domingo, 19 de agosto de 2007

Tempus fugit: A arte de viver

Em muitas casas, no passado, havia um móvel cuja função era ser um guardião do tempo, refiro-me aos relógios de carrilhão, capazes de marcar as horas com seu canto de passagem e até mesmo os minutos com um tic-tac tão sonoro que se podia ouvir durante todo o dia, particularmente no silêncio da noite. Um antigo mestre, Rubem Alves, costuma dizer que estes relógios, bem como todos os demais, falam conosco, dizem: tempus fugit, o tempo foge, escoa, escapa por entre os nossos dedos. Quanto mais eu vivo, mais me convenço de que isto é verdade.Posso dividir a minha vida em duas fases: a primeira, em que as pessoas me diziam: “você é novo demais pra isso...” e a segunda, em que elas me dizem: “você não vê que já está velho demais pra isso...”. Aí não há como evitar que bata uma angústia. Será que nunca estamos prontos para os desafios da vida? Será que haverá sempre uma inadequação entre a maturidade/capacidade que as pessoas percebem em nós e aquilo que a vida demanda?Eu, de minha parte, jamais liguei para estes “alertas”. Aprendi que eu estou no ponto para viver o dia de hoje! Fiz sempre o que as pessoas não queriam que eu fizesse por ser novo demais e almejo, um dia, me tornar um velho que escandalize até mesmo os meus melhores amigos, fazendo o que não se faz em “certas idades”. O meu compromisso é com a vida e não com a conveniência; com a verdade que se coloca diante dos meus olhos e não com o consenso; com o amor ao próximo e não com o aplauso do próximo. Não quero ser coerente, eu não posso ser.Eu nasci do ventre de minha mãe sozinho e um dia partirei para o ventre da mãe-terra igualmente só, portanto levo a vida com os outros e não para os outros. Quero expressar respeito e carinho, mas não submissão e passividade. Não exijo que ninguém ande comigo, nem que concorde com o meu modo de caminhar. Peço apenas que me respeitem e que me compreendam como um homem fazendo escolhas, as suas escolhas, que é o único modo de se viver.O Senhor me ensinou que a melhor maneira de existir é viver plenamente este fugidio momento que se chama presente, o dia de hoje. O presente é um presente de um Deus presente. Eu preciso torná-lo único, especial, memorável. Para isso, faz-se necessário que eu me desvencilhe do passado. Quero olhar para trás sem mágoas e ressentimentos. Distribuo prodigamente o perdão, a minha “luta não é contra a carne e contra o sangue”, não é contra as pessoas, mas contra idéias, posturas, atitudes e estas foram já não são. Não há porque lutar hoje contra o que só existiu ontem.Também não sou um cruzado, empreendendo “guerras santas”. Deus cuida de si e do que é seu. Se a terra é santa, o é porque Ele a guarda, não eu. A única terra sacrossanta que me foi confiada é o meu próprio coração. Que nele não habitem os ídolos da vaidade, da arrogância, da auto-suficiência; que nele não se erijam altares para a ilusão das riquezas, à opulência mentirosa dos títulos e patentes, à maligna petulância piegas que despreza o abraço e o sorriso.Até hoje nunca vi um soldado-raso prestando continência pra túmulo de general. Os mais belos, os mais sábios, os mais fortes, os mais ricos, os mais virtuosos entre nós, cedo ou tarde, vão virar refeição de tapuru. Mas também não me preocupo com eles. Que esperem muito por mim, porque hoje estou ocupadíssimo vivendo. Quero amar minha mulher debaixo dos nossos lençóis, viajar com meu filho, dançar uma valsa com minha filha, sorrir muito de estórias idiotas com meus amigos, chorar lendo um poema de Drummond, rever velhos filmes, ouvir Chico e quedar-me silencioso ante a beleza inexprimível de um crepúsculo no sertão. Isto é vida, o resto são coisas que fazemos enquanto estas não vêm.Também aprendi a arte de travestir de prazer tudo que se chama obrigação. Quando os professores exigem que leia pilhas de textos sobre assuntos desinteressantes. Eu brinco com os livros, rio deles, chamo-os para passear comigo. Às vezes penso que sou capaz de me divertir lendo até lista telefônica. Nada é impossível pra quem tomou a decisão de rir, sobretudo de si mesmo e de suas inúteis e efêmeras construções. Quando estou preparando um sermão ou escrevendo um texto como este, não penso nas transformações que eles podem promover na vida das pessoas. Sinto a alegria terna e simples de fazer, de pré-parar, como uma mulher que sente tanto prazer em se vestir para o amor como em amar propriamente.Também aprendi a fazer do futuro o meu melhor amigo. Quando penso sobre ele só vejo coisas boas. Não antevejo nem a ruína nem a dor. Se estas me sobrevierem me tomarão de surpresa. Quero que seja assim. Não vou, como já vi muitos, me preparar para o que não quero viver, pois fazê-lo seria um modo de lhe invocar. Ansiedade não é pensar no futuro, é sofrer com o futuro, mas o meu futuro não me faz sofrer, posto que é meu amigo. No futuro eu sou sábio e magro, amado e amante, mestre e aprendiz. Não sou rico, porque ser rico dá muito trabalho.No futuro eu morro, que morrer não é ruim, é só uma viagem que nos “convidam” a fazer antes da hora, e eu embarco em sua nau cheio de curiosidade. Deixo pra trás meus amigos e inimigos chorando, estes por nunca terem me pegado, aqueles por nunca terem me perdido.

Martorelli Dantas

quarta-feira, 15 de agosto de 2007

Fragmentos teóricos sobre crônicas

1º) “(...) capta a solenidade que existe no cotidiano e, ao destacar uma imagem ou uma cena, descobre nela uma humanidade insuspeitada.” (Orelha da capa do livro A vida por viver, Affonso Romano de Sant’Anna, Rocco, 1997.)
“(...) O ponto-e-vírgula torna a frase mais sutil e maleável; só os cronistas consumados chegam lá.” (Pág. 279.)
“Como vê o leitor, o exercício da crônica tem estranhos sortilégios: não apenas o cronista pode ser um eco do leitor, escrevendo um texto que sendo seu pertence ao outro, mas diante de certos fatos ele fica prisioneiro do próprio texto, porque a realidade a que se refere não muda.” (Pág. 285.)

2º) “(...) é o próprio autor quem, num dos textos desta seleção, define a origem do gênero como um encontro de vizinhas a escarafunchar as ocorrências do dia.”
“(...) até ciscar questões filosóficas, sem ferir a normalidade dos fatos”. (“Na poltrona com Machado”, Fernando Paixão. In: Machado de Assis, Fuga do hospício e outras crônicas. Para Gostar de Ler, vol. 26, Ática, 2002, p. 3.)
“(...) Logo se percebe o quanto no dia-a-dia (da política, dos hábitos, das idéias prontas) as cenas do homem civilizado compartilham um sabor de comédia e insensatez.” (Pág. 4.)

3º) “(...) O cronista também precisa respeitar certas convenções e limites mas está livre para produzir seus ovos em qualquer formato.” (Luís F. Veríssimo, “Crônica e ovo”. In: −. O nariz e outras crônicas. Para Gostar de Ler, n. 14, Ática, 11. ed., 3ª impressão, 2004, p. 8.)

4º) “(...) Borboleta, bigode, piada, joelho, tudo serve para conversar. A crônica tem a seriedade das coisas sem a etiqueta. Um cronista de verdade (não eu, aprendiz) devia pedir aos críticos para deixarem a crônica em paz: nada de análises estilísticas. A crônica é a literatura sem pretensão, que não se bate com a morte: sai do casulo, voa no sol da manhã (a crônica é matutina) e, antes que o dia acabe, suas asas desfeitas rolam nas calçadas. Há quem as recorte e as pregue carinhosamente em álbuns. Mas isso é entomologia, não é crônica.” (Ferreira Gullar, “Crônica”. In: −. O menino e o arco-íris e outras crônicas. Para Gostar de Ler, n. 31, Ática, 1. ed., 4ª impressão, 2003, p. 5.)

5º) “Crônica: É um gênero textual em que se apresentam fatos do cotidiano com uma linguagem geralmente informal, levando o leitor a refletir.
“(....) crônica, ou seja, uma narrativa condensada que focaliza um flagrante da vida pitoresco e atual, real ou imaginário com ampla variedade temática. Normalmente, veiculada em jornais ou revistas, a crônica está na fronteira entre texto literário e não literário. Sua linguagem costuma ser subjetiva e coloquial e, sua ação, rápida e sintética. Seus personagens, se comparados com os do conto, têm menos densidade e características psicológicas mais superficiais. Embora predomine as seqüências narrativas, a crônica também pode apresentar textos dissertativos.
(....)
“Esteja a crônica voltada para o âmbito jornalístico ou apresente caráter literário, ela costuma surpreender pelo desprendimento com que são tratados os fatos, em geral relacionados ao cotidiano, a temas atuais.” (...) (Oficina de Redação, Leila L. Sarmento, Editora Moderna, 2006, p.207.)

6º) “Crônica, vamos dizer assim, é um texto a cavalo. Mantém um pé no estribo da literatura. E outro no do jornalismo. Bem estribada desse jeito, tem conseguido vencer belas provas mesmo correndo em pista pesada.
“Você sabe o que é pista pesada? É quando a pista de areia – ou seria saibro? – está molhada, tornando mais difícil e cansativa a corrida.
“Pois bem, a crônica corre em pista pesada porque lida ao mesmo tempo com as coisas mais ásperas, como economia e política, as mais dramáticas, como guerras, violência e tragédia, e as mais poéticas, como um momento de beleza ou uma reflexão sobre a vida. E o bom cronista é aquele que consegue o melhor equilíbrio entre esses elementos tão diferentes, entrelaçando-os e alternando-os com harmonia.
“Pode parecer que o cronista faz biscoitos, ou seja, coisinhas pequenas com algum açúcar por cima. Mas na verdade, a crônica é uma tessitura complexa.
“Pois o cronista sabe que não está escrevendo só naquele momento, naquele dia, para aquela rápida publicação no jornal ou revista, mas está falando para um leitor que, na maioria das vezes, voltará a ele, que o acompanhará, somando dentro de si as crônicas lidas e vivendo-as, no seu todo, como uma obra maior.
“O leitor tem expectativas em relação ao ‘seu’ cronista. Espera que diga aquilo que ele quer ouvir, e que, ao mesmo tempo, o surpreenda. Mas o cronista desconhece essas expectativas e, ao contrário do publicitário que trabalha voltado para o perfil do cliente potencial, trabalha às cegas.
“Às cegas em relação ao leitor, bem entendido. Como preencher então as expectativas? Eu, pesssoalmente, acho que a melhor maneira é não pensando nelas. O leitor escolhe o cronista porque gosta do seu jeito de pensar e de escrever, e o cronista justifica mais plenamente essa escolha continuando a ser quem ele é.
“Eu comecei a fazer crônicas quando muito jovem, logo no início da minha carreira de jornalista. Mudei bastante ao longo do percurso. Antes era movida a emoção, escrevia de um jato, qualquer assunto me servia. Hoje sou mais reflexiva, afinei o olhar, preocupo-me muito com a qualidade das idéias. Mas aquela paixão que eu tinha no princípio continua igual. Hoje como ontem, toda vez que me sento para escrever uma crônica é com alegria. (“Um texto a cavalo”, Marina Colasanti. In: -. A casa das palavras e outras crônicas. São Paulo: Ática, 1ª ed., 2002, p. 5, Para Gostar de Ler, vol. 32.)

7º) “A crônica é o espaço em que o escritor transita pelo cotidiano, discute eventos, opina, reivindica, ironiza, evoca, conta casos, experimenta escritas, expõe emoções. Lirismo, humor, indignação, meditação – tudo vale. Ela não é uma forma, como o soneto, e não é um gênero, como o conto; na verdade, há crônicas que são dissertações, outras são poema em prosa, outras são pequenos contos. Pode-se imitar o que Mário de Andrade disse sobre o conto: ‘crônica é tudo o que o autor chama de crônica’. Nascida na imprensa, ela ocupa uma coluna de jornal ou uma página de revista; seu universo é tudo o que possa interessar ao leitor de periódicos.
“Muitas vezes o escritor usa aquele espaço para testar o efeito de um texto que depois incluirá em uma obra maior. O cronista Machado de Assis fez isso. Fernando Sabino fez. Eu já fiz.” (“Ler com prazer e espírito leve”, Ivan Ângelo. In: - O comprador de aventuras e outras crônicas. São Paulo: Ática, 2ª ed., 2003, p. 7, Para Gostar de Ler, vol. 28.)

quarta-feira, 8 de agosto de 2007

Affonso Romano de Sant'Anna

Há um período em que os pais vão ficando órfãos de seus próprios filhos. É que as crianças crescem independentes de nós, como árvores tagarelas e pássaros estabanados. Crescem sem pedir licença à vida. Crescem com uma estridência alegre e, às vezes, com alardeada arrogância. Mas não crescem todos os dias de igual maneira. Crescem de repente.

Um dia sentam-se perto de você no terraço e dizem uma frase com tal maturidade que você sente que não pode mais trocar as fraldas daquela criatura. Onde é que andou crescendo aquela danadinha que você não percebeu? Cadê a pazinha de brincar na areia, as festinhas de aniversário com palhaços e o primeiro uniforme do maternal? A criança está crescendo num ritual de obediência orgânica e desobediência civil. E você está agora ali, na porta da discoteca, esperando que ela não apenas cresça, mas apareça! Ali estão muitos pais ao volante, esperando que eles saiam esfuziantes sobre patins e cabelos longos, soltos. Entre hambúrgueres e refrigerantes nas esquinas, lá estão nossos filhos com uniforme de sua geração: incômodas mochilas da moda nos ombros. Ali estamos, com os cabelos esbranquiçados. Esses são os filhos que conseguimos gerar e amar, apesar dos golpes dos ventos, das colheitas, das notícias e da ditadura das horas. E eles crescem meio amestrados, observando e aprendendo com nossos acertos e erros. Principalmente com os erros que esperamos que não repitam.

Há um período em que os pais vão ficando um pouco órfãos dos próprios filhos. Não mais os pegaremos nas portas das discotecas e das festas. Passou o tempo do ballet, do inglês, da natação e do judô. Saíram do banco de trás e passaram para o volante de suas próprias vidas. Deveríamos ter ido mais à cama deles ao anoitecer para ouvir sua alma respirando conversas e confidências entre os lençóis da infância, e os adolescentes cobertores daquele quarto cheio de adesivos, pôsteres, agendas coloridas e discos ensurdecedores. Não os levamos suficientemente ao Playcenter, ao Shopping, não lhes demos suficientes hambúrgueres e cocas, não lhes compramos todos os sorvetes e roupas que gostaríamos de ter comprado. Eles cresceram sem que esgotássemos nele todo nosso afeto.

No princípio subiam a serra ou iam à casa de praia entre embrulhos, bolachas, engarrafamentos, natais, páscoas, piscina e amiguinhos.

Sim, havia as brigas dentro do carro, a disputa pela janela, os pedidos de chicletes e cantorias sem fim. Depois chegou o tempo em que viajar com os pais começou a ser um esforço, um sofrimento, pois era impossível deixar a turma e os primeiros namorados.

Os pais ficaram exilados dos filhos. Tinham a solidão que sempre desejaram, mas, de repente, morriam de saudades daquelas “pestes.” Chega o momento em que só nos resta ficar de longe torcendo e rezando muito (nessa hora, se agente tinha desaprendido, reaprende a rezar) para que eles acertem nas escolhas em busca de felicidade. E que a conquistem do modo mais completo possível. O jeito é esperar: qualquer hora podem nos dar netos. O neto é a hora do carinho ocioso e estocado, não exercido nos próprios filhos, e que não pode morrer conosco. Por isso os avós são tão desmesurados e distribuem tão incontrolável carinho. Os netos são a última oportunidade de reeditar o nosso afeto. Por isso é necessário fazer alguma coisa a mais antes que eles cresçam.

Aprendemos a ser filhos depois que somos pais. Só aprendemos a ser pais depois que somos avós...

Amigos


Tenho amigos que não sabem o quanto são meus amigos. Não percebem o amor que lhes devoto e a absoluta necessidade que tenho deles.

A amizade é um sentimento mais nobre do que o amor, eis que permite que o objeto dela se divida em outros afetos, enquanto o amor tem intrínseco o ciúme, que não admite a rivalidade.

E eu poderia suportar, embora não sem dor, que tivessem morrido todos os meus amores, mas enlouqueceria se morressem todos os meus amigos! Até mesmo aqueles que não percebem o quanto são meus amigos e o quanto minha vida depende de suas existências...

A alguns deles não procuro, basta-me saber que eles existem.

Esta mera condição me encoraja a seguir em frente pela vida.

Mas, porque não os procuro com assiduidade, não posso lhes dizer o quanto gosto deles. Eles não iriam acreditar.

Muitos deles estão lendo esta crônica e não sabem que estão incluídos na sagrada relação de meus amigos.

Mas é delicioso que eu saiba e sinta que os adoro, embora não declare e não os procure.

E às vezes, quando os procuro, noto que eles não tem noção de como me são necessários, de como são indispensáveis ao meu equilíbrio vital, porque eles fazem parte do mundo que eu, tremulamente, construí e se tornaram alicerces do meu encanto pela vida.

Se um deles morrer, eu ficarei torto para um lado. Se todos eles morrerem, eu desabo!

Por isso é que, sem que eles saibam, eu rezo pela vida deles. E me envergonho, porque essa minha prece é, em síntese, dirigida ao meu bem estar. Ela é, talvez, fruto do meu egoísmo.

Por vezes, mergulho em pensamentos sobre alguns deles.

Quando viajo e fico diante de lugares maravilhosos, cai-me alguma lágrima por não estarem junto de mim, compartilhando daquele prazer...

Se alguma coisa me consome e me envelhece é que a roda furiosa da vida não me permite ter sempre ao meu lado, morando comigo, andando comigo, falando comigo, vivendo comigo, todos os meus amigos, e, principalmente os que só desconfiam ou talvez nunca vão saber que são meus amigos!

"A gente não faz amigos, reconhece-os."


(Vinícius de Moraes)