como ovo de indez. A espera dos mortos que hão de vir...


Fiquei, é modo de dizer; saía sempre. A idéia de corpo sepultado sossegou a princípio os meus fluidos. Durante dias perdi a memória; alguma interrupção, talvez mergulho mais demorado no vazio. O fato é que reapareci depois. E ainda há pouco dei um giro até à pracinha.


Há lá um arbusto onde gosto de ficar. Uma moça que passava perto parou de repente, assustada, olhando para mim, sem me ver. Tratei de voltar logo ao cemitério. E foi bom, pois um vira-lata, o mesmo da chegada, o que mais latiu na igreja e rosnou todo tempo no enterro, o cachorro de sempre, esgravatava com fúria o meu túmulo em direção aos ossos! E eu, pensando em seus dentes, experimentava a sensação de mal-estar análoga à que em vida se chama pavor.


Afinal de contas, é mesmo ao meu corpo que pertenço; dele não devo afastar-me muito, sem risco de me dissolver para sempre.


Francamente, o que não me agrada é ser o usufrutuário único deste local. Se uma só andorinha não faz verão - disseram os rapazes -, uma única sepultura não devia fazer cemitério. Deram para chegar atrasados e abatidos ao eito. Põem-se a sorrir quando encontram as velhas. Elas não compreendem, sentem-se satisfeitas com o seu cemitério.


O Fundador desconfia, mas finge que não sabe. E para ter a certeza, usa um estratagema:


— Para apanhar?


— Que jeito! Não temos onde treinar...


— Então? Ficou de pé o desafio?


— Nós jogaremos assim mesmo.


— Por que não falam com a professora? Ela tem a chave do portão.


— Mas só abre quando vai rezar lá dentro.


— Para um morto que não conhecem... acrescentou o outro.


— É isso mesmo, exclama o Fundador. Inventaram a morte no Arraial Novo!


As velhas, de fato, não largam o cemitério. Entram ao cair da tarde e se ajoelham. Não rezam por mim, rezam pelo futuro defunto, rezam para a morte. Há pouco, entrou a professora. Debruçada sobre a sepultura não fez senão murmurar:


— José, meu José...


Ora, eu não me chamo José... Esqueci meu nome, é verdade; mas sei que não era José...


Razão tem o Fundador. O espírito da morte apoderou-se do Arraial. Ainda ontem senti isso quando estive pousado nos arbustos da pracinha. Todo mundo silencioso e triste, aguardando a abertura da igreja. Só não vi os rapazes. É o cemitério, pensei; é a minha presença!


De alguns dias para cá, se uma parte da população se entrega aos trabalhos de rotina, a outra se ocupa em interrogar a alma.


As velhas dizem que se alguma dúvida houver, é só passar a noite pelas imediações. Ouvem-se barulhos estranhos, estrupidos de correria. E se não fosse o rumor dos moinhos, todo o arraial poderia escutar. Ao saber disso, tomou-se a população de certo orgulho: já havia fantasmas no cemitério do Arraial Novo!


Um defunto extranumerário, um simples tropeiro tivera a força de transformar em campo-santo uma área terraplenada, logradouro inexpressivo antes.
Que todos respeitassem agora o cemitério com as almas que nele transitam!...


Essas almas eram quase sempre vinte e duas, fora as que permaneciam a certa distância, olhando apenas. Escalavam o muro e, uma vez lá dentro, vestiam depressa os calções.


As lavadeiras que passavam perto mal ouviam o barulho, saíam correndo. Se tivessem coragem de verificar, poderiam reconhecer vultos familiares sob o projetor da lua cheia.


Eu adorava ficar ali. Acompanhava o movimento do jogo. Torcia. Metia-me no meio dos jogadores. Só faltava gritar. Não sei como ninguém dava pela minha presença. A bola saltava às vezes o muro e ia aninhar-se no capinzal de fora. Um dos jogadores cobria-se de uma capa escura e saía a buscá-la. O jogo então recomeçava forte. De repente, fora de propósito, parava.


— Que houve? quem apitou?


Ninguém apitara. Era eu que soprara no apito do juiz. Muitas e muitas vezes intervinha sem que ninguém soubesse, só para animar, só para mostrar que me achava ali, vendo, participando. Substituído o juiz, as marcações continuavam desencontradas. Ninguém desconfiava. Antes de raiar a madrugada, esvaziava-se o campo. Os "fantasmas" seguiam para o eito e eu ficava... Ficava...


Era bem triste, à hora quente dos comentários, continuar sozinho ali.


Deliciava-me só de pensar em novas noites de jogo. Às vezes os rapazes demoravam, e eu me tornava impaciente. Primeiro, atiravam a bola. Sabia então que estavam perto, preparando-se para a escalada. A bola corria até para junto de minha sepultura. Despertado do sono, eu subia depressa no muro e, sem garganta, sem voz, punha-me a chamá-los. Iniciava-se então mais uma partida animada.


Evitei repetir a proeza do apito, não só porque podia afugentar os jogadores, privando-me do espetáculo, como pelo receio de submeter a uma prova infeliz a força cada vez menor de meus fluidos.


As velhas já desconfiavam. Não todas. E, por certo, nenhuma, se a professora não deparasse com a minha cruz de madeira caída ao chão. Culpa dos rapazes que se esqueceram de recolocá-la quando, da última vez, fugiram do sol que raiara depressa.


— Fantasma não faz isso, disse a professora, suspeitosa. Quem teria sido?


As mulheres foram de novo queixar-se ao Fundador:


— Isso não é comigo. Falem com D. Maria, mas depois que nascer a criança, pois a minha velha já está em dores.


— Mas jogaram uma bola na cruz! É uma profanação! exclamava a professora.


— Deve ter sido algum fantasma, explicava um dos rapazes.


— Ou então chutaram de fora, disse outro.


— O muro não deixa, insistiu uma das mulheres.


— Só se foi um tiro de parábola e aqui ninguém sabe chutar assim...


— O Zequinha, lembrou o coveiro, chuta suspendendo a bola.


Ora, todo mundo sabe que Zequinha fugiu com a mulher do vereador. Jogava tão bem, que ela fugiu com ele...


Os rapazes só contavam agora com a mediação de Dona Maria que não estava bem, depois que lhe nascera a criança.


Daí por diante, nunca mais se bateu bola no cemitério. Reforçada a vigilância, meus fantasmas não apareciam.


Fiquei mais triste. Agora, nem para voar até o arraial tenho força. Para nada, aliás, tenho mais forças.


Já não percebo bem o que se passa atrás dos muros. A paisagem se dissolve ao meu olhar que está se apagando.


Parece que ainda resta para os ouvidos um canto de lavadeira batendo roupa. Tão longe...
Mas está acontecendo qualquer coisa lá na entrada. O portão se abriu todo! O povo chegando!...
Ah, é a senhora?! Pois entre, a casa é sua... Eu, sozinho, já não podia responder por todo este cemitério. Estou sumindo... O espaço endureceu. Meu prazo terminou.


Só vejo figuras opacas imobilizadas no gesto de chutar a bola. E essa coisa fixa, mancha final de luz remota que deve ser o Sol.


Entre, Dona Maria. Sirva-se de seu cemitério...



Aníbal Machado

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

A de sempre


— Até beber cerveja ficou difícil — queixa-se.


— O preço?

— Não. A variedade. O embaras du choix.

— Mas se você já estava acostumado com uma...

— E as novas que aparecem? Em cada Estado surge uma fábrica, se não surgem duas. Cada qual oferecendo diversas qualidades. Você senta no bar de sua eleição, um velho bar onde até as cadeiras conhecem o seu corpo, a sua maneira de sentar e de beber. Pede uma cervejinha, simplesmente. Não precisa dizer o nome. Aquela que há anos o garçom lhe traz sem necessidade de perguntar, pois há anos você optou por uma das duas marcas tradicionais, e daí não sai. Bem, você pede a cervejinha inominada, e o garçom não se mexe. Fica olhando pra sua cara, à espera de definição. Você olha para cara dele, como quem diz: Quê que há, rapaz? Então ele emite um som: Qual? Você pensa que não ouviu direito, franze a testa, num esforço de captação: qual o quê? Qual a marca, doutor? Temos essa, aquela, aquela outra, mais outra, e outra, e outras mais. . Desfia o rosário, e você de boca aberta: Como? Ele está pensando que eu vou beber elas todas? Acha que sou principiante em busca de aventura? Quer me gozar? Nada disso. O garçom explica, meio encabulado, que a casa dispõe de 12 marcas de cerveja nacional, fora as estrangeiras, sofisticadas, e ele tem ordem de cantar os nomes pra freguesia. Até pra mim, Leovigil? pergunto. Bem, o patrão disse que eu tenho de oferecer as marcas pra todo mundo, as novas cervejas têm de ser promovidas. Não mandou abrir exceção pra ninguém, eu é que, em atenção ao doutor, fiquei calado, esperando a dica... Não quis forçar a barra, desculpe.

— E aí?

— Aí eu disse que não havia o que desculpar, ordens são ordens e eu não sou de infringir regulamentos. Os regulamentos é que infringem a minha paz, freqüentemente. Mas para não dar o braço a torcer, nem me declarar vencido pela competição das cervejas, concluí: Leovigil, traga a de sempre.

— Não quis dizer o nome?

— Não. Minha marca de cerveja — "minha garrafa", digamos assim, pois a individualidade começa pela garrafa — passou a chamar-se "a de sempre". Não gosto de mudar as estruturas sem justa causa, nem me interessa dançar de provador de cerveja, entende?

— Mas que custa experimentar, homem de Deus?

— Só por experimentar, acho frívolo. Os moços, sim, não encontraram ainda sua definição, em matéria de cerveja e de entendimento do mundo. Saltam de uma para outra fruição, tomam pileques de ideologias coloridas, do vermelho ao negro, passando pelo róseo, pelo alaranjado e pelo furta-cor. Mas depois de certa idade, e de certa experiência de bebedor, você já sabe o que quer, ou antes, o que não quer. Principalmente o que não quer. E é isso que os outros querem que você queira. Tá compreendendo?

— Mais ou menos.

— Na verdade, não há muitas espécies de cerveja, no mundo das idéias. Mas os rótulos perturbam. Uns aparecem com mulher nua, insinuando que o gosto é mais capitoso. Bem, até agora não vi rótulo de cerveja mostrando mulher com tudo de fora, mas deve haver. Mulher se oferecendo está em tudo que é produto industrial, por que não estaria nos sistemas de organização social, como bonificação?

— Você está divagando.

— Estou. Divagar é uma forma de transformar pensamentos em nuvem ou em fumaça de cigarro, fazendo com que eles circulem por aí.

— Ou se percam.

— E se percam. Exatamente. 0 importante não é beber cerveja, é ter a ilusão de que nossa cerveja é a única que presta.

Sujeito mais conservador! Ou sábio, quem sabe?



Carlos Drummond de Andrade


Texto extraído do livro “De notícias & não notícias faz-se a crônica”, Livraria José Olympio Editora – Rio de Janeiro, 1974, pág. 137.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

A Eloquência e o Brasileiro

A eloqüência marca Sloper que nos desgraça é com certeza resultado da preocupação de fazer literatura a muque. Entre nós quase toda a gente pensa que literatura é arrevezamento, ginástica verbal, ilusionismo imaginoso, hipérbole sublime. E devido a isso mesmo há no Brasil muitos cavalheiros que falam mas poucos que dizem. Falam até debaixo d'água. Não dizem coisa nenhuma. De tal forma que hoje em dia o conceito de literatura é até pejorativo.

— Não presta para nada esse artigo. É só literatura.

Aí está. A culpa é inteirinha dos que a ela se dedicam, banalizando-a, pondo-a ao alcance de toda a gente, com o objetivo de embasbacar até um limpador de trilhos da Light.

* * *

Aliás para ser franco, ninguém se diverte mais do que eu com as asneiras dengues e sonoras dos oradores de minha terra. Sou leitor fanático dos apanhados jornalísticos das sessões no nosso Congresso, na nossa Câmara Municipal, das excursões políticas, das reuniões de agricultores, comerciantes e homens de letras, de todas as assembléias, de todas as festanças e comemorações discursadas.

Leitura ainda mais hilariante que a dos livros de Jerome K. Jerome. Nem se compara.

Entre os nossos vereadores e parlamentares, principalmente, há cada campeão em matéria de retórica edição Quaresma da gente ficar de boca aberta. Até entrar mosca. É verdade.

Pessoal danado para dizer bobagem com ênfase. Nunca vi. A idéia vem sempre vestida de cores escandalosas, amarrada com laçarotes de penteado de negra, toda arranjadinha para dar bem na vista.

Todos os discursos têm um trechinho imutável que eu não me canso de saborear. É quando o orador alude humildemente à miséria cearense dos seus dotes oratórios.
É assim:

O Sr. Sesostris da Cunha — Embora reconheça, Sr. presidente, que minha desautorizada voz, tão desafeita à tribuna, vem quebrar a harmonia (não apoiados gerais).

O Sr. Amazonas Neto — V.ex. é um belo orador. Todos nós o ouvimos sempre com imenso prazer (apoiados gerais).

O Sr. Sesostris da Cunha — Muito obrigado a v. ex. Como ia dizendo, Sr. presidente, sem embargo...

Delicioso. E fatal. Mas, sobretudo, delicioso.

* * *

Eu sei que estou sendo irritante. Paciência. Sei perfeitamente que nesta terra o que eu estou fazendo se chama falar mal. Paciência. É sempre melhor do que falar bem. Compreendam-me.

João Filipe, que foi ministro de Floriano e hoje é professor jubilado da Politécnica do Rio, velhinho moço de sarcasmo estupendo, desabafou certa vez comigo:

— Eles são bestas e não querem que a gente tome nota.

Eu tomo, sim.
Alcântara Machado

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Alegrias da paternidade


Tenho certeza de que inventaram esse negócio de Dia dos Pais, Dia das Mães, Dia dos Namorados e assemelhados com o exclusivo propósito de atanazar o juízo do grupo, numeroso porém desprezado, em que me integro, ou seja, o dos que acham essas datas apenas ocasiões para exercícios de sadomasoquismo e solapamento da já combalida estrutura familiar. Sei de dezenas e dezenas de namoros acabados e casamentos atormentados porque um infeliz se esqueceu de uma dessas datas. (As infelizes, curiosamente, não costumam esquecer-se — deve ser algum golpe delas; está fora da moda, mas mandam os antigos não menosprezar o Eterno Feminino, os antigos sabiam das coisas.) Eu mesmo só lembrei que hoje é Dia dos Pais (escrevo com cruel antecedência, é bom sempre observar) porque andei folheando uma agenda.

Queridos confrades, pais, que nos espera hoje? As possibilidades são infindas, mas há categorias em que a maior parte pode ser enquadrada, sob diversos critérios. Penso primeiro (dei muito para pensar em velho ultimamente, bandeira grande) nos avôs, que, como as avós, reúnem todas as forças para não meter a mão na cara do centésimo sujeito que o chama de "pai duas vezes", achando que está fazendo um comentário original e engraçadíssimo. E, claro, com heróicas e escassíssimas exceções, os dessa faixa já chegaram ao doloroso estágio em que todo mundo manda, menos eles, e muito menos neles mesmos.

— Vô, vamos almoçar fora em sua homenagem. Aonde o senhor quer ir?

— A uma churrascaria. Uma churrascariazinha, há muito tempo que não vou.

— Churrascaria? Mas nunca! O senhor já se esqueceu do colesterol, esqueceu a angioplastia? O senhor não se quer bem, mas nós queremos bem ao senhor!

— Então por que perguntam?

— É porque hoje é seu dia, paizão, é tudo para seu bem-estar e felicidade.

Claro, vão levá-lo ao restaurante de não-fumantes em que servem saladas de aspecto malevolente e onde vão deixar — fantástica colher de chá, tudo para a felicidade dele — que ele tome um copinho de vinho, daquele branco doce que a Eulália, sua nora mais carinhosa, adora. E virão os brindes, todos sublinhando, com inquietante ênfase numa convicção obviamente falsa, os muitos e muitos outros dias dos pais que ainda se celebrarão na companhia do homenageado. E, na seqüência de tributos que lhe serão prestados, consentirão que fique na sala até a hora do "Sai de baixo", pois normalmente é forçado a ir dormir depois do "Fantástico", não só porque o médico aconselhou, como porque, e principalmente, a velha (que fuma e dorme na hora em que quer) tem ciúme das pernas da Marisa Orth.

Quanto às ganas de pisotear e jogar no vaso o celularzinho indecifrável que lhe deram, passam logo no dia seguinte e ele dá o celular ao neto, o que, aliás, era o verdadeiro objetivo do presente.

Sejamos igualmente solidários para com os pais separados. Normalmente, domingo já é dia de pai separado sair com os filhos, a maior parte comendo apaixonadamente pizza fria e indo a lugares de cuja existência jamais tomaria conhecimento, se não fosse pai separado.

Pai junto pode bocejar e dizer ao moleque que vá pastar, vá surfar ou vá para um quarto acusticamente isolado, caprichar no progresso de sua surdez heavy metal. Mas pai separado tem gravíssimos encargos, notadamente se se filia à escola entusiástico-companheirona, que implica risos alvares, gritos de "vamos lá, filhão!", trajes grotescos, músculos e juntas aos frangalhos, papos de homem para homem em que o homem acaba sendo o filho e pedidos gaguejantes a senhoras desconhecidas, para que levem a filha ao banheiro feminino. Para não falar nos presentes, todos escolhidos a dedo pela ex-mulher entre tudo o que ele não gosta, preferivelmente algo que o presenteador exija que ele use na hora, como um par de óculos escuros de boiola e um walkman vermelho e azul, do tamanho e peso de uma bateria de automóvel.

Os prejuízos para as finanças familiares são às vezes consideráveis. Um amigo meu festejou durante um mês a excursão à Europa, para ele e a patroa (sozinho não tem graça e, embora tenha tido que passar a maior parte do tempo em lojas e ouvindo comentários sobre como Florença realmente é uma bela cidade, mas enche o saco logo e o comércio é péssimo, não chega aos pés de Miami, conseguiu, afinal, viajar para fora do país), para em seguida descobrir a chegada dos carnês de pagamento da agência de turismo, todos em seu nome, é claro. Claro, sim, ele tinha dinheiro guardado, a vida é curta, por que se privar de um sonho só para conservar os trocados da velhice? E ele não reclamou, tem umas duas músicas compostas e vai ver se descola uma vaga no Retiro dos Artistas.

De minha parte, sofro grandes sobressaltos com os anúncios de televisão, principalmente os dos aparelhos de ginástica (venho murchando a barriga com afinco desde que me lembraram a chegada do dia de hoje, espero escapar) e, nas raras vezes em que o controle está sob meu controle, mudo de canal. Mas é a velha paranóia, na verdade não tenho muito o que temer. Vou ganhar uma bermuda e um par de sandálias, se bem que minhas camisas de ir à Academia "estão uma vergonha" e talvez eu receba novos instrumentos de estrangulamento parcelado. Nada como a alegria do Dia dos Pais. Pelo menos quando se é dono de shopping ou churrascaria, imagino eu.

João Ubaldo Ribeiro



Texto extraído do livro “O Conselheiro Come” Editora Nova Fronteira – Rio de Janeiro, 2000, pág. 163.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

O hipocondríaco

Em tempo de remédios falsificados e laboratórios incompetentes, vale lembrar deste consumidor compulsivo que faz da bula Bíblia: o hipocondríaco. Ele padece do mal de ter mania de doenças e adora tomar remédios. Ao passar à porta da farmácia não resiste e pergunta: "O que tem de novidade?"
Nada mais ofensivo ao hipocondríaco do que erguer um brinde e desejar-lhe "saúde!". Ele só freqüenta coquetel de vitaminas. Encara sempre o interlocutor com aquele olhar de quem diz: "ando sentindo coisas que você nem imagina". No telefone, faz voz de vítima. Cara a cara, suplica, silente, a compaixão alheia.
Está sempre entrando ou saindo de uma gripe; já tomou todas as vacinas; sofre da coluna; padece de insônia; e trata médico como faz com motorista de táxi: "Tá livre?"
O hipocondríaco entra na Justiça exigindo mandado de prisão contra os radicais livres e duvida que alguém possa imaginar o tamanho da enxaqueca que teve ontem. Enquanto outros fazem shopping, o prazer do hipocondríaco é visitar drogarias de vitaminas importadas. Ingere pela manhã o abecedário em drágeas e nunca se deita sem antes tomar um chá de ervas.
Hipocondríaco não tem plano de saúde; prefere cota de cemitério. Gosta de se separar da família para morrer de saudades. E fica doente de raiva quando alguém diz que ele aparenta boa saúde.
O autêntico hipocondríaco carrega sempre uma dorzinha de lado, uma unha encravada, uma afta na boca, uma irritação na garganta, uma dor na coluna e umas tonturas estranhas.
Para o hipocondríaco, esposa ideal é a que banca a enfermeira; cadeira confortável é a de rodas; e cama macia, a de hospital.
O hipocondríaco é a única pessoa que, pelo som, distingue sirene de ambulância da de viatura de polícia e de bombeiro.
O guru do hipocondríaco é Hipócrates, e sua filosofia se resume nesta questão metafísica: "Se a gente nasce deitado e morre deitado, por que não viver deitado?"
O hipocondríaco morre de medo da vida saudável. Está convencido de que a diferença entre o médico e ele é que o primeiro conhece a teoria e, o segundo, a prática. Nunca pergunte a ele: "Vai bem?" É preferível: "Melhorou?"
O hipocondríaco só assina revistas médicas e, nos jornais, lê primeiro o obituário. Mas, ao contrário do que se pensa, o hipocondríaco não quer morrer — isto o curaria de sua loucura.
Nunca convide um hipocondríaco a matricular-se numa academia de ginástica. Ofereça-lhe um check-up. Os únicos exames que ele aceita fazer são os clínicos e adora ser reprovado. Se faz cooper, a perna dói; se pratica natação, fica resfriado; se flexiona o abdome, sente dor nas cadeiras.
O hipocondríaco escuta o médico com a mesma atenção que o bêbado ouve os conselhos do abstêmio. A turma do hipocondríaco se reúne em porta de farmácia e tira férias em clínicas de repouso.
O hipocondríaco é o único paciente que consegue decifrar letra de médico. Ele não se recolhe para dormir, e sim para repousar. Nunca deseje "bom-dia" a um hipocondríaco; pergunte: "Levantou melhor?" Aliás, ele não se levanta; tem alta. No aniversário, dê a ele um vidro de remédios. Todo hipocondríaco é viciado em aspirina, vitamina C e melatonina.
O hipocondríaco sabe dar nó nas tripas e acredita que o melhor lazer é curtir uma diverticulite. Considera incompetente todo médico que diz que ele não tem nada.
O hipocondríaco acredita em tudo que a mídia fala sobre cuidados com a saúde.
Quando viaja, não se hospeda; se interna. No bolso de dentro do paletó ele não carrega caneta, mas termômetro. E é a única pessoa capaz de enxergar vírus e bactérias em talheres de restaurantes.
Sonho de hipocondríaco é ser socorrido por um daqueles helicópteros UTI que aparecem na TV. E sempre reclama de que já existem telessexo, telepiada, telepizza, telessorteio, só falta o teledoença: você liga, descreve os sintomas e, do outro lado da linha, uma voz de médico prescreve a medicação.
Deve ter sido um hipocondríaco quem deu ao remédio que combate infecções o nome de antibiótico — que significa "contra a vida".
O hipocondríaco não tem remédio. Ele só se cura quando morre e, paradoxalmente, a morte é o sintoma mais óbvio de que ele tinha razão. Pena que não possa levantar-se do caixão e enfiar o dedo na cara de quem o tratava pejorativamente como hipocondríaco. De qualquer modo, repare como ele, defunto, traz um sorrisinho de vitória nos lábios.
Frei Betto

segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

O livro da solidão

Os senhores todos conhecem a pergunta famosa universalmente repetida: "Que livro escolheria para levar consigo, se tivesse de partir para uma ilha deserta...?"

Vêm os que acreditam em exemplos célebres e dizem naturalmente: "Uma história de Napoleão." Mas uma ilha deserta nem sempre é um exílio... Pode ser um passatempo...

Os que nunca tiveram tempo para fazer leituras grandes, pensam em obras de muitos volumes. É certo que numa ilha deserta é preciso encher o tempo... E lembram-se das Vidas de Plutarco, dos Ensaios de Montaigne, ou, se são mais cientistas que filósofos, da obra completa de Pasteur. Se são uma boa mescla de vida e sonho, pensam em toda a produção de Goethe, de Dostoievski, de Ibsen. Ou na Bíblia. Ou nas Mil e uma noites.

Pois eu creio que todos esses livros, embora esplêndidos, acabariam fatigando; e, se Deus me concedesse a mercê de morar numa ilha deserta (deserta, mas com relativo conforto, está claro — poltronas, chá, luz elétrica, ar condicionado) o que levava comigo era um Dicionário. Dicionário de qualquer língua, até com algumas folhas soltas; mas um Dicionário.

Não sei se muita gente haverá reparado nisso — mas o Dicionário é um dos livros mais poéticos, se não mesmo o mais poético dos livros. O Dicionário tem dentro de si o Universo completo.

Logo que uma noção humana toma forma de palavra — que é o que dá existência ás noções — vai habitar o Dicionário. As noções velhas vão ficando, com seus sestros de gente antiga, suas rugas, seus vestidos fora de moda; as noções novas vão chegando, com suas petulâncias, seus arrebiques, às vezes, sua rusticidade, sua grosseria. E tudo se vai arrumando direitinho, não pela ordem de chegada, como os candidatos a lugares nos ônibus, mas pela ordem alfabética, como nas listas de pessoas importantes, quando não se quer magoar ninguém...

O Dicionário é o mais democrático dos livros. Muito recomendável, portanto, na atualidade. Ali, o que governa é a disciplina das letras. Barão vem antes de conde, conde antes de duque, duque antes de rei. Sem falar que antes do rei também está o presidente.

O Dicionário responde a todas as curiosidades, e tem caminhos para todas as filosofias. Vemos as famílias de palavras, longas, acomodadas na sua semelhança, — e de repente os vizinhos tão diversos! Nem sempre elegantes, nem sempre decentes, — mas obedecendo á lei das letras, cabalística como a dos números...

O Dicionário explica a alma dos vocábulos: a sua hereditariedade e as suas mutações.

E as surpresas de palavras que nunca se tinham visto nem ouvido! Raridades, horrores, maravilhas...

Tudo isto num dicionário barato — porque os outros têm exemplos, frases que se podem decorar, para empregar nos artigos ou nas conversas eruditas, e assombrar os ouvintes e os leitores...

A minha pena é que não ensinem as crianças a amar o Dicionário. Ele contém todos os gêneros literários, pois cada palavra tem seu halo e seu destino — umas vão para aventuras, outras para viagens, outras para novelas, outras para poesia, umas para a história, outras para o teatro.

E como o bom uso das palavras e o bom uso do pensamento são uma coisa só e a mesma coisa, conhecer o sentido de cada uma é conduzir-se entre claridades, é construir mundos tendo como laboratório o Dicionário, onde jazem, catalogados, todos os necessários elementos.

Eu levaria o Dicionário para a ilha deserta. O tempo passaria docemente, enquanto eu passeasse por entre nomes conhecidos e desconhecidos, nomes, sementes e pensamentos e sementes das flores de retórica.

Poderia louvar melhor os amigos, e melhor perdoar os inimigos, porque o mecanismo da minha linguagem estaria mais ajustado nas suas molas complicadíssimas. E sobretudo, sabendo que germes pode conter uma palavra, cultivaria o silêncio, privilégio dos deuses, e ventura suprema dos homens.
Cecília Meireles

(SÃO PAULO, FOLHA DA MANHÃ, 11 DE JULHO DE 1948.)


quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

A crônica

Crônica, do grego chrónos, tempo, cronicar, feito Tácito, relatar o tempo ou tempos.

Por que nós, brasileiros, fizemos do gênero especialidade da casa — feito muqueca de peixe ou tutu à mineira?

Eu, pela parte que me cabe — e é pouquíssima a parte que me cabe —, eu tenho minhas teoriazinhas.

Primeiro lugar, porque nós trabalhamos bem com poucas armas, isto é, Euclides da Cunha à parte, nosso fôlego literário é curto.

Não há nenhum demérito nisso.

Se a América Latina fornece caudalosos escritores, como Vargas Llosa, Roa Bastos e Alejo Carpentier, nós, por outro lado, somos excelentes no pinga-pinga do conto: o próprio Machado de Assis, Lima Barreto, Alcântara Machado, Dalton Trevisan, Clarice Lispector, Rubem Fonseca.

Segundo lugar, porque nós temos consciência da extraordinária violência com que o tempo vai levando as coisas e as gentes, daí a necessidade de registrar, de alguma forma, o que se passou e passa no âmbito pessoal e intransferível.

Terceiro lugar, em conseqüência disso que acabei de falar: somos muito pessoais, vemos e vivemos muito a nossa vida e a celebramos quase que no próprio instante em que ela se passa.

A crônica é a nossa autobustificação, por assim dizer.

Ou, em termos da realidade atual: é a nossa autonomeação para assessor disso ou secretário daquilo outro.

E em quarto e último lugar: dinheiro.

Não há motivo nenhum para se ficar encabulado.

Quem não escreve por dinheiro não é digno da profissão.

Um romance vende cinco mil exemplares e o autor, com alguma sorte, pega o equivalente a uns tantos salários mínimos.

Se dividirmos tempo gasto no trabalho e na vida de estante do livro, vai dar nisso mesmo: salário mínimo.

O cronista, por outro lado, mesmo mal pago — e quando é bom não é esse o caso —, tem uns cobres garantidos no fim do mês, se o empregador for bom pagador.

Conseqüentemente: aí está, viva e atuante, a crônica do cronista brasileiro.

Pouco importa que o cronista ou a cronista limite-se a relatar seu encontro no bar ou sua ida ao cabeleireiro.

Tanto faz que seja elitista ou literariamente limitador.

E daí que tenha menos profundidade que mergulhadores mais audazes como Milan Kundera e Marion Zimmer Bradley?

A crônica vai registrando, o cronista vai falando sozinho diante de todo mundo.

Ivan Lessa.


Ivan Lessa fez parte do grupo que colaborou e que, durante muito tempo, fez sucesso no jornal "O Pasquim". Carioca, filho de Orígines Lessa e Elsie Lessa, escreve com sucesso, valendo-se de um humor cheio de ironias. Auto-asilado na Inglaterra, segundo ele por ter-se desencantado com o Brasil, trabalha na BBC de Londres. O texto acima consta do livro "Ivan vê o mundo", Editora Objetiva — Rio de Janeiro, 1999.