terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Brincando de doutor


Foi minha mãe quem me deu o estojo de médico. Tinha um estetoscópio, um esfignomanômetro, uma seringa de injeção, uma daquelas lâmpadas de amarrar na cabeça que eu nunca usei, um termômetro e mais uns quatro ou cinco aparelhos, para cuja aplicação eu sempre pedia a minhas clientes que tirassem as calças. Interessante que minha mãe nunca tivesse cogitado das possibilidades de um estojo de médico. É claro que ela não sabia que a maior parte de minhas brincadeiras era de safadeza. Quem começou com este negócio não fui nem eu, foi uma vizinha, quando nós resolvemos brincar de esconder. Nós dois estávamos abaixados no socavão e aí ela passou a mão aqui por debaixo. Desse dia em diante, todo brinquedo meu passou a ser de safadeza e a melhor coisa que eu dizia era que todo mundo tinha de ver o negócio de todo mundo, assim: se você me mostrar o seu negócio, eu lhe mostro o meu negócio. Foi nessa época que eu descobri que a melhor coisa é ser especialista. Se você é generalista, pode ficar um pouco chato pedir à cliente que mostre o negócio. Se você é especialista, ela espera isso. Mas eu era muito burro e muito ignorante, nessa ocasião, para perceber essas vantagens. Não sei se você se lembra como eram as coisas em Aracaju, naquela época.

Não sei nem se você se lembra que nós dois ficávamos conversando a respeito de meu pai e minha mãe não serem mais nem meu pai nem minha mãe e você dizendo a mesma coisa. Não sei se você se lembra que todos os dois fomos ver o negócio de Suzana e, quando ela foi mostrar à gente, sentada na escada, fungando e usando umas calçolas de cadarço, a gente olhou mas ficou com vergonha de ter olhado e você disse: bem que minha mãe falou, essa coisa suja, essa coisa imunda — você se lembra que eu peguei e ela deu risada se sacudindo toda? Você ficava falando, depois da aula de catecismo: se tem que feder assim, o melhor mesmo é ser padre. O pior das coisas das meninas, segundo Dodô, era quase que eram compostas de pelancas e coisas pendurantes e ainda exalavam, não eram uns buracos, que a gente pudesse ver que era somente um buraco e não ter complicação. Dodô dava explicações: o buraco da mulher fica no meio das pernas, por debaixo, e ela só dá para quem quer, a não ser com porrada e olhe lá.

Dodô, aliás, quero que você se lembre da importância de Dodô para toda essa transação. Ia perguntar se você se lembrava das palestras de Dodô, quando ele fazia conferências para nós todos. Foi Dodô quem primeiro explicou — você tem visto Dodô? você acha que ele pode ter melhorado da escoliose? melhorou nada, aquele anão — que o menino é feito por via de o pai enfiar-se pela mãe. Isso tudo era muito chocante. Traz à memória um colega patologista amigo meu, que era patologista porque só gostava de cadáver, que olhou os espermatozóides no microscópio e disse: meu pai nunca vai acreditar nisto, ele pode ver à vontade que não acredita. E minha mãe nem consentiria em olhar no microscópio, quanto mais. Você sabe, disse esse patologista, eu vejo aqui os espermatozóides, vejo tudo o que li nos livros, mas não acredito que foi assim? Não acredito, diz esse patologista, que meu pai e minha mãe tenham ido para a cama dessa maneira. Eu devo ter sido geração espontânea.

Era a mesma coisa que no tempo de Dodô, a gente também não acreditava. Inclusive, Dodô explicava que os meninos feios vêm do fato de que, na hora de fazer esses filhos, o pai contorce a cara toda. Para fazer um menino bonito, esclarecia Dodô, é preciso que o sujeito fique com a cara bem ancha e descansada. E ele fazia uma cara dessas, para dar o exemplo. Entretanto, acrescentava que pouca gente resiste ao gozo e então faz caretas as mais medonhas. Eu mesmo, quando trepo, dizia Dodô, faço cada careta que às vezes a mulher tem medo. E a gente ficava acreditando que Dodô trepava mesmo e todos nós queríamos saber como era o gozo. O gozo, mestre, vai repuxando, repuxando — explicava Dodô — e a pessoa faz assim: ssfff, sssfff, inclusive você conhece se a mulher está gozando vendo se ela faz ssfff ou não.

Quando meu estojo de médico chegou, eu já dava algumas consultas, mas tudo muito empírico. A maioria das meninas exigia uma certa respeitabilidade, de forma que ficava difícil fazer com que elas tirassem as calças, se tudo o que você tinha era um pedaço de pau e umas folhas para servirem de instrumentos. Além de tudo, de vez em quando eu passava esse pedaço de pau com força nas barrigas das meninas e elas não gostavam. Hoje eu sei que devia ser vontade de fazer uma histerectomia, dessas radicais. Eu tenho um amigo que já fez não sei quantas, estudou comigo na Bahia. Ele diz que não, mas eu tenho certeza de que ele adora fazer uma histerectomia, eu compreendo. Eu não faço, mas compreendo. Você acredita que eu assisti a uma laparoscopia e fiquei excitadíssimo? Eu acho ovário uma coisa linda, parece uma flor, uma espécie de tulipa, você não acha?

No começo, o consultório correu ótimo. Instalei tudo num dos dois quartos vazios do quintal e passava lá as tardes inteiras. O primeiro instrumento que eu aplicava era o estetoscópio, mas não havia graça, porque a maioria das meninas não tinha peito. O único peito que a gente via naquela época era naqueles quadros renascentistas que as revistas publicavam no Natal e, assim mesmo, só servia para a gente achar que ia para o inferno, porque a gente pensava que aquelas madonas eram mesmo Nossa Senhora. Só houve uma menina em que os peitos faziam diferença, porque os dela já tinham aquele carocinho. Eu belisquei e ela fez xixi nas calças. Eu brinco com o pessoal lá no Centro, digo que deve ser por isso que até hoje não posso ver um penico que não pense descaração. Brincadeira, brincadeira, mas você sabe que de fato existe alguma coisa num penico... bem, não sei. A maioria das casas, naquela época, tinha penico e uma das coisas mais dantescas, durante a noite, eram os adultos mijando nos penicos, lembro que minha avó mijava muito, eu ficava arrepiado e sentia uns pingos de mijo na cara, uma coisa horrível. Meu pai mijava em pé, fazendo pontaria no penico, e bodosava tudo em redor. Uma vez, ele me pegou mijando abaixado e me esculhambou. Você se lembra que o sujeito que mijava abaixado estava desmoralizado, mesmo que fosse para não regar o quarto todo? Até hoje o velho fala nisso, geralmente quando tem visita de Aracaju.

Então meu consultório corria bem. Normalmente, eu só dava consulta às meninas, mas, quando não havia clientes à disposição, nós fazíamos outras coisas. Jofre, por exemplo, que morava na rua do Cedro, trouxe uma vez um gato para nós operarmos. Para ele operar. Na época eu não sabia disso, mas eu era o clínico e ele era o cirurgião. Em matéria de cirurgia, até hoje eu prefiro assistir, principalmente quando há uma extirpação. Não sei se você já fez uma vivissecção de ovos de gatos. Jofre era muito bom nisso. Usava uma gilete e cortou os quibas do gato mais do que rente, um trabalho perfeito. Mas a gente se recusava a simplesmente capar o gato, de forma que havia várias solenidades, nós chamávamos o gato de cliente e tudo mais. Acabamos de cortar os ovos do gato e ficamos excitadíssimos. Perguntei a Jofre se aquilo era o gozo, mas ele disse que não era. De qualquer maneira, não deixou de ser uma lição o fato de que esse gato não ficou aborrecido com a operação e sempre voltava, a gente pegava nele com a maior facilidade. Quando a gente pegava, dava uma lavagem nele, com minha seringa de injeção, que tinha uma agulha rombuda de plástico. Sempre cito isso para esses caras que fazem psicanálise com esquizofrênicos, para mim os malucos são eles. Eu acredito em bolinha, sempre acreditei em bolinha — me dê um maluco, eu lhe dou uma bolinha, é tudo um problema químico. A verdade é que este é um campo que comporta muita besteirada.

A maioria das meninas cooperava perfeitamente. Eu sempre receitava uma injeção nas náguinas — eu dizia náguinas e até hoje acho mais bonitinho do que nádegas — e elas deixavam. Lembro perfeitamente que, quando eu descobria certas bundinhas, era uma sensação um pouco desconfortável, porque eu ficava trêmulo e não sabia distinguir entre os não sei quantos impulsos de me mexer que sentia, para a frente, para trás, para os lados, uma coisa horrível. Também ficava sem fôlego. Mas, depois da injeção nas náguinas, eu sempre reunia coragem para fazer uma espécie de exame ginecológico. Você sabe, até hoje eu não entendo como o sujeito pode ser ginecologista. Existe vocação para tudo neste mundo. É por isso que eu acredito na utilidade das perversões. Sem pervertidos, não haveria ginecologistas. Eu fazia mais por obrigação, porque, nessas brincadeiras de médico, o sujeito sempre age na base de tudo ao que tenho direito, parece que é uma espécie de ética da brincadeira. E depois eu não sabia mais o que fazer e ficava grandemente agoniado.

Você nesse dia quase vai, mas acabou não indo, porque quebrou a corrente da bicicleta e seu pai não deixou você sair, mas você se lembra que eu contei a Dodô a respeito de meu grande tédio nos exames ginecológicos e aí ele me explicou, com altos ares, que tudo aquilo acontecia porque minhas pacientes eram meninas. Que com gente grande era bastante diferente e, se eu tivesse oportunidade de ver uma verdadeira xoxota, madura, no ponto, eu ficaria deslumbrado, pois não havia homem neste mundo que não se tomasse de tremores, não sentisse as partes palpitarem e não se visse atraído como por um redemoinho para aquela maravilhosa gruta do prazer. Dodô falou "gruta do prazer", eu me lembro perfeitamente disto, você veja, pensando bem, como a nossa geração era mais culta, pela metáfora se conhece a cultura. Era domingo e nós fomos para uma casa grande na rua Duque de Caxias, onde os patrões não estavam porque tinham ido à Atalaia e estava a empregada que Dodô tinha acertado. Ele esclareceu que ela gostava de meninos assim de nossa idade. Ela disse que tem vontade de morder, falou ele. Eu não me esqueço disso, fiquei com vontade de pedir que ela não me mordesse e ao mesmo tempo tive vergonha. E não era pecado isso num domingo, não, heim, rapaz? Antes de chegar em casa, tinha de passar na igreja, lavar as mãos e a boca na água benta, que é para não pegar nem beijar na mãe assim, mãe é sagrada e os dedos caem e os beiços dão lepra e é inferno certo. Bem, se eu já estava nervoso, mais nervoso fiquei quando vi a mulher, porque ela nos levou para um quarto que parecia uma garagem e ficou fungando meu pescoço e passando a mão em mim. Dodô contou a história dos meus exames médicos. Ela aí deu risada e falou meu mediquinho, você é meu doutorzinho, quer fazer zamezinho na sua doentinha. Nessa hora ela rolou na cama, me puxando, mas as mãos dela escorregaram em minha nuca e eu fiquei sentado, de maneira que, quando ela caiu para trás, abriu as pernas e eu vi lá dentro. Lembro perfeitissimamente que era uma calçola meio marrom clarinho e eu não tive certeza de se era marrom claro ou branco encardido e bem no meio, garanto a você, havia uma mancha escura, como se estivesse molhado. Fiquei todo arrepiado, inclusive porque o meio das pernas dela e o jogo de sombras lá dentro me lembraram os desenhos do inferno, de uma edição da Divina Comédia que meu pai tinha. Eu pensei assim: e se, neste domingo, eu estiver indo para o inferno? Mas não disse nem fiz nada, fiquei ali na beira da cama, até que ela, depois de botar todos os balangandãs de Dodô, com tudo, na boca por um instante, se sacudiu para fora do vestido, como se estivesse explodindo. Eu vi Dodô nu, igual a um passarinho pelado, e logo depois só pude olhar a mulher, que ficou com os peitos enormes e de bicos pretos, bicos como lanças para fora balançando. Examine aqui, disse ela, e baixou as calçolas logo depois que desamarrou o cadarço. Você acredita que eu acho que tive febre naquela hora? E nisso está Dodô sem calça, no canto do quarto, tiritando, uma coisa esquisitíssima. Achei que notei uma espécie de língua no meio dos cabelos da mulher, na parte de baixo, e ela então caiu de costas na cama com as pernas abertas e — você sabe o que é um sujeito apavorado? Quer dizer, você tem alguma idéia de um cara em pânico? Quando eu vi aquilo, rapaz, e pareceu que subiu um cheiro, não tinha quem me fizesse chegar perto. Ela foi falando sobre o exame que eu tinha de fazer nela e eu fui ficando com medo, ficando com medo, que só me lembro ter descido correndo a Duque de Caxias, sem olhar para trás.

Acho que tive um certo trauma com isso. Até mesmo o consultório eu converti numa espécie de clínica veterinária, embora nunca tivéssemos tido um gato que concordasse tanto em ser capado e tomar lavagens quanto aquele. Por aí você pode ver como realmente os acontecimentos determinam as vocações. Sempre dizem que eu fui ser médico para satisfazer minha mãe, mas não é verdade, ela queria que eu fosse pediatra e acho tanto pediatras quanto geriatras uns anormais, uns cronoinvertidos. Não, não, se eu não fosse psiquiatra, eu seria proctologista. Mas não aqui em Aracaju.



João Ubaldo Ribeiro

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. (s.d.)

L. do D.

Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas. Talvez porque a sensualidade real não tem para mim interesse de nenhuma espécie - nem sequer mental ou de sonho -, transmudou-se-me o desejo para aquilo que em mim cria ritmos verbais, ou os escuta de outros. Estremeço se dizem bem. Tal página de Fialho, tal página de Chateaubriand, fazem formigar toda a minha vida em todas as veias, fazem-me raivar tremulamente quieto de um prazer inatingível que estou tendo. Tal página, até, de Vieira, na sua fria perfeição de engenharia sintáctica, me faz tremer como um ramo ao vento, num delírio passivo de coisa movida.

Como todos os grandes apaixonados, gosto da delícia da perda de mim, em que o gozo da entrega se sofre inteiramente. E, assim, muitas vezes, escrevo sem querer pensar, num devaneio externo, deixando que as palavras me façam festas, criança menina ao colo delas. São frases sem sentido, decorrendo mórbidas, numa fluidez de água sentida, esquecer-se de ribeiro em que as ondas se misturam e indefinem, tornando-se sempre outras, sucedendo a si mesmas. Assim as ideias, as imagens, trémulas de expressão, passam por mim em cortejos sonoros de sedas esbatidas, onde um luar de ideia bruxuleia, malhado e confuso.

Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa que me têm feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noite em que, ainda criança, li pela primeira vez numa selecta o passo célebre de Vieira sobre o rei Salomão. «Fabricou Salomão um palácio...» E fui lendo, até ao fim, trémulo, confuso: depois rompi em lágrimas, felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquele movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir das ideias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele assombro vocálico em que os sons são cores ideais - tudo isso me toldou de instinto como uma grande emoção política. E, disse, chorei: hoje, relembrando, ainda choro. Não é - não - a saudade da infância de que não tenho saudades: é a saudade da emoção daquele momento, a mágoa de não poder já ler pela primeira vez aquela grande certeza sinfónica.

Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico.Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.

Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha.



Fernando Pessoa

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Crônica nº. 1

Tanto neste nosso jogo de ler e escrever, leitor amigo, como em qualquer outro jogo, o melhor é sempre obedecer às regras. Comecemos portanto obedecendo às da cortesia, que são as primeiras, e nos apresentemos um ao outro. Imagine que pretendendo ser permanente a página que hoje se inaugura, nem eu nem você, — os responsáveis por ela, — nos conhecermos direito. É que os diretores de revista, quando organizam as suas seções, fazem como os chefes de casa real arrumando os casamentos dinásticos: tratam noivado e celebram matrimônio à revelia dos interessados, que só se vão defrontar cara a cara na hora decisiva do "enfim sós”.

Cá estamos também os dois no nosso "enfim sós" — e ambos, como é natural, meio desajeitados, meio carecidos de assunto: Comecemos pois a falar de você, que é tema mais interessante do que eu. Confesso-lhe, leitor que diante da entidade coletiva que você é, o meu primeiro sentimento foi de susto —, sim, susto ante as suas proporções quase imensuráveis. Disseram-me que o leitor de O CRUZEIRO representa pelo barato mais de cem mil leitores, uma vez que a revista põe semanalmente na rua a bagatela de 100.000 exemplares.

Sinto muito, mas francamente lhe devo declarar que não estou de modo nenhum habituada a auditórios de cem mil. Até hoje tenho sido apenas uma autora de romances de modesta tiragem; é verdade que venho há anos freqüentando a minha página de jornal; mas você sabe o que é jornal: metade do público que o compra só lê os telegramas e as notícias de crimes e a outra lê rigorosamente os anúncios. O recheio literário fica em geral piedosamente inédito. E agora, de repente, me atiram pelo Brasil afora em número de 100.000! Não se admire portanto se eu me sinto por ora meio “gôche”.

Dizem-me, também que você costuma dar sua preferência a gravuras com garotas bonitas a contos de amor, a coisas leves e sentimentais. Como, então, se isso não é mentira, conseguirei atrair o seu interesse? Pouco sei falar em coisas delicadas, em coisas amáveis. Sou uma mulher rústica,muito pegada à terra, muito perto dos bichos, dos negros, dos caboclos, das coisas elementares do chão e do céu. Se você entender de sociologia, dirá que sou uma mulher telúrica; mas não creio que entenda. E assim não resta sequer a compensação de me classificar com uma palavra bem soante.

Nasci longe e vivo aqui no Rio, mais ou menos como num exílio. Me consolo um pouco pensando que você, sendo no mínimo cem mil, anda espalhado pelo Brasil todo e há de muitas vezes estar perto de onde estou longe; e o que para mim será saudosa lembrança, é para você o pão de cada dia. Seus olhos muitas vezes ambicionarão isto que me deprime, — paisagem demais, montanha demais, panorama, panorama, panorama. Tem dia em que eu dava dez anos de vida por um pedacinho bem árido de caatinga, um riacho seco, um marmeleiral ralo, uma vereda pedregosa, sem nada de arvoredo luxuriante, nem lindos recantos de mar, nem casinhas pitorescas, sem nada deste insolente e barato cenário tropical. Vivo aqui abafada , enjoada de esplendor, gemendo sob a eterna, a humilhante sensação de que estou servindo sem querer como figurante de um filme colorido. Até me admira todo o mundo do Rio de Janeiro não ser obrigado a andar de “sarong”. Mas, cala-te boca; para que fui lembrar? Capaz de amanhã sair uma lei dando essa ordem.

Apesar entretanto de todas essas dificuldades, tenho a esperança de que nos entenderemos. Voltando à comparação dos casamentos de príncipe, o fato é que as mais das vezes davam certo. Não viu o do nosso Pedro II com a sua Teresa Cristina? Ele quase chorou de raiva quando deu de si casado com aquele rosto sem beleza, com aquela perna claudicante; porém com o tempo se acostumaram, se amaram, foram felizes, e ela ganhou o nome de Mãe dos Brasileiros. Assim há de ser conosco, que eu, se não claudico no andar, claudico na gramática e em outras artes exigentes. Mas sou uma senhora amorável, tal como a finada imperatriz, e de alma muito maternal. A política é que às vezes me azeda mas, segundo o trato feito, não discorreremos aqui de política. Em tudo o mais sempre me revelo uma alma lírica, cheia de boa vontade; eu sou triste um dia ou outro, não sou mal humorada nunca. E tenho sempre casos para contar, caos de minha terra, desta ilha onde moro; mentiras, recordações, mexericos, que talvez divirtam seus tédios.

Você irá desculpando as faltas, que eu por meu lado irei tentando me adaptar aos seus gostos. Quem sabe se apesar de todas as diferenças alegadas temos uma porção de coisas em comum?

Vez por outra hei de lhe desagradar, haveremos de divergir; ninguém é perfeito neste mundo e não sou eu que vá encobrir meus senões. Tenho as minhas opiniões obstinadas — você tem pelo menos cem mil opiniões diferentes — há, pois, muito pé para discordância.

Mas quando isso suceder, seja franco, conte tudo quanto lhe pesa. Ponha o amor próprio de lado, que lhe prometo também não fazer praça do meu. Lembre-se de que há um terreno de pacificação, um recurso extremo, a que sempre poderemos recorrer: fazemos uma trégua no desentendimento, procurando esquecer quem dos dois tinha ou não tinha razão; damos o braço e saímos andando por este mundo, olhando tudo que há nele de bonito ou de comovente: os casais de namorados nos bancos de jardim, o garotinho cacheado que faz bolos na areia da praia, a luz da rua refletida nas águas da baía, ou simplesmente o brilho solitário da estrela da manhã.

Depois disso, não precisaremos sequer de fazer as pazes; nos seus cem mil variadíssimos corações, como no meu coração único só haverá espaço para amizade e silêncio.

Há anos sei que é infalível o resultado da estrela da manhã.


Rachel de Queiroz


Esta é primeira crônica escrita por Rachel de Queiroz para a coluna “Ultima Página” na revista “O Cruzeiro”, em 01/12/1945. A escritora, que iniciou assinando “Raquel de Queiroz”, permaneceu na revista quase até suas portas serem fechadas. Esta preciosidade faz parte dos “Arquivos Implacáveis” de João Antônio Bührer, gentilmente enviada ao Releituras e pescado pelo blog Crônias e Cia.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Uma oração

Minha boca pronunciou e pronunciará, milhares de vezes e nos dois idiomas que me são íntimos, o pai-nosso, mas só em parte o entendo. Hoje de manhã, dia primeiro de julho de 1969, quero tentar uma oração que seja pessoal, não herdada. Sei que se trata de uma tarefa que exige uma sinceridade mais que humana. É evidente, em primeiro lugar, que me está vedado pedir. Pedir que não anoiteçam meus olhos seria loucura; sei de milhares de pessoas que vêem e que não são particularmente felizes, justas ou sábias. O processo do tempo é uma trama de efeitos e causas, de sorte que pedir qualquer mercê, por ínfima que seja, é pedir que se rompa um elo dessa trama de ferro, é pedir que já se tenha rompido. Ninguém merece tal milagre. Não posso suplicar que meus erros me sejam perdoados; o perdão é um ato alheio e só eu posso salvar-me. O perdão purifica o ofendido, não o ofensor, a quem quase não afeta. A liberdade de meu arbítrio é talvez ilusória, mas posso dar ou sonhar que dou. Posso dar a coragem, que não tenho; posso dar a esperança, que não está em mim; posso ensinar a vontade de aprender o que pouco sei ou entrevejo. Quero ser lembrado menos como poeta que como amigo; que alguém repita uma cadência de Dunbar ou de Frost ou do homem que viu à meia-noite a árvore que sangra, a Cruz, e pense que pela primeira vez a ouviu de meus lábios. O restante não me importa; espero que o esquecimento não demore. Desconhecemos os desígnios do universo, mas sabemos que raciocinar com lucidez e agir com justiça é ajudar esses desígnios, que não nos serão revelados.

Quero morrer completamente; quero morrer com este companheiro, meu corpo.


Jorge Luis Borges

segunda-feira, 13 de outubro de 2008


Ouve, namorada, vou te contar um segredinho. Dessas coisinhas que a gente não comenta com ninguém, e fica curtindo a vitória, bem lá no fundo do peito, mas com vontade de gritar pra todo mundo. E se gritar, as pessoas julgarão a vitória como resultado de uma atitude de mau caráter. Mas essa minha até que foi interessante e sem prejuízo de segundos ou terceiros.

Olha, antes de tudo, isso aconteceu e eu não te conhecia direito ainda, viu? Nós não nos víamos muito, acho que que nem era namoro. Por isso, não precisa começar com esse beicinho de zangada, tá?

Vê bem, presta atenção: tenho uma amiga chamada Rosa Maria. Alguns a chamam de Maria Rosa, mas prefiro a primeira forma, é mais fluente. E houve períodos em que, na rota da amizade, chegamos a derrapar em tratos mais íntimos, e não evitamos as derrapadas. Apesar disso, não colidimos pra valer. E era essa colisão que eu procurava. Que provocasse desajustes nos chassis, capotamentos, ferragens retorcidas. Pra valer mesmo!

Acontece que, por outra pista, Rosa Maria foi apresentada a Vinícius de Moraes. E morena que é, complexo estravagante de curvas e cheiros, não custou muito ao poeta, já no primeiro encontro, jogar-lhe um dengo e malícia sarrateiras sugestões de carinhos forradas com a promessa de um soneto especial. E o soneto ficou na promessa, e na cabecinha de Rosa Maria. Enquanto continuava em minha cabeça a tão almejada colisão.

Passado algum tempo, e sabedor de que uma tal noite eu me encontraria com Vinícius no teatro, ela me pediu que cobrasse dele o tal soneto que lhe prometera. E com forte emoção me falou de seu desejo de receber do poeta essa atenção incomum. E olhou-me deslizante, sem muito breque nas rodas.

- Se você conseguir, nem sei o que te dou!

Jurei a ela de olhos fechados que conseguiria o soneto. E vislumbrei aí a oportunidade de provocar a tão almejada colisão.

- Ah, nem sei o que te dou!

“Mas eu sei...” – Pensei.

Passei a ver várias formas poéticas semelhantes, para observar a métrica dos versos e a disposição das rimas. Enfim, compus o meu soneto de Vinícius de Moraes. Desenhei sua assinatura idêntica, pois eu a possuia em três escritos que ele me enviara durante os anos de nosso conhecimento.

Ao ler o soneto, Rosa Maria não cabia em si. Tirou da bolsa um guardanapo no qual Vinícius lhe dedicara uns versos. A assinatura era a mesma!

-Ai, nem sei o que te dou! – abraçava-me ela.

E naquele cruzamento, perdemos a direção. Colidimos na curva, antes da ponte. E derrapamos, capotamos, rolamos ribanceiras. Depois, por entre as ferragens,contei-lhe a verdade. E ainda hoje, não sei não, mas Rosa Maria duvida um pouco não ter sido Vinícius o autor daqueles versos.

De tudo isso, namorada, ficou-me a conclusão de que fazer sonetos é tarefa exclusiva dos poetas maiores.


João Carlos Pecci

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Amor é amor

Mulher gamada é fogo. Elas, quando se vidram e se amarram num homem, são capazes de fazer das tripas coração pra defender seus interesses. Uma mulher apaixonada se transforma dos pés à cabeça. Se é classuda, cai da panca e, sem vacilar, apronta os maiores salseiros. Se é acanhada, endoida e não regateia pra fazer um escândalo. Esse lance de que a mulher mesmo muito ligada num homem e tal e coisa, se enruste e se fecha em copas porque tem categoria é papo furado. Mulher que deixa o amor no barato não está toda na parada. Que nada! Às vezes, está por solidão, por simpatia, por conveniência e os cambaus. Nunca por gama. É isso. Não tem erro. Sou eu que afirmo, e de mulher eu entendo. Mas deixa isso de lado. O que quero contar e o que pesa na balança é a história da Dilma Fuleira e da Celeste Bicuda, duas flores da Barra do Catimbó que se unharam e se dentaram por amor ao Ariovaldo Piolho, um vagau de pouca presença física, mas de muita embaixada. Ele lidava com seu rebanho com mil e um macetes e, por essas e outras, sempre foi muito considerado pelo mulherio. É verdade que esse perereco se deu nas quebradas do mundaréu, onde o vento encosta o lixo e as pragas botam os ovos, mas, se acontecesse nos salões da mais fina gente da sociedade, não me causava nenhum espanto. Mulher é mulher em qualquer lugar. Mestre Zagaia, velho cabo-de-esquadra que navegou sem bandeira por muita água barrenta e que bateu perna à toa pelos caminhos mais escamosos, esquisitos e estreitos do roçado do bom Deus, viu quizilas de assombrar negos de patuá forte, embrulhou sua solidão em muito lençol encardido e escancarou nas Tabuadas das Candongas uma dica sobre o assunto:

— Depois dos panos arriados, o espetáculo é sempre o mesmo.

E, se Mestre Zagaia falou, tá falado. Mulher é sempre mulher. E a Dilma Fuleira e a Celeste Bicuda também são, embora à primeira vista não pareçam. Sabe como é. Elas nasceram lesadas da sorte e só pegaram a pior. Bagulho catado no chão da feira nunca fez bem à beleza de ninguém.

Porém (e sempre tem um porém), não foi a condição de bagulho que impediu que elas tivessem grandes ilusões a respeito de amor. E o galã dos sonhos das duas era, como já disse, o Ariovaldo Piolho. Esse vagau se serviu das duas sem a mínima cerimônia. Foi ali na base do agrião. Como as duas estavam a fim dele, o danado negociou. Fez valer a velha e tinhosa lei da oferta e da procura. Se fingia de morto e esperava pra ver quem comparecia no seu enterro.

Como quem não quer nada, pegava a grana na mão da Dilma, cumpria a obrigação e ia buscar os pixulés com a Celeste. E se o dinheiro compensava, não deixava ela em falta. Até que o caldo engrossou.

Bateu sujeira. O doutor delerusca resolveu acabar com o pesqueiro das piranhas e a Dilma Fuleira e a Celeste Bicuda se viram no papo-de-aranha. Escaparam da cana, mas o faturamento caiu às pamparras. E, no meio disso tudo, o Ariovaldo Piolho sentiu o aroma da perpétua. Vagau escolado por muitos anos de janela é sempre cem por cento profissional. Sem pagório, deixou as mulheres na saudade. E se deu o esquinapo.

A Dilma Fuleira achou que o Piolho não queria nada com ela porque estava enredado pela Celeste Bicuda. Procurou a rival e, sem conversa, deu-lhe uma tremenda biaba. A Celeste Bicuda era encardida. Encarou, mas não deu nem pra saída. A Dilma Fuleira era gordona e alta. A Celeste, baixinha e só pele e osso. Teve que apanhar e correr. Porém, como não era de engolir nada enrolado, a Celeste Bicuda tramou a forra. Foi na macumba levar o nome da Dilma Fuleira pra sua mãe-de-santo enterrar no cemitério. Feita a façanha, a Celeste Bicuda se botou a boquejar nos botecos. Garantia pra quem duvidasse que a Dilma Fuleira ia murchar até morrer. E não faltou fuxiqueiro pra ir rapidinho envenenar a Dilma. E ela, que já estava atolada até o gogó no pântano, acreditou que a bananosa toda que curtia era devido à mandinga da Celeste. Se picou de raiva e jurou pela luz que a iluminava que ia pegar a inimiga e dar pancada até ela desenterrar seu nome. E foi pra guerra.

A Dilma encontrou a Celeste no seu barraco e nem pediu licença. Entrou na força bruta e foi botando pra quebrar. De repente, a Celeste Bicuda deu uns gritos, uns pulos pro alto e, quando desceu, era uma fera batusquela. Passou a mão numa enxada e tocou o bumba-meu-boi no lombo da Dilma, que se viu obrigada a dar pinote. Mas a Celeste foi na captura e derrubou o barraco da Dilma a enxadada. Em desespero e apavorada com a fúria da Celeste Bicuda, a Dilma se refugiou na casa do Piolho. A Celeste não tomou conhecimento. Aliás, ainda ficou mais endoidada de ver a rival junto do homem da sua gama. Aumentou o escarcéu.

O Ariovaldo, sem se afobar saiu de fininho e chamou a polícia. A cana chegou e ferrou a Celeste e a Dilma. No Distrito, a Celeste falou que não tinha nada com a briga. Foi o exu da sua crença que encarnou nela pra acabar com a Dilma. A Dilma, de zoeira, entregou tudo como era. Disse pro doutor que a bronca era por causa do Piolho, que estava na fita como testemunha. O delegado quis saber se o Piolho tinha emprego. Não tinha. Entrou em pua e as mulheres foram dispensadas. Mas continuam pelejando por amor. Uma visita o vagau às quartas-feiras; a outra, aos domingos. E todas as duas levam o santo dinheirinho de presente pro Ariovaldo Piolho, o bom amante.


Plínio Marcos

domingo, 17 de agosto de 2008

Sobre a morte e o morrer

O que é vida? Mais precisamente, o que é a vida de
um ser humano? O que e quem a define?


Já tive medo da morte. Hoje não tenho mais. O que sinto é uma enorme tristeza. Concordo com Mário Quintana: "Morrer, que me importa? (...) O diabo é deixar de viver." A vida é tão boa! Não quero ir embora...

Eram 6h. Minha filha me acordou. Ela tinha três anos. Fez-me então a pergunta que eu nunca imaginara: "Papai, quando você morrer, você vai sentir saudades?". Emudeci. Não sabia o que dizer. Ela entendeu e veio em meu socorro: "Não chore, que eu vou te abraçar..." Ela, menina de três anos, sabia que a morte é onde mora a saudade.

Cecília Meireles sentia algo parecido: "E eu fico a imaginar se depois de muito navegar a algum lugar enfim se chega... O que será, talvez, até mais triste. Nem barcas, nem gaivotas. Apenas sobre humanas companhias... Com que tristeza o horizonte avisto, aproximado e sem recurso. Que pena a vida ser só isto...”

Da. Clara era uma velhinha de 95 anos, lá em Minas. Vivia uma religiosidade mansa, sem culpas ou medos. Na cama, cega, a filha lhe lia a Bíblia. De repente, ela fez um gesto, interrompendo a leitura. O que ela tinha a dizer era infinitamente mais importante. "Minha filha, sei que minha hora está chegando... Mas, que pena! A vida é tão boa...”

Mas tenho muito medo do morrer. O morrer pode vir acompanhado de dores, humilhações, aparelhos e tubos enfiados no meu corpo, contra a minha vontade, sem que eu nada possa fazer, porque já não sou mais dono de mim mesmo; solidão, ninguém tem coragem ou palavras para, de mãos dadas comigo, falar sobre a minha morte, medo de que a passagem seja demorada. Bom seria se, depois de anunciada, ela acontecesse de forma mansa e sem dores, longe dos hospitais, em meio às pessoas que se ama, em meio a visões de beleza.

Mas a medicina não entende. Um amigo contou-me dos últimos dias do seu pai, já bem velho. As dores eram terríveis. Era-lhe insuportável a visão do sofrimento do pai. Dirigiu-se, então, ao médico: "O senhor não poderia aumentar a dose dos analgésicos, para que meu pai não sofra?". O médico olhou-o com olhar severo e disse: "O senhor está sugerindo que eu pratique a eutanásia?".

Há dores que fazem sentido, como as dores do parto: uma vida nova está nascendo. Mas há dores que não fazem sentido nenhum. Seu velho pai morreu sofrendo uma dor inútil. Qual foi o ganho humano? Que eu saiba, apenas a consciência apaziguada do médico, que dormiu em paz por haver feito aquilo que o costume mandava; costume a que freqüentemente se dá o nome de ética.

Um outro velhinho querido, 92 anos, cego, surdo, todos os esfíncteres sem controle, numa cama -de repente um acontecimento feliz! O coração parou. Ah, com certeza fora o seu anjo da guarda, que assim punha um fim à sua miséria! Mas o médico, movido pelos automatismos costumeiros, apressou-se a cumprir seu dever: debruçou-se sobre o velhinho e o fez respirar de novo. Sofreu inutilmente por mais dois dias antes de tocar de novo o acorde final.

Dir-me-ão que é dever dos médicos fazer todo o possível para que a vida continue. Eu também, da minha forma, luto pela vida. A literatura tem o poder de ressuscitar os mortos. Aprendi com Albert Schweitzer que a "reverência pela vida" é o supremo princípio ético do amor. Mas o que é vida? Mais precisamente, o que é a vida de um ser humano? O que e quem a define? O coração que continua a bater num corpo aparentemente morto? Ou serão os ziguezagues nos vídeos dos monitores, que indicam a presença de ondas cerebrais?

Confesso que, na minha experiência de ser humano, nunca me encontrei com a vida sob a forma de batidas de coração ou ondas cerebrais. A vida humana não se define biologicamente. Permanecemos humanos enquanto existe em nós a esperança da beleza e da alegria. Morta a possibilidade de sentir alegria ou gozar a beleza, o corpo se transforma numa casca de cigarra vazia.

Muitos dos chamados "recursos heróicos" para manter vivo um paciente são, do meu ponto de vista, uma violência ao princípio da "reverência pela vida". Porque, se os médicos dessem ouvidos ao pedido que a vida está fazendo, eles a ouviriam dizer: "Liberta-me".

Comovi-me com o drama do jovem francês Vincent Humbert, de 22 anos, há três anos cego, surdo, mudo, tetraplégico, vítima de um acidente automobilístico. Comunicava-se por meio do único dedo que podia movimentar. E foi assim que escreveu um livro em que dizia: "Morri em 24 de setembro de 2000. Desde aquele dia, eu não vivo. Fazem-me viver. Para quem, para que, eu não sei...". Implorava que lhe dessem o direito de morrer. Como as autoridades, movidas pelo costume e pelas leis, se recusassem, sua mãe realizou seu desejo. A morte o libertou do sofrimento.

Dizem as escrituras sagradas: "Para tudo há o seu tempo. Há tempo para nascer e tempo para morrer". A morte e a vida não são contrárias. São irmãs. A "reverência pela vida" exige que sejamos sábios para permitir que a morte chegue quando a vida deseja ir. Cheguei a sugerir uma nova especialidade médica, simétrica à obstetrícia: a "morienterapia", o cuidado com os que estão morrendo. A missão da morienterapia seria cuidar da vida que se prepara para partir. Cuidar para que ela seja mansa, sem dores e cercada de amigos, longe de UTIs. Já encontrei a padroeira para essa nova especialidade: a "Pietà" de Michelangelo, com o Cristo morto nos seus braços. Nos braços daquela mãe o morrer deixa de causar medo.
Rubem Alves

Publicado no jornal “Folha de São Paulo”, Caderno “Sinapse” do dia 12/10/03. fls 3.

Coisa de moleques

Para falar sobre trote "produzido", é preciso pedir licença a Ícaro de Aguiar, talvez o maior trotista que o mundo já viu. Conseguiu passar trote até em membros da família imperial brasileira, como d. Pedro e d. João, que, a exemplo dele, moravam em Petrópolis. Ícaro lia a coluna social dos jornais para ficar informado dos acontecimentos sociais. Ia, então, para o telefone e marcava, desmarcava, transferia e adiava jantares, festas, recepções, vernissages, o diabo. Era a maior confusão em Petrópolis.

Uma vez, descobriu que um comitê de padres, em visita ao Rio de Janeiro, queria conhecer Petrópolis. Descobriu o telefone da diocese em que os padres estavam hospedados e os convidou, em nome de d. Pedro, a conhecer o palácio imperial no domingo seguinte. Em seguida, telefonou para d. Pedro, dizendo-se porta-voz da diocese, e pedindo uma visita ao palácio de Petrópolis, um palácio, aliás, bem engraçadinho. D. Pedro ficou puto, ninguém entendia nada, pois um havia convidado o outro e ninguém havia, efetivamente, convidado ninguém. Fomos com Ícaro para a porta do palácio, especialmente para curtir a chegada dos padres. Foi aquele mal-estar. Impagável!

No que diz respeito particularmente a mim, participei da produção de um trote que é candidato forte ao título de maior de todos os tempos. Ibrahim Sued anunciou, com grande pompa, o casamento de Guido Maciel, dono de um dos mais ricos cartórios do Rio de Janeiro, sócio de Márcio Braga — que, diga-se de passagem, nunca foi bobo — com uma moça que havia sido miss e capa de tudo quanto era revista e se chamava Ângela Catrambi, hoje senhora de um grande médico, dr. Álvaro Pinheiro Guimarães. Ia ser um dos grandes acontecimentos sociais do ano, com um coquetel ao ar livre, nos gramados da casa, para quinhentas pessoas, com um bufê enorme e champanhe francês rolando para todo mundo. A casa era uma mansão cinematográfica, ao lado do Itanhangá Golf Club, e todos os grã-finos da cidade foram convidados. Parecia festa de paulista, embora fosse no Rio.

— Vamos fazer uma produção — sugeri a Manuel Gusmão e à mulher dele, a Cida, que era craque em passar trote e, animada, assumiu a execução da operação.

Lembrei que a Eliana Pittman era muito vaidosa. A mãe dela, a Ofélia, mais vaidosa ainda; portanto, seria fácil fazê-las aparecer no casamento sem convite. Cida ligou para a casa delas, Ofélia atendeu, e explicou-se que o Guido Maciel era um grande admirador da cantora Eliana Pittman, um fã, e gostaria que ela fizesse um show no casamento, uma coisa diferente. Imaginem: casamento com show! A Ofélia não era boba, bem que desconfiou, mas tinha lido a notícia no jornal e ficou logo de olho grande... coluna social era com ela mesma. Pediu um tempo para dar a resposta. Ficamos, então de ligar depois, para confirmar ou não.

Em seguida, Cida ligou para a casa do Guido Maciel e mandou chamar a mãe de Ângela Catrambi, uma típica mãe de miss que, mais feliz do que pinto no lixo, estava eufórica com o casamento da filha com um homem tão rico e poderoso. Iria descontar uma promissória.

— A senhora é a mãe da Ângela? Minha filha, Eliana Pittman, gostaria de, humildemente, prestar uma homenagem aos noivos, dar um abraço na Ângela — explicou Cida, fazendo-se passar por Ofélia.

A orgulhosa senhora conhecia Eliana de nome, achou a oferta muito natural e aceitou logo.

— Que beleza a Eliana Pittman cantando no casamento! Podem vir.

Em seguida, avisou à filha, que, numa euforia total, também gostou da idéia.

Era um duelo de titãs. Duas mães de miss no mesmo jogo, só podia dar empate. Cida ligou novamente para Ofélia, que continuou a colocar obstáculos:

— Não sei, assim de repente... Temos de localizar os músicos, o problema do cachê...

— Por favor, não me fale em cachê — ofendeu-se Cida, no papel de mãe da noiva. — Cachê não tem problema. Que tal trinta mil?

Era uma nota preta. Os olhos de Ofélia devem ter revirado dentro das órbitas. Ir a uma festança dessas e ainda por cima ganhar essa nota! Era demais. Topou voando.

— E com que roupa a Eliana deve ir? — quis saber Ofélia.

— Naturalmente, uma roupa bem chamativa, bem Broadway.

— Tudo bem. Eliana gosta de se apresentar assim.

— Então estamos combinadas.

Dá pra imaginar o espanto na entrada triunfal de Eliana, toda emperetecada, e, depois, a confusão na hora de receber o cachê?

Simplesmente inenarrável, caro leitor.


Ronaldo Bôscoli

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Receita de Domingo

Ter na véspera o cuidado de escancarar a janela. Despertar com a primeira luz cantando e ver dentro da moldura da janela a mocidade do universo, límpido incêndio a debruar de vermelho quase frio as nuvens espessas. A brisa alta, que se levanta, agitar docemente as grinaldas das janelas fronteiras. Uma gaivota madrugadora cruzar o retângulo. Um galo desenhar na hora a parábola de seu canto. Então, dormir de novo, devagar, como se dessa vez fosse para retornar à terra só ao som da trombeta do arcanjo.

Café e jornais devem estar à nossa espera no momento preciso no qual violentamos a ausência do sono e voltamos à tona. Esse milagre doméstico tem de ser. Da área subir uma dissonância festiva de instrumentos de percussão — caçarolas, panelas, frigideiras, cristais anunciando que a química e a ternura do almoço mais farto e saboroso não foram esquecidas. Jorre a água do tanque e, perto deste, a galinha que vai entrar na faca saia de seu mutismo e cacareje como em domingos de antigamente. Também o canário belga do vizinho descobrir deslumbrado que faz domingo.

Enquanto tomamos café, lembrar que é dia de um grande jogo de futebol. Vestir um short, zanzar pela casa, lutar no chão com o caçula, receber dele um soco que nos deixe doloridos e orgulhosos. A mulher precisa dizer, fingindo-se muito zangada, que estamos a fazer uma bagunça terrível e somos mais crianças do que as crianças.

Só depois de chatear suficientemente a todos, sair em bando familiar em direção à praia, naturalmente com a barraca mais desbotada e desmilingüida de toda a redondeza.

Se a Aeronáutica não se dispuser esta manhã a divertir a infância com os seus mergulhos acrobáticos, torna-se indispensável a passagem de sócios da Hípica, em corcéis ainda mais kar do que os próprios cavaleiros.

Comprar para a meninada tudo que o médico e o regime doméstico desaconselham: sorvetes mil, uvas cristalizadas, pirulitos, algodão doce, refrigerantes, balões em forma de pingüim, macaquinhos de pano, papaventos. Fingir-se de distraído no momento em que o terrível caçula, armado, aproximar-se da barraca onde dorme o imenso alemão para desferir nas costas gordas do tedesco uma vigorosa paulada. A pedagogia recomenda não contrariar demais as crianças.

No instante em que a meninada já comece a "encher", a mulher deve resolver ir cuidar do almoço e deixar-nos sós. Notar, portanto, que as moças estão em flor, e o nosso envelhecimento não é uma regra geral. Depois, fechar os olhos, torrar no sol até que a pele adquira uma vida própria, esperar que os insetos da areia nos despertem do meio-sono.

A caminho de casa, é de bom alvitre encontrar, também de calção, um amigo motorizado, que a gente não via há muito tempo. Com ele ir às ostras na Barra da Tijuca, beber chope ou vinho branco.

O banho, o espaçado almoço, o sol transpassando o dia. Desistir à última hora de ver o futebol, pois o nosso time não está em jogo. Ir à casa de um amigo, recusar o uísque que este nos oferece, dizer bobagens, brigar com os filhos dele em várias partidas de pingue-pongue.

Novamente em casa, conversar com a família. Contar uma história meio macabra aos meninos. Enquanto estes são postos em sossego, abrir um livro. Sentir que a noite desceu e as luzes distantes melancolizam. Se a solidão assaltar-nos, subjugá-la; se o sentimento de insegurança chegar, usar o telefone; se for a saudade, abrigá-la com reservas; se for a poesia, possuí-la; se for o corvo arranhando o caixilho da janela, gritar-lhe alto e bom som: never more.

Noite pesada. À luz da lâmpada, viajamos. O livro precisa dizer-nos que o mundo está errado, que o mundo devia, mas não é composto de domingos. Então, como uma espada, surgir da nossa felicidade burguesa e particular uma dor viril e irritada, de lado a lado. Para que os dias da semana entrante não nos repartam em uma existência de egoísmos.


Paulo Mendes Campos


Texto extraído do livro "O Cego de Ipanema", Editora do Autor – Rio de Janeiro, 1960, pág. 41.

segunda-feira, 7 de julho de 2008

O dia da caça

A caçada estava marcada para as 7 horas. Desde as 6, porém, Paulo e eu já estávamos de pé, aguardando a chegada de seu Chico Caçador.
- Seu Chico vai trazer as espingardas?
- Vai. E cachorro também.
- Cachorro? Para que cachorro?
Olhei com pena meu companheiro de aventura:
- Onde você já viu caçada sem cachorro, rapaz?
- Ele disse que hoje vai ser só passarinho.
- Passarinho para ele é codorna, macuco, essas coisas...
Em pouco chegava seu Chico, todo animado:
- Tudo pronto, meninos?
De pronto só tínhamos o corpo. Seu Chico trazia atravessadas às costas duas espingardas de caça e usava um gibão de couro, uma cartucheira, vinha todo fantasiado de caçador. Ao seu redor saracoteava um cachorro:
- O melhor perdigueiro destas redondezas.
Na varanda da fazenda, seu Chico se pôs a encher os cartuchos, meticulosamente, usando para isso uns aparelhinhos que trouxera, um saquinho de pólvora, outro de chumbo:
- Vai haver codorna no almoço para a família toda - dizia, entusiasmado.
Despedimo-nos comovidos da família e partimos através do pasto. Seu Chico, compenetrado, ia dando instruções, procurando impressionar:
- Parou, esticou o corpo, endureceu o rabo? Tá amarrado. É só esperar o bichinho voar e tacar fogo!
- Seu Chico, nós não vamos passar perto daquele touro, vamos?
- Aquele touro é uma vaca.
A vaca levantou a cabeça e ficou a olhar-nos, na expectativa.
- Por via das dúvidas, me dá aí essa espingarda.
Fomos passando com jeito perto da vaca.
- Bom dia - disse eu.
- Buu - respondeu ela.
Ao sopé do morro o cachorro se imobilizou.
- É agora! Me dá aqui a espingarda!
- Fiquem quietos - comandou seu Chico, num sussurro.
- Que foi, seu Chico? Não estou vendo nada...
Alguma coisa deslizou como um rato por entre o capim rasteiro, levantou vôo espadanando as asas.
- Fogo! Fogo!
Paulo atirou na codorna, eu atirei em seu Chico.
- Cuidado!
- Que bicho é esse?
Seu Chico suspirou, resignado:
- Era uma codorna. Não tem importância... Olha, quando atirar outra vez, vira o cano pro ar. O chumbo passou tinindo no meu ouvido.
No ar ficaram apenas duas fumacinhas. Fomos andando, seu Chico carregou novamente nossas espingardas. Assim que o cachorro se imobilizava, ficávamos quietos, farejando ao redor, canos para o ar.
- Vira isso pra lá!
- Agora! Fogo!
Mal tínhamos tempo de ver uma coisa escura desaparecer no céu, como um disco voador.
- Asssim também não vai, seu Chico. Não dá tempo...
- Me dá aqui essa espingarda. Deixa eu matar a primeira para mostrar como é que é.
Andamos o dia todo pelo pasto. Nada de caça.
- Nem ao menos uma codorninha - suspirava seu Chico, quando o sol começou a dobrar o céu. - Tem dia que eu mato mais de quinze macucos.
Andando, subindo morro, saltando cerca, atravessando valas, pisando em barro, escorregando no capim. o estômago começou a doer.
- Seu Chico, o melhor é a gente desistir. Estamos com fome.
- Hoje no jantar vocês comem perdiz. Ou eu desisto de ser caçador.
Sua honra estava em jogo. A tarde avançava e seu Chico perscrutando o pasto, açulando o cachorro. Paulo, sentado num toco - desistira de andar: tirara o sapato e coçava o dedão do pé. Resolvi também fazer uma parada para caçar carrapatos. Seu Chico desapareceu numa dobra do terreno. De repente, pum! pum! - era o caçador solitário. Teria acertado desta vez? A vaca de novo. Vinha vindo pachorrentamente pela picada aberta por ela própria.
- Cuidado, Paulo! - preveni. - Olha a vaca.
Paulo se voltou para a vaca, que já ia passando ao largo:
- Buuu! - fez com desprezo.
A vaca se deteve, voltou-se nos flancos e de súbito disparou num pesado galope em sua direção. Paulo deu um salto, abriu a correr, passou por mim como um raio:
- Foge! Foge!
Atrás de nós a terra estremecia e a vaca bufava, escavando o chão com as patas.
- Seu Chico! Socorro!
Em poucos minutos e aos saltos, escorregadelas, trambolhões, cruzamos o terreno que leváramos toda a manhã a conquistar. Já na porteira da fazenda, nos voltamos para ver a vaca, que ficara para trás, entretida com uma touceira de capim.
- Devo ter falado algum palavrão em língua de vaca.
Em pouco regressava seu Chico, cabisbaixo, desmoralizado, quase chorando:
- Errei até em anu.
Procuramos consolá-lo:
- Um dia é da caça e outro do caçador, seu Chico.
Deixou conosco as espingardas e foi-se pelo pasto mesmo, evitando a fazenda e o opróbrio aos olhos dos moradores. Paulo e eu nos coçávamos, sentados no travão da cerca, quando ambos demos um grito:
- Epa! Que é aquilo?
- Você viu?
Uma caça, uma caça enorme! Um gigantesco galináceo que ao longe ganhava o morro em disparada, sumindo ali, surgindo lá - uma cegonha?
- Cegonha nada! Uma avestruz!
Saímos como loucos em perseguição da avestruz. Nas fraldas do morro disparamos o primeiro tiro.
- Socorro! - berrou a avestruz.
Deu um salto e abriu fuga com suas pernocas longas, morro acima. Ah, se seu Chico nos visse agora!
- Pum!
- Socorro!
E a ave pernalta fugia espavorida, escondendo-se na vegetação. Íamos no seu encalço, implacáveis.
- Pum! - trovejava a espingarda.
- Não! Não! - implorava a avestruz na sua fuga, largando penas pelo caminho.
A noite veio surpreender-nos do outro lado do morro, já às portas da cidade. Voltamos para a fazenda estropiados, roupas rasgadas, sapatos pesados de barro. Fomos recebidos com alegre expectativa.
- E então? Caçaram alguma coisa?
- Com seu Chico, nem um passarinho. Mas depois que ele foi embora quase apanhamos uma caça esplêndida, uma avestruz deste tamanho...
O dono da fazenda pôs as mãos na cabeça:
- Minha siriema, que eu mandei vir da Argentina! Imagine o susto da coitadinha!
Embarafustamo-nos pela cozinha, completamente derrotados.
- Que vamos ter hoje no jantar? - perguntei à cozinheira.
- Galinha ao molho pardo.
- Já matou?
- Não.
Empunhei a espingarda com decisão e voltei-me para o galinheiro, mas Paulo cortou-me os passos:
- Não faça isso! O crime não compensa.
E propôs que na manhã seguinte saíssemos para caçar borboletas.


(SABINO, Fernando. "O dia da caça". In: ANDRADE, Carlos Drummond et al. Para Gostar de Ler: Crônicas I. São Paulo: Ática, 27. ed., 3ª impressão, 2003, vol. 1, pp. 33-7.)

domingo, 15 de junho de 2008

O menino e o velho

Lygia Fagundes Telles


Quando entrei no pequeno restaurante da praia os dois já estavam sentados, o velho e o menino. Manhã de um azul flamante. Fiquei olhando o mar que não via há algum tempo e era o mesmo mar de antes, um mar que se repetia e era irrepetível. Misterioso e sem mistério nas ondas estourando naquelas espumas flutuantes (bom-dia, Castro Alves!) tão efêmeras e eternas, nascendo e morrendo ali na areia. O garçom, um simpático alemão corado, me reconheceu logo. Franz?, eu perguntei e ele fez uma continência, baixou a bandeja e deixou na minha frente o copo de chope. Pedi um sanduíche. Pão preto?, ele lembrou e foi em seguida até a mesa do velho que pediu outra garrafa de água de Vichy.

Fixei o olhar na mesa ocupada pelos dois, agora o velho dizia alguma coisa que fez o menino rir, um avô com o neto. E não era um avô com o neto, tão nítidas as tais diferenças de classe no contraste entre o homem vestido com simplicidade mas num estilo rebuscado e o menino encardido, um moleque de alguma escola pobre, a mochila de livros toda esbagaçada no espaldar da cadeira. Deixei baixar a espuma do chope mas não olhava o copo, com o olhar suplente (sem direção e direcionado) olhava o menino que mostrava ao velho as pontas dos dedos sujas de tinta, treze, catorze anos? O velho espigado alisou a cabeleira branca em desordem (o vento) e mergulhou a ponta do guardanapo de papel no copo d'água. Passou o guardanapo para o menino que limpou impaciente as pontas dos dedos e logo desistiu da limpeza porque o suntuoso sorvete coroado de creme e pedaços de frutas cristalizadas já estava derretendo na taça. Mergulhou a colher no sorvete. A boca pequena tinha o lábio superior curto deixando aparecer os dois dentes da frente mais salientes do que os outros e com isso a expressão adquiria uma graça meio zombeteira. Os olhos oblíquos sorriam acompanhando a boca mas o anguloso rostinho guardava a palidez da fome. O velho apertava os olhos para ver melhor e seu olhar era demorado enquanto ia acendendo o cachimbo com gestos vagarosos, compondo todo um ritual de elegância. Deixou o cachimbo no canto da boca e consertou o colarinho da camisa branca que aparecia sob o decote do suéter verde-claro, devia estar sentindo calor mas não tirou o suéter, apenas desabotoou o colarinho. Na aparência, tudo normal: ainda com os resíduos da antiga beleza o avô foi buscar o neto na saída da escola e agora faziam um lanche, gazeteavam? Mas o avô não era o avô. Achei-o parecido com o artista inglês que vi num filme, um velho assim esguio e bem cuidado, fumando o seu cachimbo. Não era um filme de terror mas o cenário noturno tinha qualquer coisa de sinistro com seu castelo descabelado. A lareira acesa. As tapeçarias. E a longa escada com os retratos dos antepassados subindo (ou descendo) aqueles degraus que rangiam sob o gasto tapete vermelho.

Cortei pelo meio o sanduíche grande demais e polvilhei o pão com sal. Não estava olhando mas percebia que os dois agora conversavam em voz baixa, a taça de sorvete esvaziada, o cachimbo apagado e a voz apagada do velho no mesmo tom caviloso dos carunchos cavando (roque-roque) as suas galerias. Acabei de esvaziar o copo e chamei o Franz. Quando passei pela mesa os dois ainda conversavam em voz baixa - foi impressão minha ou o velho evitou o meu olhar? O menino do labiozinho curto (as pontas dos dedos ainda sujas de tinta) olhou-me com essa vaga curiosidade que têm as crianças diante dos adultos, esboçou um sorriso e concentrou-se de novo no velho. O garçom alemão acompanhou-me afável até a porta, o restaurante ainda estava vazio. Quase me lembrei agora, eu disse. Do nome do artista, esse senhor é muito parecido com o artista de um filme que vi na televisão. Franz sacudiu a cabeça com ar grave: Homem muito bom! Cheguei a dizer que não gostava dele ou só pensei em dizer? Atravessei a avenida e fui ao calçadão para ficar junto do mar.

Voltei ao restaurante com um amigo (duas ou três semanas depois) e na mesma mesa, o velho e o menino. Entardecia. Ao cruzar com ambos, bastou um rápido olhar para ver a transformação do menino com sua nova roupa e novo corte de cabelo. Comia com voracidade (as mãos limpas) um prato de batatas fritas. E o velho com sua cara atenta e terna, o cachimbo, a garrafa de água e um prato de massa ainda intocado. Vestia um blazer preto e malha de seda branca, gola alta.

Puxei a cadeira para assim ficar de costas para os dois, entretida com a conversa sobre cinema, o meu amigo era cineasta. Quando saímos a mesa já estava desocupada. Vi a nova mochila (lona verde-garrafa, alças de couro) dependurada na cadeira. Ele esqueceu, eu disse e apontei a mochila para o Franz que passou por mim afobado, o restaurante encheu de repente. Na porta, enquanto me despedia do meu amigo, vi o menino chegar correndo para pegar a mochila. Reconheceu-me e justificou-se (os olhos oblíquos riam mais do que a boca), Droga! Acho que não esqueço a cabeça porque está grudada.

Pressenti o velho esperando um pouco adiante no meio da calçada e tomei a direção oposta. O mar e o céu formavam agora uma única mancha azul-escura na luz turva que ia dissolvendo os contornos. Quase noite. Fui andando e pensando no filme inglês com os grandes candelabros e um certo palor vindo das telas dos retratos ao longo da escadaria. Na cabeceira da mesa, o velho de chambre de cetim escuro com o perfil esfumaçado. Nítido, o menino e sua metamorfose mas persistindo a palidez. E a graça do olhar que ria com o labiozinho curto.

No fim do ano, ao passar pelo pequeno restaurante resolvi entrar mas antes olhei através da janela, não queria encontrar o velho e o menino, não me apetecia vê-los, era isso, questão de apetite. A mesa estava com um casal de jovens. Entrei e Franz veio todo contente, estranhou a minha ausência (sempre estranhava) e indicou-me a única mesa desocupada. Hora do almoço. Colocou na minha frente um copo de chope, o cardápio aberto e de repente fechou-se sua cara num sobressalto. Inclinou-se, a voz quase sussurrante, os olhos arregalados. Ficou passando e repassando o guardanapo no mármore limpo da mesa, A senhora se lembra? Aquele senhor com o menino que ficava ali adiante, disse e indicou com a cabeça a mesa agora ocupada pelos jovens. Ich! foi uma coisa horrível! Tão horrível, aquele menininho, lembra? Pois ele enforcou o pobre do velho com uma cordinha de náilon, roubou o que pôde e deu no pé! Um homem tão bom! Foi encontrado pelo motorista na segunda-feira e o crime foi no sábado. Estava nu, o corpo todo judiado e a cordinha no pescoço, a senhora não viu no jornal?! Ele morava num apartamento aqui perto, a policia veio perguntar mas o que a gente sabe? A gente não sabe de nada! O pior é que não vão pegar o garoto, ich! Ele é igual a esses bichinhos que a gente vê na areia e que logo afundam e ninguém encontra mais. Nem com escavadeira a gente não encontra não. Já vou, já vou!, ele avisou em voz alta, acenando com o guardanapo para a mesa perto da porta e que chamava fazendo tilintar os talheres. Ninguém mais tem paciência, já vou!...

Olhei para fora. Enquadrado pela janela, o mar pesado, cor de chumbo, rugia rancoroso. Fui examinando o cardápio, não, nem peixe nem carne. Uma salada. Fiquei olhando a espuma branca do chope ir baixando no copo.


O texto acima foi extraído do livro "Invenção e Memória", Editora Rocco - Rio de Janeiro, 2000, pág. 69.

sábado, 31 de maio de 2008

O avião da bela adormecida

Era ela, elástica, com uma pele suave da cor do pão e olhos de amêndoas verdes, e tinha o cabelo liso e negro e longo até as costas, e uma aura de antiguidade que tanto podia ser da Indonésia como dos Andes. Estava vestida com um gosto sutil: jaqueta de lince, blusa de seda natural com flores muito tênues, calças de linho cru, e uns sapatos rasos da cor das buganvílias. "Esta é a mulher mais bela que vi na vida", pensei, quando a vi passar com seus sigilosos passos de leoa, enquanto eu fazia fila para abordar o avião para Nova York no aeroporto Charles de Gaulle de Paris. Foi uma aparição sobrenatural que existiu um só instante e desapareceu na multidão do saguão.

Eram nove da manhã. Estava nevando desde a noite anterior, e o trânsito era mais denso que de costume nas ruas da cidade, e mais lento ainda na estrada, e havia caminhões de carga alinhados nas margens, e automóveis fumegantes na neve. No saguão do aeroporto, porém, a vida continuava em primavera.

Eu estava na fila atrás de uma anciã holandesa que demorou quase uma hora discutindo o peso de suas onze malas. Começava a me aborrecer quando vi a aparição instantânea que me deixou sem respiração, e por isso não soube como terminou a polêmica, até que a funcionária me baixou das nuvens chamando minha atenção pela distração. À guisa de desculpa, perguntei se ela acreditava nos amores à primeira vista. "Claro que sim", respondeu. "Os impossíveis são os outros" Continuou com os olhos fixos na tela do computador, e me perguntou que assento eu preferia: fumante ou não-fumante.

— Dá na mesma — disse categórico — desde que não seja ao lado das onze malas.

Ela agradeceu com um sorriso comercial sem afastar a vista da tela fosforescente.

— Escolha um número — me disse. — Três, quatro ou sete.

— Quatro.

Seu sorriso teve um fulgor triunfal.

— Nos quinze anos em que estou aqui — disse —, é o primeiro que não escolhe o sete.

Marcou no cartão de embarque o número do assento e me entregou com o resto de meus papéis, olhando-me pela primeira vez com uns olhos cor de uva que me serviram de consolo enquanto via a bela de novo. Só então me avisou que o aeroporto acabava de ser fechado e todos os vôos estavam adiados.

— Até quando?

— Só Deus sabe — disse com seu sorriso. O rádio avisou esta manhã que será a maior nevada do ano.

Enganou-se: foi a maior do século. Mas na sala de espera da primeira classe a primavera era tão real que havia rosas vivas nos vasos e até a música enlatada parecia tão sublime e sedante como queriam seus criadores. De repente pensei que aquele era um refúgio adequado para a bela, e procurei-a nos outros salões, estremecido pela minha própria audácia. Mas na maioria eram homens da vida real que liam jornais em inglês enquanto suas mulheres pensavam em outros, contemplando os aviões mortos na neve através das janelas panorâmicas, contemplando as fábricas glaciais, as vastas plantações de Roissy devastadas pelos leões. Depois do meio-dia não havia um espaço disponível, e o calor tinha-se tornado tão insuportável que escapei para respirar.

Lá fora encontrei um espetáculo assustador. Gente de todo tipo havia transbordado as salas de espera e estava acampada nos corredores sufocantes, e até nas escadas, estendida pelo chão com seus animais e suas crianças, e seus trastes de viagem. Pois também a comunicação com a cidade estava interrompida, e o palácio de plástico transparente parecia uma imensa cápsula espacial encalhada na tormenta. Não pude evitar a idéia de que também a bela deveria estar em algum lugar no meio daquelas hordas mansas, e essa fantasia me deu novos ânimos para esperar.

Na hora do almoço havíamos assumido nossa consciência de náufragos. As filas tornaram-se intermináveis diante dos sete restaurantes, as cafeterias, os bares abarrotados, e em menos de três horas tiveram de fechar tudo porque não havia nada para comer ou beber. As crianças, que por um momento pareciam ser todas as do mundo, puseram-se a chorar ao mesmo tempo, e começou a se erguer da multidão um cheiro de rebanho. Era o tempo dos instintos. A única coisa que consegui comer no meio daquela rapina foram os dois últimos copinhos de sorvete de creme numa lanchonete infantil. Tomei-os pouco a pouco no balcão, enquanto os garçons punham as cadeiras sobre as mesas na medida em que elas se desocupavam, olhando-me no espelho do fundo, com o último copinho de papelão e a última colherzinha de papelão, e com o pensamento na bela.

O vôo para Nova York, previsto para as onze da manhã, saiu às oito da noite. Quando finalmente consegui embarcar, os passageiros da primeira classe já estavam em seus lugares, e uma aeromoça me conduziu ao meu. Perdi a respiração. Na poltrona vizinha, junto da janela, a bela estava tomando posse de seu espaço com o domínio dos viajantes experientes. "Se alguma vez eu escrever isto, ninguém vai acreditar", pensei. E tentei de leve em minha meia língua um cumprimento indeciso que ela não percebeu.

Instalou-se como se fosse morar ali muitos anos, pondo cada coisa em seu lugar e em sua ordem, até que o local ficou tão bem-arrumado como a casa ideal, onde tudo estava ao alcance da mão. Enquanto fazia isso, o comissário trouxe-nos o champanha de boas-vindas. Peguei uma taça para oferecer a ela, mas me arrependi a tempo. Pois quis apenas um copo d'água, e pediu ao comissário, primeiro num francês inacessível e depois num inglês um pouco mais fácil, que não a despertasse por nenhum motivo durante o vôo. Sua voz grave e morna arrastava uma tristeza oriental.

Quando levaram a água, ela abriu sobre os joelhos uma caixinha de toucador com esquinas de cobre, como os baús das avós, e tirou duas pastilhas douradas de um estojinho onde levava outras de cores diversas. Fazia tudo de um modo metódico e parcimonioso, como se não houvesse nada que não estivesse previsto para ela desde seu nascimento. Por último baixou a cortina da janela, estendeu a poltrona ao máximo, cobriu-se com a manta até a cintura sem tirar os sapatos, pôs a máscara de dormir, deitou-se de lado na poltrona, de costas para mim, e dormiu sem uma única pausa, sem um suspiro, sem uma mudança mínima de posição, durante as oito horas eternas e os doze minutos de sobra que o vôo de Nova York durou.

Foi uma viagem intensa. Sempre acreditei que não há nada mais belo na natureza que uma mulher bela, de maneira que foi impossível para mim escapar um só instante do feitiço daquela criatura de fábula que dormia ao meu lado. O comissário havia desaparecido assim que decolamos, e foi substituído por uma aeromoça cartesiana que tentou despertar a bela para dar-lhe o estojo de maquiagem e os auriculares para a música. Repeti a advertência que a bela havia feito ao comissário, mas a aeromoça insistiu para ouvir de sua própria voz que tampouco queria jantar. Foi preciso que o comissário confirmasse, e ainda assim a aeromoça me repreendeu porque a bela não havia colocado no pescoço o cartãozinho com a ordem de não ser despertada.

Fiz um jantar solitário, dizendo-me em silêncio tudo que teria dito a ela, se estivesse acordada. Seu sono era tão estável que em certo momento tive a inquietude que aquelas pastilhas não fossem para dormir e sim para morrer. Antes de cada gole, levantava a taça e brindava.

— À tua saúde, bela.

Terminado o jantar, apagaram as luzes, mostraram um filme para ninguém, e nós dois ficamos sozinhos na penumbra do mundo. A maior tormenta do século havia passado, e a noite do Atlântico era imensa e límpida, e o avião parecia imóvel entre as estrelas. Então contemplei-a palmo a palmo durante várias horas, e o único sinal de vida que pude perceber foram as sombras dos sonhos que passavam por sua fronte como as nuvens na água. Tinha no pescoço uma corrente tão fina que era quase invisível sobre sua pele de ouro, as orelhas perfeitas sem os furinhos para brincos, as unhas rosadas da boa saúde e um anel liso na mão esquerda. Como não parecia ter mais de vinte anos, me consolei com a idéia de que não fosse a aliança de um casamento e sim de um namoro efêmero. "Saber que você dorme, certa, segura, leito fiel de abandono, linha pura, tão perto de meus braços atados", pensei, repetindo na crista de espuma de champanha o so neto magistral de Gerardo Diego.

Em seguida estendi a poltrona na altura da sua, e ficamos deitados mais próximos que numa cama de casal. O clima de sua respiração era o mesmo da voz, e sua pele exalava um hálito tênue que só podia ser o próprio cheiro de sua beleza. Eu achava incrível: na primavera anterior havia lido um bonito romance de Yasumari Kawabata sobre os anciões burgueses de Kyoto que pagavam somas enormes para passar a noite contemplando as moças mais bonitas da cidade, nuas e narcotizadas, enquanto eles agonizavam de amor na mesma cama. Não podiam despertá-las, nem tocá-las, e nem tentavam, porque a essência do prazer era vê-las dormir. Naquela noite, velando o sono da bela, não apenas entendi aquele refinamento senil, como o vivi na plenitude.

— Quem iria acreditar — me disse, com o amor-próprio exacerbado pelo champanha. — Eu, ancião japonês a estas alturas.

Acho que dormi várias horas, vencido pelo champanha e os clarões mudos do filme, e despertei com a cabeça aos cacos. Fui ao banheiro. Dois lugares atrás do meu, jazia a anciã das onze maletas esparramada mal-acomodada na poltrona. Parecia um morto esquecido no campo de batalha. No chão, no meio do corredor, estavam seus óculos de leitura com o colar de contas coloridas, e por um instante desfrutei da felicidade mesquinha de não os recolher.

Depois de desafogar-me dos excessos de champanha me surpreendi no espelho, indigno e feio, e me assombrei por serem tão terríveis os estragos do amor. De repente o avião foi a pique, ajeitou-se como pôde, e prosseguiu voando a galope. A ordem de voltar ao assento acendeu. Saí em disparada, com a ilusão de que somente as turbulências de Deus despertariam a bela, e que teria de se refugiar em meus braços fugindo do terror. Na pressa estive a ponto de pisar nos óculos da holandesa, e teria me alegrado. Mas voltei sobre meus passos, os recolhi, os coloquei em seu regaço, agradecido de repente por ela não ter escolhido antes de mim o assento número quatro.

O sono da bela era invencível. Quando o avião se estabilizou, tive que resistir à tentação de sacudi-la com um pretexto qualquer, porque a única coisa que desejava naquela última hora de vôo era vê-la acordada, mesmo que estivesse enfurecida, para que eu pudesse recobrar minha liberdade e talvez minha juventude. Mas não fui capaz. "Que merda", disse a mim mesmo, com um grande desprezo. "Por que não nasci Touro?" Despertou sem ajuda no instante em que os anúncios de aterrissagem se acenderam, e estava tão bela e louçã como se tivesse dormido num roseiral. Só então percebi que os vizinhos de assento nos aviões, como os casais velhos, não se dizem bom-dia ao despertar. Ela também não.

Tirou a máscara, abriu os olhos radiantes, endireitou a poltrona, pôs a manta de lado, sacudiu as melenas que se penteavam sozinhas com seu próprio peso, tornou a pôr a caixinha nos joelhos, e fez uma maquiagem rápida e supérflua, o suficiente para não olhar para mim até que a porta foi aberta. Então pôs a jaqueta de lince, passou quase que por cima de mim com uma desculpa convencional em puro castelhano das Américas, e foi sem nem ao menos se despedir, sem ao menos me agradecer o muito que fiz por nossa noite feliz, e desapareceu até o sol de hoje na amazônia de Nova York.

Junho de 1982.


Gabriel García Márquez

domingo, 18 de maio de 2008

Prerativos de uma morte anunciada

— Onofre, acabei de pegar teu exame. O médico disse que você vai morrer em uma semana.

— Hein?! O quê?!

— Você morre terça feira que vem. Dia 25. Dia do soldado.

— Mas... que coisa horrível!

— Horrível por quê? Melhor que morrer, sei lá, no dia do Índio. No dia da Secretária. No dia do Ginecologista.

— Meu Deus! Vou morrer em uma semana e você me conta assim, na bucha, sem me preparar?

— Deixa de ser infantil, Onofre. Você não é prato de bacalhau pra eu te preparar.

— Uma semana... Eu estou chocado! Se bem que...

— O quê?

— Quer saber? De certa forma foi bom saber logo. Assim aproveito o tempo que resta. Vou viajar, beber e comer tudo que eu tenho direito.

— Aí é que está, Onofre. Você vai ter que fazer dieta.

— Dieta?!

— Pra emagrecer. O caixão que a gente tem não é seu número. Com essa barriga, você não entra naquele ataúde de jeito nenhum. Só entra de lado. Você quer ser enterrado de lado, Onofre?

— Claro que não! Mas... não dá pra trocar de caixão?

— É da loja do teu primo. Fui do médico direto pra lá, e foi o que ele me deu. Ele só trabalha com modelagem única e a gente não tem dinheiro pra comprar outro.

— Mas não é justo! Tenho que fazer regime na última semana da minha vida?

— E ginástica. E cooper. Talvez até balé — que só regime não vai dar conta dos 15 quilos que você precisa perder. Já te matriculei numa academia.

— Mas...

— Outra coisa. Não esquece de começar a convidar as pessoas pro velório.

— Eu?!

— É, ué. Não é você que vai morrer? Era só o que me faltava... você é que vai morrer e eu é que tenho o trabalho... Aliás, por falar em trabalho, arranja um bico extra essa semana pra conseguir dinheiro — pra pagar a dívida do mercado.

— Peraí... regime, ginástica, e agora... trabalho extra? Eu estou doente, estou cansado!

— Deixa de frescura, Onofre. Daqui a uma semana você vai ter tempo de sobra pra descansar. E se eu não pagar essa dívida, o seu Joaquim disse que me mata.

— Ele disse isso?

— Disse. E pode me matar em menos de uma semana. E aí eu vou ser enterrada no seu caixão. E você fica sem dinheiro pra comprar outro caixão. E aí você não vai ser enterrado. Vai ficar por aí, pelas ruas, em processo de decomposição.

— Meu Deus!

— Mais uma coisa. Você vai ter que visitar a tia Augusta.

— Ah, não! Visitar a tia Augusta não! Estou brigado com ela, você sabe disso.

— Vai na quinta feira. Já marquei.

— Assim não dá! Eu, pensando que ia passar uma semana boa, tranqüila, esperando pra morrer... mas nada. Já vi que vai ser um inferno. E se eu não for na casa da tia Augusta?

— Ela vai se sentir culpada por não ter feito as pazes antes de você morrer. E vai acabar morrendo de desgosto.

— E eu com isso? Não quero saber.

— Não quer saber? Acontece que está provado que uma pessoa leva, em média, uns seis meses pra morrer de desgosto.

— E daí?

— Daí que daqui a seis meses é o casamento da tua filha. E se a tua tia morrer, a gente vai ter que adiar o casamento. E se a gente adiar é capaz do noivo desistir de casar. Se ele desistir, tua filha vai ficar arrasada e pode sair por aí namorando o primeiro que aparecer na frente. E o primeiro que aparecer na frente pode ser um drogado. E tua filha pode virar uma drogada. E daí para o crime e para a prostituição é um passo. E daí ela pod...

— Chega! Eu vou visitar a tia Augusta!

— Ótimo.

— Que mais? O que mais você quer que eu faça nessa semana? Já tá perdida mesmo...

— Mais nada. Só cavar sua cova — pra economizar no coveiro, que coveiro está saindo pela hora da morte.

— Deixa eu anotar, senão esqueço... com tanta coisa... Cavar a cova.

— E não esquece de, no dia da tua morte, ir pro lugar do velório cedo. Pra morrer lá mesmo... pra gente também economizar no transporte do corpo. Vai de ônibus.

— Mas...

— De preferência atrás, agarrado no pára-choque, pra não pagar.

— É uma boa... No pára-choque. Só uma coisa. Uma dúvida.

— Fala.

— E se, por um acaso... eu não morrer?

— Tá maluco, Onofre? Depois desse trabalhão todo? Nem pensa nisso! Esquece essa possibilidade!

— É que de repente...

— De repente uma pinóia! Vê lá, hein, Onofre? Não vai me fazer a gracinha de aparecer no teu velório... vivo!


Elisa Palatnik



Elisa Palatnik, carioca nascida em 1962, desponta com uma das melhores escritoras de humor da nova geração. Começou sua carreira em 1988, como uma das redatoras do Chico Anísio Show. Hoje faz parte da equipe de redação final do programa Sai de Baixo.

O texto acima foi extraído do jornal "O Globo", onde a autora mantinha uma coluna.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Crônica do amor

Ninguém ama outras pessoas pelas qualidades que ele tem. Caso contrário os honestos, simpáticos e não fumantes teriam uma fila de pretendentes batendo a porta.

O AMOR não é chegado a fazer contas, não obedece a razão. O verdadeiro amor acontece por conjunção estelar.

Ninguém ama outra pessoa por que ela é educada, veste-se bem e é fã de Caetano.

Isso são só referenciais.

Ama-se pelo cheiro, pelo mistério, pela paz que o outro lhe dá ou elo tormento que provoca.

Ama-se pelo tom da voz, pela maneira que os olhos piscam, pela fragilidade que se revela quando menos se espera.

Ah, o amor essa raposa. Quem dera o amor não fosse um sentimento, mas uma equação matemática: eu linda + você inteligente = dois apaixonados.

Não funciona assim, amor não requer conhecimento nem consulta ao SPC. Ama-se pelo que o Amor tem de indefinível.

Honestos existem aos milhares, generosos têm as pencas, bons motoristas e bons pais de família, tá assim ó!

Mas ninguém consegue ser do jeito que o amor de sua vida é.


Arnaldo Jabor

Um idoso na fila do detran

“O senhor aqui é idoso”, gritava a senhora para o guarda, no meio da confusão na porta do Detran da Avenida Presidente Vargas, apontando com o dedo o tal “senhor”. Como ninguém protestasse, o policial abriu caminho para que o velhinho enfim passasse à frente de todo mundo para buscar a sua carteira.

Olhei em volta e procurei com os olhos o velhinho, mas nada. De repente, percebi que o “idoso” que a dama solitária queria proteger do empurra-empurra não era outro senão eu.

Até hoje não me refiz do choque, eu que já tinha me acostumado a vários e traumáticos ritos de passagem para a maturidade: dos 40, quando em crise se entra pela primeira vez nos “enta”; dos 50, quando, deprimido, se sente que jamais vai se fazer outros 50 (a gente acha que pode chegar aos 80, mas aos 100?); e dos 60, quando um eufemismo diz que a gente entrou na “terceira idade”. Nunca passou pela minha cabeça que houvesse uma outra passagem, um outro marco, aos 65 anos. E, muito menos, nunca achei que viesse a ser chamado, tão cedo, de “ idoso”, ainda mais numa fila do Detran.

Na hora, tive vontade de pedir à tal senhora que falasse mais baixo. Na verdade, tive vontade mesmo foi de lhe dizer: “idoso é o senhor seu pai”. O que mais irritava era ausência total de hesitação ou dúvida. Como é que ela tinha tanta certeza? Que ousadia! Quem lhe garantia que eu tinha 65 anos, se nem pediu pra ver a minha identidade? E o guarda paspalhão, por que não criou um caso, exigindo prova e documentos? Será que era tão evidente assim? Como além de idoso eu era um recém-operado, acabei aceitando ser colocado pela porta a dentro. Mas confesso que furei a fila sonhando com a massa gritando, revoltada: “esse coroa tá furando a fila! Ele não é idoso! Manda ele lá pro fim!” Mas que nada, nem um pio.

O silêncio de aprovação aumentava o sentimento de que eu era ao mesmo tempo privilegiado e vítima – do tempo. Me lembrei da manhã em que acordei fazendo 60 anos: “Isso é uma sacanagem comigo”, me disse, “eu não mereço.” Há poucos dias, ao revelar minha idade, uma jovem universitária reagira assim: “mas ninguém lhe dá isso.” Respondi que, em matéria de idade, o triste é que ninguém precisa dar para você ter. De qualquer maneira, era um gentil consolo da linda jovem. Ali na porta do Detran, nem isso, nenhuma alma caridosa para me “dar” um pouco menos.

Subi e a mocinha da mesa da informações apontou para os balcões 15 e 16, onde havia um cartaz avisando: “Gestantes, deficientes físicos e pessoas idosas.” Hesitei um pouco e ela, já impaciente, perguntou: “o senhor não tem mais de 65 anos? Não é idoso?”

- Não, sou gestante – tive vontade de responder, mas percebi que não carregava nenhum sinal aparente de que tinha amamentado ou estava prestes a amamentar alguém. Saí resmungando: “ não tenho mais, tenho 65 anos.”

O ridículo, a partir de uma certa idade, é como você fica avaro em matéria de tempo: briga por causa de um mês, de um dia. “Você nasceu no dia 14, eu sou do dia 15”, já ouvi essa discussão.

Enquanto espero ser chamado, vou tentando me lembrar quem me faz companhia nesse triste transe. Aí, se não me falha a memória – e essa é a segunda coisa que mais falha nessa idade - , me lembro que Fernando Henrique, Maluf e Chico Anysio estariam sentados ali comigo. Por associação de idéias, ou de idades, vou recordando também que só no jornalismo, entre companheiros de geração, há um respeitável time dos que não entram mais em fila do Detran, ou estão quase não entrando: Ziraldo, Dines, Gullar, Evandro Carlos, Milton Coelho, Janio de Freitas (Lemos, Cony, Barreto, Armando e Figueiró já andam de graça em ônibus há um bom tempo). Sei que devo estar cometendo injustiça com um ou com outro – de ano, meses ou dias -, e eles vão ficar bravos. Mas não perdem por esperar: é questão de tempo.

Ah, sim, onde é que eu estava mesmo? “No Detran”, diz uma voz. Ah, sim. “E o atendimento?” Ah, sim, está mais civilizado, há mais ordem e limpeza. Mas mesmo sem entrar em fila passa-se um dia para renovar a carteira. Pelo menos alguma coisa se renova nessa idade.

Zuenir Ventura

Texto extraído do livro “ As Cem Melhores Crônicas Brasileiras”

sexta-feira, 2 de maio de 2008

Vida de pediatra não é bolinho, não.




— Alô, dr. Felipe? Pelo amor de Deus, o senhor precisa ver o Dudu. Aqui é Rita, mãe dele.

— Rita? Mas peraí... eu acabei de ver o menino! Vocês acabaram de sair do meu consultório.

— Justamente. Estou aqui no elevador, falando do celular. Tô achando que do consultório até aqui, ele piorou um pouco...

— Mas...

— No décimo andar, ele ainda estava bem. No sexto, comecei a achar um pouco quente. Agora, cheguei no térreo e... ele está pelando!

— Rita, isso é impossível! Eu tirei a temperatura dele há cinco minutos! Você tem que levar ele pra casa, ficar de olho e não esquecer de pingar as três gotas no ouvido...

— Mas "três gotas" é muito vago. O senhor esqueceu de falar o... o tamanho da gota.

— Como assim, o "tamanho da gota"?! Eu sei lá! Gota é tamanho único!

— De forma nenhuma. Tem gotas gordas e gotas magras. Tamanho P, M e G! Mas tudo bem, se o senhor está dizendo que não é importante...

— Então ótimo.

— Peraí, só pra rememorar... são três gotas em cada ouvido, três vezes ao dia. Se ele tem dois ouvidos, são 18 gotas por dia. Durante 20 dias, 360 gotas. Acertei?

— Acertou. Meus parabéns. Até mais ver.

— Um momento! E se acontecer de caírem quatro gotas em vez de três?!

— Qual é o problema?

— Eu é que pergunto! Qual é o problema? Ele pode ficar, sei lá... com alguma seqüela no tímpano? Ficar surdo? Mudo? Gago? Gay?

— Se você não desligar agora, eu vou ficar com seqüelas! Eu!

— Tá, calma... Eu posso pelo menos pedir uma última coisa? Só pra eu ficar tranqüila?

— Ai, Jesus! O quê?

— Deixa eu dar um subidinha aí, rápido. Só pro senhor tirar a temperatura dele uma última vez. Eu... Tá, nem precisa tirar a temperatura, basta olhar pra ele.

— Rita!

— Tá, então eu nem subo. O senhor vê ele pela janela! Já estou aqui com ele, na calçada. Estou levantando no colo, bem alto, pro senhor ver melhor! Só uma olhadinha pela janela...


***


— Alô, dr. Felipe.

— Alôoorg... Rita, são quatro da madrugada. É a sétima vez que você me liga hoje.

— Dessa vez é grave. O Dudu vomitou!

— Claro. Ele está com uma intoxicação. E eu já passei a medicação.

— Mas é que não tá normal... Tá assim com uns grânulos... e com umas cascas... e uns pêlos... acho, inclusive, que tem uma mosca no meio.

— Rita, eu vou desligar.

— Dessa vez é diferente! Juro! A cor, sei lá... Sabe aqueles catálogos de cortina? Pois é, não encontrei nenhuma cor que corresponda...

— Procura num catálogo de estofados que você encontra. Boa noite!

— Mas a aparência está horrível! O senhor tem que dar uma olhada!

— Acontece que eu estou de férias em Cancún! Você está me fazendo uma ligação internacional! E eu não vou voltar pro Brasil pra ver as "golfadas" do Dudu!

— Então... eu tiro uma fotografia das golfadas! Mando por Sedex.

— Não faça isso!

— Vou aproveitar e mandar uma foto minha, ampliada, pro senhor ver como eu estou completamente acabada de preocupação. Alô, dr. Felipe? Ué... desligou.


***


— Dr Felipe? É o senhor?

— Não, aqui é da Funilaria Alcântara. Foi engano. Passar bem.

— Não adianta me enganar! Reconheci sua voz.

— Fala, Rita...

— É sobre a meleca do Dudu. Ela está completamente verde e...

— Claro que está verde! Eu nunca vi meleca roxa! Nem azul! Sempre foi verde! Antes de Cristo, ela já era verde. Os romanos, os egípcios... todos tinham melecas verdes! Cleópatra tinha meleca verde!

— Acontece que não é só a questão da cor. É a quantidade. Pro senhor ter uma idéia, eu já juntei um balde e dois tupper-wares só de catarro.

— Um balde e dois tupper-wares??!

— Guardei na geladeira pra poder mostrar pro senhor quando eu conseguir marcar uma hora. Mas do jeito que está difícil, pra não estragar, vou ter que congelar no freezer.

— Peraí, só pra ver se eu entendi. Você vai congelar o catarro do seu filho... pra me mostrar?

— No dia da consulta eu boto no defrost, potência alta e descongelo. A não ser que o senhor queira ver logo. Eu posso deixar os tupper-wares na portaria do consultório.

— Não! De forma nenhuma! Os... os porteiros podem pensar que... é meu almoço!

— Tá. Então eu vou deixar a fita cassete aí. Pelo menos isso.

— Fita cassete?! Que fita cassete?!

— Que eu gravei com a tosse do Dudu. Pro senhor ouvir. E gravei ele falando 33. Se o senhor não se incomodar, vou mandar também a tosse da minha mãe, que está uma coisa pavorosa — parece que ela engoliu um urso.

— Eu... tá... Manda a tosse de quem você quiser. Do seu pai, da sua tia, de alguma vizinha. Grava em fita. Faz um vídeo. Um documentário. E já que chegamos até aí... por que não um longa? Sobre catarro! O filme pode se chamar "Matou a mãe do paciente e foi ao cinema". Que tal?


Elisa Palatnik


Elisa Palatnik, carioca nascida em 1962, desponta com uma das melhores escritoras de humor da nova geração. Começou sua carreira em 1988, como uma das redatoras do Chico Anísio Show. Hoje faz parte da equipe de redação final do programa Sai de Baixo.

O texto acima foi extraído do jornal "O Globo", onde a autora mantinha uma coluna.

quarta-feira, 30 de abril de 2008

De amor antigo

Disseram-me que os jovens decretaram um novo costume às rotinas da arte de namorar. Aliás, para dizer a verdade, percebe-se que o namoro na sua versão clássica do escurinho do cinema, dos beijos serenados no portão, esse está irremediavelmente perdido, revogado pela nova ordem constitucional dos desejos.

E, agora, o que fazem esses rapazes e essas moças, quando se conhecem nos degraus da Faculdade, ganhando os primeiros lances da vida?

Ao cinema, por certo, já não querem ir, por não terem mais o que fazer. Ninguém namora mais diante dos pais, imagine na frente de Humphrey Bogart e de Ingrid Bergman.

Chego a pensar que essa moçada já começa pelo fim. Juntam-se, pensando que amor se faz assim. Depois, separam-se pensando que a vida se desfaz assim...

Deve ser por isso que ninguém se lembra mais de namorar.

Os tempos modernos ensinaram aos moços que a arte de amar começa pelos finalmente.

Findam desconhecendo o amor, já que só têm tempo de provar o gosto final das coisas que jamais souberam começar.

Talvez seja este um defeito dos que, como eu, conheceram esses ofícios pela artesania das mãos, pela lavra dos olhares, pelo talhe doce dos corpos pressentidos e nunca revelados...

O que fazer, então, se assim nos disseram que assim devia ser?

Concederam-me a gradação dos sentidos e me disseram para esperar pelos avisos da alma, senhora das revelações. A grande viagem de um namoro começava nas mãos da estrela amada e podia chegar às galáxias mais encantadas – só dependia do argonauta apaixonado.

Se você ainda pensa conforme esse modelo, meu caro leitor, o defeito é seu. Assim como também é meu. Estamos irremediavelmente perdidos e revogados tal como o Amor Antigo.

Hoje, todos os namoros são executivos (ou serão executórios?). Antes, havia só o sentimento a penhorar. Mas era tudo. Porque se namorava singelamente por conta de um simples depósito de amor, que valia por todos os tesouros deste mundo.

Agora, até mesmo os poetas calaram-se de repente, não mais que de repente...

Nem eles falam mais das artes da paixão. Quando muito, um cronista eternamente apaixonado ainda se atreve a tanto ousar e no amor deixa-se estar.

Coisas de cronista, nada mais.


LUIZ AUGUSTO CRISPIM


(Correio da Paraíba, 13/04/2008, A8.)

terça-feira, 15 de abril de 2008

A última noite de Natal

Os grandes olhos claros e aguados boiavam na sombra nevoenta, cheios de espanto. Esfregou-os, arrastou-se pesado e entanguido, mal seguro à bengala,sentou-se num banco do jardim, fatigado, suspirando, examinou a custo os arredores. Gastou uns minutos passeando as mãos desajeitadas na gola do casaco. 0 exercício penoso enfureceu-o. Resmungou palavras enérgicas e incompreensíveis, esforçou-se por dominar a tremura. Com certeza era por causa do frio que os dedos caprichosos divagavam no pano esgarçado e os queixos banguelos se moviam continuamente. Era por causa do frio, sem dúvida. Se conseguisse abotoar o casaco e levantar a gola, os movimentos incômodos cessariam.

Em que estava pensando ao chegar ali? Ia jurar que pensava em coisas agradáveis. Ou seriam desagradáveis? Pedaços de recordações incoerentes dançavam-lhe no espírito, acendiam-se, apagavam-se, como vaga-lumes, confundiam-se com os letreiros verdes, vermelhos, que se acendiam e apagavam também quase invisíveis na poeira nebulosa. Tentou reunir as letras, fixar a atenção nas mais próximas, brilhantes, enormes.

A igreja toda aberta resplandecia. O incenso formava uma neblina perturbadora. E, através dela, os altares refugiam como sóis, a luz das velas numerosas chispava nas auréolas dos santos.

Que doidice ! Não é que estava imaginando ver ali, nas transitórias claridades, a igreja vista sessenta anos antes? Tresvariava. Sacudiu a cabeça, afastou a lembrança importuna. De que servia desenterrar casos antigos, alegrias e sofrimentos incompletos?

O que devia fazer... Pôs-se a mexer os beiços, procurando nas trevas úmidas e leitosas que o envolviam o resto da frase. O que devia fazer... Repetiu isto muitas vezes, numa cantilena, distraiu-se olhando a chuva amarela, verde, vermelha, dos repuxos. Impossível distinguir as cores. Ultimamente a cidade ia escurecendo. As pessoas que transitavam junto aos canteiros sem flores eram vultos indecisos; .os prédios se diluíam nas ramagens das árvores, manchas negras; os letreiros vacilantes não tinham sentido.

O que devia fazer... De repente a idéia rebelde surgiu. Bem. Devia meter os botões nas casas e agasalhar o pescoço. Depois cruzaria os braços, aqueceria as mãos debaixo dos sovacos, ficaria imóvel e tranqüilo. Mas os dedos finos e engelhados avançavam, recuavam, não havia meio de governá-los. Se pudesse riscar um fósforo, chegá-lo a um cigarro, esqueceria os inconvenientes que o aperreavam: o frio, a dureza das juntas, o tremor, a zoeira constante, sussurro de maribondos assanhados. Dores errantes andavam-lhe no corpo, entravam nos ossos e vinham à pele, arrepiavam os cabelos, fixavam-se nas pernas, esmoreciam.

Agora não estava no banco do jardim, perto das estátuas, das árvores, do coreto, dos esguichos coloridos. Estava longe, a sessenta anos de distância, ajoelhado na grama, diante da igreja da vila. Os rostos embotados, que se dissociavam, juntaram-se no largo onde um padre velho dizia a missa da meia-noite. Fervilhavam matutos em redor das barracas, num barulho de feira, e uma sineta badalava impondo em vão respeito e silêncio. Os cavalinhos rodavam. Esgueiravam-se casais pelos cantos. O padre velho dirigia olhares fulminantes àquela cambada de hereges. Uma figura pequenina cantava os hinos ingênuos, de versos curtos, fáceis. Tudo parecera de chofre muito sério, eterno. Os hinos capengas elevavam-se, estiravam-se. A mulher tinha um rosto de santa e exigia adoração. Sessenta anos. As fachadas enfeitavam-se com lanternas de papel, janelas escancaradas exibiam presépios, listas de foguetes cortavam o céu negro. A sineta badalava, zangada. E o burburinho da multidão não diminuía.

Sessenta anos. Da cinza que ocultava os olhos frios saltou uma faísca; os alfinetes pregados na carne trêmula embotaram-se; o espinhaço curvo endireitou-se; um débil sorriso franziu os beiços murchos; os braços ergueram-se lentos, buscando a imagem de sonho.

Imagem de sonho, que doidice! Era apenas uma bonita criatura de bom coração. Ligara-se a ela. E dezenas de vezes tinham-se os dois ajoelhado ali na grama, olhando as lanternas, os presépios, os foguetes, o padre que dizia a missa da meia-noite. Algumas esperanças, muitos desgostos. Os meninos cresciam, engordavam. E no jardim da casa miúda um jasmineiro recendia.

Depois tudo fora decaindo, minguando, morrendo. Achara-se novamente só. Os filhos e os netos se haviam espalhado pelo mundo. Agora... Que extensa caminhada, que enormes ladeiras, pai do céu ! Já nem se lembrava dos lugares percorridos.

Conseguiu abotoar o casaco e levantar a gola.

Andar tanto e afinal chegar ali, arriar num banco, não perceber as letras que se acendiam . e apagavam.

Certamente àquela hora, diante duma igreja aberta, outro homem novo admirava outra pessoinha ajoelhada, sentia desejos imensos, formava planos absurdos. Os desejos e os planos iam desfazer-se como a. fumaça luminosa dos repuxos.

(20 de dezembro de 1941).

Graciliano Ramos


Texto extraído do livro “Linhas Tortas”, Editora Record – Rio de Janeiro, 1983, pág. 222.