sábado, 1 de novembro de 2014

Luz de lanterna, sopro de vento

Tendo o marido partido para a guerra, na primeira noite da sua ausência a mulher acendeu uma lanterna e pendurou-a do lado de fora da casa. "Para trazê-lo de volta," murmurou. E foi dormir.
 
Mas, ao abrir a porta na manhã seguinte, deparou-se com a lanterna apagada. "Foi o vento da madrugada," pensou olhando para o alto como se pudesse vê-lo soprar.
 
À noite, antes de deitar, novamente acendeu a lanterna que, a distância deveria indicar ao seu homem o caminho de casa.
 
Ventou de madrugada. Mas era tão tarde e ela estava tão cansada que nada ouviu, nem o farfalhar das árvores, nem o gemido das frestas, nem o ranger das argolas da lanterna. E de manhã surpreendeu-se ao encontrar a luz apagada.
 
Naquela noite, antes de acender a lanterna, demorou-se estudando o céu límpido, as claras estrelas. "Na certa não ventará," disse em voz alta, quase dando uma ordem. E encostou a chama do fósforo no pavio.
 
Se ventou ou não, ela não saberia dizer. Mas antes que o dia raiasse não havia mais nenhuma luz, a casa desaparecia nas trevas.
 
Assim foi durante muitos e muitos dias, a mulher sem nunca desistir acendendo a lanterna que o vento, com igual constância apagava.
 
Talvez meses tivessem passado quando num entardecer, ao acender a lanterna, a mulher viu ao longe recortada contra a luz que lanhava em sangue o horizonte, a silhueta escura de um homem a cavalo. Um homem a cavalo que galopava na sua direção.
 
Aos poucos, apertando os olhos para ver melhor, destinguiu a lança erguida ao lado da sela, os duros contornos da couraça. Era um soldado que vinha. Seu coração hesitou entre o medo e a esperança. O fôlego se reteve por instantes entre lábios abertos. E já podia ouvir os cascos batendo sobre a terra, quando começou a sorrir. Era seu marido que vinha.
 
Apeou o marido. Mas só com um braço rodeou-lhe os ombros. A outra mão pousou na empunhadura da espada. Nem fez menção de encaminhar-se para a casa.
 
Que não se iludisse. A guerra não havia acabado. Sequer havia acabado a batalha que deixara pela manhã. Coberto de poeira e sangue, ainda assim não havia vindo para ficar. "Vim porque a luz que você acende à noite não me deixa dormir," disse-lhe quase ríspido. "Brilha por trás das minhas pálpebras fechadas, como se me chamasse. "Só de madrugada depois que o vento sopra posso adormecer."
 
A mulher nada disse. Nada pediu. Encostou a mão no peito do marido, mas o coração dele parecia distante, protegido pelo couro da couraça.
 
"Deixe-me fazer o que tem de ser feito, mulher," disse sem beijá-la. De um sopro apagou a lanterna. Montou a cavalo, partiu. Adensavam-se as sombras, e ela não pode sequer vê-lo afastar-se contra o céu.
 
A partir daquela noite, a mulher não acendeu mais nenhuma luz. Nem mesmo a vela dentro de casa, não fosse a chama acender-se por trás das pálbebras do marido.
 
No escuro, as noites se consumiam rápidas. E com elas carregavam os dias, que a mulher nem contava. Sem saber ao certo quanto tempo havia passado, ela sabia porém que era tanto.
 
E, passado , num final de tarde em que a soleira da porta despedia-se da última luz no horizonte, viu desenhar-se lá longe a silhueta de um homem. Um homem à pé que caminhava na sua direção. Protegeu os olhos com a mão para ver melhor e aos poucos, porque o homem avançava devagar, começou a distinguir a cabeça baixa, o contorno dos ombros cansados. Contorno doce, sem couraça, retendo o sorriso nos lábios- tantos homens haviam passado sem que nenhum fosse o que ela esperava. Ainda não podia ver-lhe o rosto, oculto entre a barba e o chapéu, quando deu o primeiro passo e correu ao seu encontro, liberando o coração. Era seu marido que voltava da guerra.
 
Não precisou perguntar-lhe se havia vindo para ficar. Caminharam até a casa. Já iam entrar. Quando ele se reteve. Sem pressa voltou-se, e, embora a noite ainda não tivesse chegado, acendeu a lanterna. Só entrou com a mulher. E fechou a porta.
 
COLASANTI, Marina."Luz de lanterna, sopro de vento ". IN: Um Espinho de Marfim e outras histórias. Porto Alegre: L&PM. p. 39,1999.

segunda-feira, 28 de julho de 2014

Biografia

Jamais hei de saber a imagem que os outros têm de mim. Eu me conheço dos espelhos, das fotografias dos reflexos, quando meus olhos param para se olhar e a diferença de ângulos impede criar uma dimensão real. Não sei os movimentos do meu rosto. Nunca me vi pela primeira vez. Tenho, de mim mesma, uma idéia preconcebida que alia o espírito aos traços fisionômicos e ao desejo de uma outra beleza. Criei, assim, uma pessoa invisível, mais real, para mim, do que qualquer outra. Dessa pessoal eu gosto. E, talvez por saber-me sua única amiga, ela me enternece profundidade.

Vejo um rosto oval, de maçãs altas, a linha fácil e cheia descendo até meu queixo redondo, com uma doçura infantil. Os olhos grandes, plantados com sabedoria, são verdes, compridos, muito separados; tôda vez que alguém busca em mim algo a elogiar, apega-se aos olhos, e ficou-me convencido que tenho olhos bonitos. Entre eles, ocupando mais espaço do que o estritamente necessário, meu nariz é elemento básico para manter viva a ilusão de que no dia em que resolver ficar bonita, será suficiente operá-lo. A bôca, desenhada em redondos, tem o lábio superior pequeno e o de baixo cheio; divide-se, nítida, em luz e sombra, e somente os cantos virados para baixo a diferenciam de minha bôca de menina.

Ao redor da cabeça pequena sinto o cabelo despenteado. Curto, desce em vírgulas sôbre a testa, diante das orelhas e na nuca, deixando livre o pescoço. Sempre tive a impressão de um pescoço gracioso e longo, impressão provàvelmente devida à magreza com que surge dos ombros, prêso por tendões fortes, como se fôsse um esfôrço erguer-se entre os omoplatas.

Vejo um corpo de garôto, os ossos largos e parente confirmando a boa estrutura. Nos meus braços, o sol desenha veias e músculos. As costas são mais estreitas do que deveriam. Os seios, promessa nunca concretizada. A cintura, pequena. Nos quadris e nas pernas, uma capacidade de fôrça não solicitada. As mãos prendem-se ao punho sem hesitação, a palma é larga, os dedos fortes. Os pés são de pedra.

Quando me olho nas vitrines, de soslaio, tenho a passo seguro. Ando rápida, um pouco por pressa, um pouco pelo prazer físico de sentir o corpo em ação, obediente e jovem. Gosto de andar, e o faço com cuidado, sentindo o balanço e o apoio, prestando atenção. Tenho muito amor a meus gestos.

Quase não pisco. Às vêzes, a intensidade com que olho, querendo ver, doi-me nas têmporas. Quando estou sozinha nunca sorrio, mas sorrio muito, com prazer e consciência, quando companhia.

Quisera ser mais frágil do que sou. E me orgulho de minha fôrça. Meu rosto é antigo. Ninguém mais moderno. Jovem, tenho tôda a minha velhice. A resistência me assusta. A liberdade me pesa. Não quero ser livre.

Gostaria de ser como os outros me vêm. Ou que os outros me vissem como sou. Haveria, assim, uma única pessoa.


Marina Colasanti

Crônica 1 do livro Eu Sozinha, lançado pela Record em 1968. Este foi o primeiro livro da autora.

domingo, 20 de abril de 2014

Neném Pelado

Neném Pelado ajeita a cabeleira negra. Cabelo pintado, "que o homem tem de prezar a aparência". E ri sacudindo o queixo, o maxilar toureando a dentadura dentro da boca. Nasceu Silício, o nome que o pai alfaiate ouviu num programa de rádio e achou lindo. Mas Silício - para desgosto do pai - ninguém guardava. O molequinho, que andava nu por entre as tiras de gabardine e tafetá espalhadas no chão da oficina, virou, então, Neném Pelado.

A ninguém mais causam estranheza a longevidade e a incongruência do apelido aplicado ao homem de setenta anos. É assim que os vizinhos o chamam e é assim que é conhecido em Jessiape, cidadezinha baiana às margens do rio Contas, no sopé da Chapada Diamantina.

Neném Pelado me recebe na porta, muito bem-composto, com sandálias, bermuda de tergal e uma camiseta do São Paulo Futebol Clube. Não por ser torcedor, mas porque gosta de vestir branco.

Com o dedo, aponta para a placa pregada no coqueiro do quintal: Jardim do Éden. O paraíso idílico de chão batido tem escassos atrativos. Um toldo de lona protege um colchão puído do rigor do adobe, inacabado e tosco, Neném Pelado mantém inabitado.

- Só sou digno de morar ali quando encontrar o que procuro - diz, entrando comigo no casebre para explicar melhor.

Banheiro, sala, cozinha, todos os cômodos órfãos de vida e mobília, peças vazias, empoeiradas. Todos, menos um. No único quarto, há uma cama branca coberta com uma colcha de cetim cor-de-rosa e adornada por almofadas em forma de coração. Na parede, gravuras com paisagens alpinas. Sobre o criado-mudo, um pequeno abajur florido.

- É para o meu amor - esclarece, voltando para o exílio autoimposto de um Éden sem Eva.

Deita-se no colchão e, debaixo do toldo, mostra a carta que escreveu para a rádio da cidade: "Senhor distinto procura coração solitário...".

Oh, damas da Bahia, ouvi o apelo do romântico cavalheiro de Jussiape, salvai a humanidade inteira, fazei soar nas ondas do rádio o golpe fatal a extirpar a solidão do vale do rio Contas, pois, sobre a cama, há uma colcha de cetim para acomodar todo o amor do mundo.


Marcelo Canellas, in Províncias. Crônicas da alma interiorana, pag. 49