domingo, 22 de fevereiro de 2009

À noite, ronda a maldição de Moudros

Um amigo me escreve dizendo que durante uma noite de insônia, em um hospital de Paris onde havia sido operado, escreveu mentalmente dois capítulos de um romance que há muitos anos cortejava em vão. Na noite seguinte, nova insônia, e mais dois capítulos. Ao sair de lá, levava dez capítulos do romance debaixo do braço, pois de manhã, ao acordar (se assim se pode dizer de alguém que praticamente não dormiu), pegava papel e lápis e anotava tudo aquilo que a insônia lhe havia ditado. Embora cubano, meu amigo Joel Rosell estava sendo vítima da distante maldição de Moudros.

Moudros é uma aldeia da ilha grega de Limnos, o que nos autoriza a imaginá-la branca como são brancas as aldeias gregas agarradas nas pedras e franjadas do mar. Igualmente brancas, porém, eram até poucos anos atrás as noites dos seus habitantes. Ali ninguém dormia ou deveria dormir. Uma antiga maldição encarregava-se de espantar o sono dos pobres aldeões.

A história tem origem no século XIX, em plena guerra greco-turca, quando os habitantes de Moudros mataram uns tantos turcos e atiraram os cadáveres num poço de propriedade de um mosteiro do monte Athos. Foi um erro. Os turcos encontraram os cadáveres e, pensando que os monges tivessem sido os assassinos, retribuíram matando todos eles e incendiando suas construções. Todos, não, dois escaparam, refugiaram-se em outro mosteiro, e de lá emitiram sua maldição: doravante, para remoer sua culpa, nenhum habitante de Moudros haveria de dormir.
A partir de então, durante mais de cem anos, todo dia 23 de agosto, os cerca de três mil monges da comunidade religiosa do monte Athos repetiram a maldição em forma de canto litúrgico.

Nos quartos escuros das brancas casas de Moudros certamente houve aldeões que passaram noites sem dormir. Que belos romances, que elegias, que concertos teriam produzido se, em vez de pensar nos frades, tivessem ouvido seu ditado interior.

Penso no meu amigo em seu leito de hospital. Na primeira noite, quando em meio ao desconforto e à dor o sono não veio, ele deve ter começado a escrever sem empenho, à toa, só para atravessar o tempo que o separava da manhã. Mas na segunda noite, quando já tinha dois capítulos e a urgência de chegar aos seguintes, desejou que o sono não viesse, para permitir-lhe avançar no silêncio.

Na insônia, tanto faz abrir os olhos ou mantê-los fechados, tudo é escuridão. E na escuridão uma palavra, uma palavra que inevitavelmente trará outras atrás de si, bate como um aríete na consciência exigindo atenção, exigindo portas abertas. O insone sabe que se a aceitar perderá a possibilidade de adormecer. E ainda assim ouve sua voz como um canto de sereia. Se ceder à palavra, à infindável família das palavras, terá que dobrar-se às suas exigências, será posto a ferros como o remador de uma galé. E remará a noite toda levando adiante a nau que, palavra a palavra, se constrói. À noite, não basta submeter-se às palavras, há que memorizá-las, repeti-las à medida que se fazem à frente e são escolhidas, gravá-las no basalto da memória para que não se esfumem com o dia.

Sim, é claro, pode o insone levantar-se, acender uma luz na escuridão da casa, ligar o computador. Mas sabe que se o fizer estará perdendo a condição quase fetal da insônia, em que as palavras não são bem palavras mas vozes, ecos vindos de um distante flutuar, que trazem discursos alheios a nós mesmos. Então ele rema e rema na escuridão, para alcançar um capítulo, um poema ou apenas uma frase.


(COLASANTI, Marina. À noite, ronda a maldição de Moudros. In: ─ . Os últimos lírios no estojo de seda. Belo Horizonte: Editora Leitura, 2007, pp. 12-4, “Crônicas Ilustradas”, vol. 1.)

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

O Enterro do Sinhô

J. B. SILVA, o popular Sinhô dos mais deliciosos sambas cariocas, era um desses homens que ainda morrendo da morte mais natural deste mundo dão a todos a impressão de que morreram de acidente. Zeca Patrocínio, que o adorava e com quem ele tinha grandes afinidades de temperamento, era assim também: descarnado, lívido, frangalho de gente, mas sempre fagueiro, vivaz, agilíssimo, dir-se-ia um moribundo galvanizado provisoriamente para uma farra. Que doença era a sua? Parecia um tísico nas últimas. Diziam que tinha muita sífilis. Certamente o rim estava em pantanas. Fígado escangalhado. Ouvia-se de vez em quando que o Zeca estava morrendo. Ora em Paris, ora em Todos os Santos, subúrbio da Central. E de repente, na Avenida, a gente encontrava o Zeca às três da madrugada, de smoking, no auge da excitação e da verve. Assim me aconteceu uma vez, e o que o punha tão excitado naquela ocasião era precisamente a última marcha carnavalesca de Sinhô, o famoso Claudionor...

que pra sustentar família
foi bancar o estivador...

Me apresentaram a Sinhô na câmara-ardente do Zeca. Foi na pobre nave da igreja dos pretos do Rosário. Sinhô tinha passado o dia ali, era mais de meia-noite, ia passar a noite ali e não parava de evocar a figura do amigo extinto, contava aventuras comuns, espinafrava tudo quanto era músico e poeta, estava danado naquela época com o Vila e o Catulo, poeta era ele, músico era ele. Que língua desgraçada! Que vaidade! mas a gente não podia deixar de gostar dele desde logo, pelo menos os que são sensíveis ao sabor da qualidade carioca. O que há de mais povo e de mais carioca tinha em Sinhô a sua personificação mais típica, mais genuína e mais profunda. De quando em quando, no meio de uma porção de toadas que todas eram camaradas e frescas como as manhãs dos nossos suburbiozinhos humildes, vinha de Sinhô um samba definitivo, um Claudionor, um Jura, com um "beijo puro na catedral do amor", enfim uma dessas coisas incríveis que pareciam descer dos morros lendários da cidade, Favela, Salgueiro, Mangueira, São Carlos, fina-flor extrema da malandragem carioca mais inteligente e mais heróica... Sinhô!

Ele era o traço mais expressivo ligando os poetas, os artistas, a sociedade fina e culta às camadas profundas da ralé urbana. Daí a fascinação que despertava em toda a gente quando levado a um salão.

Vi-o pela última vez em casa de Álvaro Moreyra. Sinhô cantou, se acompanhando, o "Não posso mais, meu bem, não posso mais", que havia composto na madrugada daquele dia, de volta de uma farra. Estava quase inteiramente afônico. Tossia muito e corrigia a tosse bebendo boas lambadas de Madeira R. Repetiu-se a toada um sem número de vezes. Todos nós secundávamos em coro. Terán, que estava presente, ficou encantado.

Não faz uma semana eu estava em casa de um amigo onde se esperava a chegada de Sinhô para cantar ao violão. Sinhô não veio. Devia estar na rua ou no fundo de alguma casa de música, cantando ou contando vantagem, ou então em algum botequim. Em casa é que não estaria; em casa, de cama, é que não estaria. Sinhô tinha que morrer como morreu, para que a sua morte fosse o que foi: um episódio de rua, como um desastre de automóvel. Vinha numa barca da Ilha do Governador para a cidade, teve uma hemoptise fulminante e acabou.

Seu corpo foi levado para o necrotério do Hospital Hahnemanniano, ali no coração do Estácio, perto do Mangue, à vista dos morros lendários... A capelinha branca era muito exígua para conter todos quantos queriam bem ao Sinhô, tudo gente simples, malandros, soldados, marinheiros, donas de rendez-vous baratos, meretrizes, chauffeurs, macumbeiros (lá estava o velho Oxunã da Praça Onze, um preto de dois metros de altura com uma belida num olho), todos os sambistas de fama, os pretinhos dos choros dos botequins das ruas Júlio do Carmo e Benedito Hipólito, mulheres dos morros, baianas de tabuleiro, vendedores de modinhas... Essa gente não se veste toda de preto. O gosto pela cor persiste deliciosamente mesmo na hora do enterro. Há prostitutazinhas em tecido opala vermelho. Aquele preto, famanaz do pinho, traja uma fatiota clara absolutamente incrível. As flores estão num botequim em frente, prolongamento da câmara-ardente. Bebe-se desbragadamente. Um vaivém incessante da capela para o botequim. Os amigos repetem piadas do morto, assobiam ou cantarolam os sambas (Tu te lembra daquele choro?). No cinema d'a Rua Frei Caneca um bruto cartaz anunciava "A Última Canção" de Al Johnson. Um dos presentes comenta a coincidência. O Chico da Baiana vai trocar de automóvel e volta com um landaulet que parece de casamento e onde toma assento a família de Sinhô. Pérola Negra, bailarina da companhia preta, assume atitudes de estrela. Não tem ali ninguém para quebrar aquele quadro de costumes cariocas, seguramente o mais genuíno que já se viu na vida da cidade: a dor simples, natural, ingênua de um povo cantador e macumbeiro em torno do corpo do companheiro que durante tantos anos foi por excelência intérprete de sua alma estóica, sensual, carnavalesca.


Manuel Bandeira


Na crônica acima, extraída do livro “Os Reis Vagabundos e mais 50 crônicas”, Editora do Autor, Rio de Janeiro, 1966, pág. 11, ele narra sua convivência em vida com o famoso compositor da música popular brasileira, Sinhô, que muitos dizem ser o autor do primeiro samba, e a cena de seu velório, o que a faz uma peça descritiva de alto valor.