sábado, 31 de dezembro de 2011

Felicidade clandestina

Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme; enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.

Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como "data natalícia" e "saudade".

Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.

Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.

Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.

Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.

No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.

Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de livraria era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do "dia seguinte" com ela ia se repetir com meu coração batendo.

E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.

Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.

Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!

E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: "E você fica com o livro por quanto tempo quiser." Entendem? Valia mais do que me dar o livro: "pelo tempo que eu quisesse" é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.

Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.

Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar… Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.

Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.

Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com um amante.


Clarice Lispector

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Do amor à pátria

São doces os caminhos que levam de volta à pátria. Não à pátria amada de verdes mares bravios, a mirar em berço esplêndido o esplendor do Cruzeiro do Sul; mas a uma outra mais íntima, pacífica e habitual - uma cuja terra se comeu em criança, uma onde se foi menino ansioso por crescer, uma onde se cresceu em sofrimentos e esperança canções, amores e filhos ao sabor das estações.

Sim, são doces as rotas que reconduzem o homem à sua pátria, e tão mais doces quanto mais ele teve, viu e conheceu outras pátrias de outros homens. Assim eu, ausente pela segunda vez de uma ausência de muitos anos quando, dentro da noite a bordo, os dedos a revirar o dial do ondas-curtas, aguardava o primeiro balbucio de minha pátria como um pai à espera da primeira palavra do seu filho. O coração batia-me como batera um dia, à poesia sonhada, ou como uma outra vez, diante de uns olhos de mulher.

- O sr. tem certeza de que isso é mesmo um ondas-curtas?

O camareiro norueguês, grande e tranqüilo, limitou-se a sorrir misteriosamente. Depois, humano, inclinou-se sobre o aparelho, o ouvido atento, e pôs-se a tentar por sua vez. As ondas sonoras iam e vinham verrumando a minha angústia.

Onde estava ela, a minha pátria que não vinha falar comigo ali dentro do mar escuro?

E de repente foi uma voz que mal se distinguia, balbuciando bolhas de éter, mas pensei no meio delas distinguir um nome: o nome de Iracema. Não tinha certeza, mas pareceu-me ouvir o nome de Iracema entre os estertores espásmicos do aparelho receptor.

Deus do Céu! Seria mesmo o nome de Iracema?

Era sim, porque logo depois chegou a afirmar-se, mas quase imperceptível, como se pronunciado por um gnomo montado em minha orelha. Era o nome de Iracema, da Rádio Iracema, de Fortaleza, a emissora dos lábios de mel, que sai mar afora, enfrentando os espaços oceânicos varridos de vento para trazer a um homem saudoso o primeiro gosto de sua pátria.

Adorável prefixo noturno, nunca te esquecerei! Foste mais uma vez essa coisa primeira tão única como o primeiro amigo, a primeira namorada, o primeiro poema. E a ti eu direi: é possível que o padre Vieira esteja certo ao dizer que a ausência é, depois da morte, a maior causa da morte do amor. Mas não do amor à terra onde se cresceu e se plantou raízes, à terra a cuja imagem e semelhança se foi feito e onde um dia, num pequeno lote, se espera poder nunca mais esperar.


Vinícius de Morais


A crônica acima foi copiada do site Vinícius de Moraes

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Sábias e rouxinóis

Nos meus tempos de criança tive um tio que era grande contador de histórias. Este dom, se o tornava querido da criançada, era também uma fonte de maçadas. Bastava um dia de chuva, ou um de nós preso na cama por um resfriado, já Tio Fausto era requisitado para nos distrair. Embora sua paciência e imaginação fossem quase inesgotáveis, certas vezes refugavam a tarefa, e vinha então o recurso que nos obrigava a desistir do intento: "Em Portugal canta o rouxinol e aqui no Brasil canta o sabiá, mas a distância entre cá e lá é tão grande que o que se canta cá não se ouve lá, e o que se canta lá não se ouve cá. Por isso é que ninguém sabe a história da casinha amarela que eu vou contar. Quer que eu conte?... Em Portugal canta o rouxinol..." E a cantilena recomeçava até que o mais persistente entregasse os pontos,

Lembrei-me desta velha história quando, viajando por quase toda a Europa sem qualquer dificuldade, em Portugal apenas consegui fazer-me entender e a custo compreendia a gente da terra. Não é só que o português engula bom número de sílabas, nem que a pronúncia seja carregada e outra a sintaxe, dando à frase um tom que ao brasileiro parece pomposo. É que as palavras usadas na linguagem corrente são outras ou têm sentido diferente do nosso. Assim foi que, perguntando ao porteiro do hotel em Lisboa se havia trem para a praia da Nazaré, o homem respondeu-me em tom de espanto: — "Trem não, minha Senhora, que é demasiado distante..."

Que eu saiba, o trem foi inventado justamente para as grandes distâncias, mas não discuti, — "E ônibus?"

— "Ai, minha Sra., de ônibus V. Excia. levaria o dia todo para lá chegar. É preferível a camionete". — "Camionete... (pensei num caminhão pequeno e fechado) mas não será muito incômodo?" E o diálogo continuou até que se esclarecesse o quiproquó: Em Portugal trem é carro puxado por cavalos, ônibus é o nosso trem vagaroso que chamamos leiteiro, camionete é nosso ônibus, sendo que toda esta complicação teria sido evitada se, de início, eu tivesse perguntado pelo combóio.

Quem passou por Lisboa numa escala rápida, sabe da inutilidade de indagar onde se toma o bonde, expressão totalmente desconhecida e sem relação com "o elétrico", e se, na pressa da partida, quiser saber como ir até o navio, terá que perguntar pelo barco, à moda da terra. Na conversa, portugueses e brasileiros regalam-se de ouvir um do outro expressões e modismos que lhes parecem do melhor cômico. O português não sabe o que é "dar uma prosa", e se quer tirar um cochilo fala em "passar pelas brasas". Já no telefone leva-se um susto quando em vez de alô ouve-se um berro: — "Está lá?..." e a telefonista perplexa não entende que meia dúzia é seis.

Nas compras a confusão é ainda maior; quem quiser ir a uma loja de armarinho comprar carretel de linha, cadarço, colchetes, grampos, terá que procurar o retroveiro onde peça um carrinho de fio, nastro, molas e ganchos, sendo que as vitrinas são montras, as meias de homem peúgas, as mulheres é que usam cuecas e o homens calções. Numa casa de doces pedi balas, e responderam-me que só em loja de armas; quando apontei o que queria foi um alívio: — "Ah, V. Excia. quer rebuçados e caramelos, ou, sob a influência americana, "drops", mas nada de balas.

Ali chocolate é uma coisa e cacau outra, conforme aprendeu uma brasileira que pedindo "chocolate na xícara" teve a pronta resposta: — "Não há, minha Sra. Só temos cacau em chávena." Realmente existe a diferença , o chocolate sendo o cacau preparado com leite e a chávena um termo caído em desuso, só empregado pelos que apreciam os arcaísmos.

Creio que o português tem um vocabulário mais amplo que o nosso e usa os termos com mais exatidão, sendo também incapaz de interpretar o pensamento incorretamente expresso pela sintaxe brasileira. Assim foi que um amigo meu, pedindo uma lata de bolachas, após longa espera recebeu uma lata cuidadosamente aberta e esvaziada. Ao seu protesto, o próprio gerente da loja veio dar razão ao empregado: — "V. Excia. pediu uma lata "de" bolachas, e aí está. Se pedisse uma lata "com" bolachas, a coisa era outra".

Foi para evitar mal-entendidos que, ainda na praia da Nazaré, o copeiro da pensão encerrou assim nosso diálogo: — "Seu Leandro, esta noite os pernilongos não me deixaram dormir". — "Perdão, minha Sra.?" — "Os mosquitos, Seu Leandro". — "Ai, V. Excia. quer dizer os melgas?..." — "Não sei se são melgas, mas diga-me, aqui há maleita?" — "Perdão, minha Sra.?" — "Digo malária.." O homem olhou-me de banda e teve uma inspiração: — "V. Excia. não prefere falar em francês ou inglês?..."

Tinha razão o bom do homem. Assim que abandonamos o vernáculo nos entendemos perfeitamente.

Vejo agora nos jornais que vamos ter um Congresso da Língua Portuguesa, ao qual comparecerão seis filólogos lusitanos, e tenho medo que este grupo de escol resolva mexer outra vez na nossa ortografia, quando não tente unificar a língua d'aquém e d'além-mar.

Francamente, não vejo porque reviram e reformam a pobre ortografia, quando a língua falada em cada pais é tão diversa. As reformas só têm tido o magnífico resultado de tornar analfabetos nossos poucos alfabetizados. Quantos de nós, que escrevemos profissionalmente, sabemos onde colocar os acentos ou se, afinal de contas, Pedro Calmon conseguiu defender o H de Bahia? O escritor ou jornalista geralmente escreve como aprendeu em criança, fiando-se no trabalho do especialista que é o revisor ortográfico indispensável a cada editora e redação. O povo escreve como lhe dá na cabeça, e a meninada que já passou por mais de uma reforma manda a ortografia às favas.

Os ingleses pouco se incomodam que os americanos simplifiquem "night", em "nite" e "through" em "thru", e não me consta que a França jamais se tenha preocupado com o francês falado e escrito no Canadá ou nas colônias, nem que a "Madre Pátria" espanhola estenda seu cuidado maternal até zelar pelo castiço da língua de Cervantes, cujos termos, nesta América Latina, mudam perigosamente de sentido de um país a outro.

Que venham os filólogos lusitanos, mas não se assanhem os mestres nacionais. Aproveitem a ocasião para ouvir as últimas maledicências correntes no Chiado e as novas anedotas sobre Salazar. Por sua vez, forneçam aos nossos irmão d'além-mar um estoque de anedotas cariocas que, repetidas em Lisboa, terão "imensa piada", e tenham a camaradagem de ensinar-lhes os sambas deste carnaval, que o samba é o produto brasileiro mais cotado em Portugal. No mais, lembrem-se que "o que se canta cá não se ouve lá, e o que se canta lá não se ouve cá".

Se temos garganta de sabiá, não vamos desafinar fingindo de rouxinóis.


Vera Pacheco Jordão



Crônica extraída do livro "Antologia do Humorismo e Sátira", Editora Civilização Brasileira — Rio de Janeiro, 1957, pág. 399.

O grande mistério




Há dias já que buscavam uma explicação para os odores esquisitos que vinham da sala de visitas. Primeiro houve um erro de interpretação: o quase imperceptível cheiro foi tomado como sendo de camarão. No dia em que as pessoas da casa notaram que a sala fedia, havia um soufflé de camarão para o jantar. Daí...

Mas comeu-se o camarão, que inclusive foi elogiado pelas visitas, jogaram as sobras na lata do lixo e — coisa estranha — no dia seguinte a sala cheirava pior.

Talvez alguém não gostasse de camarão e, por cerimônia, embora isso não se use, jogasse a sua porção debaixo da mesa. Ventilada a hipótese, os empregados espiaram e encontraram apenas um pedaço de pão e uma boneca de perna quebrada, que Giselinha esquecera ali. E como ambos os achados eram inodoros, o mistério persistiu.

Os patrões chamaram a arrumadeira às falas. Que era um absurdo, que não podia continuar, que isso, que aquilo. Tachada de desleixada, a arrumadeira caprichou na limpeza. Varreu tudo, espanou, esfregou e... nada. Vinte e quatro horas depois, a coisa continuava. Se modificação houvera, fora para um cheiro mais ativo.

À noite, quando o dono da casa chegou, passou uma espinafração geral e, vitima da leitura dos jornais, que folheara no lotação, chegou até a citar a Constituição na defesa de seus interesses.

— Se eu pago empregadas para lavar, passar, limpar, cozinhar, arrumar e ama-secar, tenho o direito de exigir alguma coisa. Não pretendo que a sala de visitas seja um jasmineiro, mas feder também não. Ou sai o cheiro ou saem os empregados.

Reunida na cozinha, a criadagem confabulava. Os debates eram apaixonados, mas num ponto todos concordavam: ninguém tinha culpa. A sala estava um brinco; dava até gosto ver. Mas ver, somente, porque o cheiro era de morte.

Então alguém propôs encerar. Quem sabe uma passada de cera no assoalho não iria melhorar a situação?

- Isso mesmo — aprovou a maioria, satisfeita por ter encontrado uma fórmula capaz de combater o mal que ameaçava seu salário.

Pela manhã, ainda ninguém se levantara, e já a copeira e o chofer enceravam sofregamente, a quatro mãos. Quando os patrões desceram para o café, o assoalho brilhava. O cheiro da cera predominava, mas o misterioso odor, que há dias intrigava a todos, persistia, a uma respirada mais forte.

Apenas uma questão de tempo. Com o passar das horas, o cheiro da cera — como era normal — diminuía, enquanto o outro, o misterioso — estranhamente, aumentava. Pouco a pouco reinaria novamente, para desespero geral de empregados e empregadores.

A patroa, enfim, contrariando os seus hábitos, tomou uma atitude: desceu do alto do seu grã-finismo com as armas de que dispunha, e com tal espírito de sacrifício que resolveu gastar os seus perfumes. Quando ela anunciou que derramaria perfume francês no tapete, a arrumadeira comentou com a copeira:

— Madame apelou para a ignorância.

E salpicada que foi, a sala recendeu. A sorte estava lançada. Madame esbanjou suas essências com uma altivez digna de uma rainha a caminho do cadafalso. Seria o prestigio e a experiência de Carven, Patou, Fath, Schiaparelli, Balenciaga, Piguet e outros menores, contra a ignóbil catinga.

Na hora do jantar a alegria era geral. Nas restavam dúvidas de que o cheiro enjoativo daquele coquetel de perfumes era impróprio para uma sala de visitas, mas ninguém poderia deixar de concordar que aquele era preferível ao outro, finalmente vencido.

Mas eis que o patrão, a horas mortas, acordou com sede. Levantou-se cauteloso, para não acordar ninguém, e desceu as escadas, rumo à geladeira. Ia ainda a meio caminho quando sentiu que o exército de perfumistas franceses fora derrotado. O barulho que fez daria para acordar um quarteirão,quanto mais os da casa, os pobres moradores daquela casa, despertados violentamente , e que não precisavam perguntar nada para perceberem o que se passava. Bastou respirar.

Hoje pela manhã, finalmente, após buscas desesperadas, uma das empregadas localizou o cheiro. Estava dentro de uma jarra, uma bela jarra, orgulho da família, pois tratava-se de peça raríssima, da dinastia Ming.

Apertada pelo interrogatório paterno Giselinha confessou-se culpada e, na inocência dos seus 3 anos, prometeu não fazer mais.

Não fazer mais na jarra, é lógico.



Stanislaw Ponte Preta

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Hoje não escrevo



Chega um dia de falta de assunto. Ou, mais propriamente, de falta de apetite para os milhares de assuntos.


Escrever é triste. Impede a conjugação de tantos outros verbos. Os dedos sobre o teclado, as letras se reunindo com maior ou menor velocidade, mas com igual indiferença pelo que vão dizendo, enquanto lá fora a vida estoura não só em bombas como também em dádivas de toda natureza, inclusive a simples claridade da hora, vedada a você, que está de olho na maquininha. O mundo deixa de ser realidade quente para se reduzir a marginália, purê de palavras, reflexos no espelho (infiel) do dicionário.


O que você perde em viver, escrevinhando sobre a vida. Não apenas o sol, mas tudo que ele ilumina. Tudo que se faz sem você, porque com você não é possível contar. Você esperando que os outros vivam para depois comentá-los com a maior cara-de-pau (“com isenção de largo espectro”, como diria a bula, se seus escritos fossem produtos medicinais). Selecionando os retalhos de vida dos outros, para objeto de sua divagação descompromissada. Sereno. Superior. Divino. Sim, como se fosse deus, rei proprietário do universo, que escolhe para o seu jantar de notícias um terremoto, uma revolução, um adultério grego - às vezes nem isso, porque no painel imenso você escolhe só um besouro em campanha para verrumar a madeira. Sim, senhor, que importância a sua: sentado aí, camisa aberta, sandálias, ar condicionado, cafezinho, dando sua opinião sobre a angústia, a revolta, o ridículo, a maluquice dos homens. Esquecido de que é um deles.


Ah, você participa com palavras? Sua escrita - por hipótese - transforma a cara das coisas, há capítulos da História devidos à sua maneira de ajuntar substantivos, adjetivos, verbos? Mas foram os outros, crédulos, sugestionáveis, que fizeram o acontecimento. Isso de escrever O Capital é uma coisa, derrubar as estruturas, na raça, é outra. E nem sequer você escreveu O Capital. Não é todos os dias que se mete uma idéia na cabeça do próximo, por via gramatical. E a regra situa no mesmo saco escrever e abster-se. Vazio, antes e depois da operação.


Claro, você aprovou as valentes ações dos outros, sem se dar ao incômodo de praticá-las. Desaprovou as ações nefandas, e dispensou-se de corrigir-lhe os efeitos. Assim é fácil manter a consciência limpa. Eu queria ver sua consciência faiscando de limpeza é na ação, que costuma sujar os dedos e mais alguma coisa. Ao passo que, em sua protegida pessoa, eles apenas se tisnam quando é hora de mudar a fita no carretel.


E então vem o tédio. De Senhor dos Assuntos, passar a espectador enfastiado de espetáculo. Tantos fatos simultâneos e entrechocantes, o absurdo promovido a regra de jogo, excesso de vibração, dificuldade em abranger a cena com o simples par de olhos e uma fatigada atenção. Tudo se repete na linha do imprevisto, pois ao imprevisto sucede outro, num mecanismo de monotonia... explosiva.


Na hora ingrata de escrever, como optar entre as variedades de insólito? E que dizer, que não seja invalidado pelo acontecimento de logo mais, ou de agora mesmo? Que sentir ou ruminar, se não nos concedem tempo para isso entre dois acontecimentos que desabam como meteoritos sobre a mesa? Nem sequer você pode lamentar-se pela incomodidade profissional. Não é redator de boletim político, não é comentarista internacional, colunista especializado, não precisa esgotar os temas, ver mais longe do que o comum, manter-se afiado como a boa peixeira pernambucana. Você é o marginal ameno, sem responsabilidade na instrução ou orientação do público, não há razão para aborrecer-se com os fatos e a leve obrigação de confeitá-los ou temperá-los à sua maneira. Que é isso, rapaz. Entretanto, aí está você, casmurro e indisposto para a tarefa de encher o papel de sinaizinhos pretos. Concluiu que não há assunto, quer dizer: que não há para você, porque ao assunto deve corresponder certo número de sinaizinhos, e você não sabe ir além disso, não corta de verdade a barriga da vida, não revolve os intestinos da vida, fica em sua cadeira, assuntando, assuntando...


Então hoje não tem crônica.


Carlos Drummond de Andrade

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

A crônica de natal

Na verdade ela, a crônica de Natal, é um apetrecho que faz parte dessas comemorações de fim de ano. Todo cronista brasileiro, gente classuda e cheia de manha, quando os havia, tinha a sua engatilhada.

Era sempre a pior crônica do ano, não importa se você se chamasse Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Antônio Maria, Drummond ou Clarice Lispector.

Um dia vagabundo em que nada conhecia e eles, os cronistas, davam um banho, alguns à fantasia. O gato (nunca se deve dizer seu verdadeiro nome) comeu todos.

Hoje, que se tem três ou quatro, já é muito. Bloga-se. Blogam-se os blogs de Natal. E tome sino. Um bimbalhar de ensurdecer frade de pedra. Blim-blom, blim-blom.

A rigor, estas linhas, que digito por mero cacoete ou hábito, talvez não passem de uma (i)vã tentativa de manter uma vela de verdade acesa no matéria barata que virou tudo - árvore, enfeite, presépio, presentes.

Talvez não seja mais que uma vontade de jogar areia na presepada (a falta de graça e imaginação no jogo de palavras é culpa da estação) que reina ao menos no mundo cristão.

Estar no Afeganistão ou no Iraque pacificado pelo Obama (ser irônico é um condimento da época) é, seguramente, menos nocivo à saúde física e mental, do que leitão, presunto, peru ou presente eletrônico.

Jogar areia no sentido de que, a rigor, ela, a "crônica de Natal" deveria "estar indo para o ar" (a falada "nuvem"?) na sexta, dia 23, para pegar a enxurrada de feriados, feriadinhos e feriadões que deverão se seguir.

Agora, vida mesmo, dessas danadas de chatas, essa só depois do dia 2 de janeiro de 2012. E olha lá, para quem vive no Reino Unido será ano de Jogos Olímpicos, conforme todos os noticiários de televisão insistem em lembrarem o tedioso tema todos os dias em todas as horas por pelo menos cinco minutos.

Eu me perdi. Deve ter sido a gemada reforçada com vinho do Porto que tomo sozinho como um personagem rabugento de Dickens.

Ah, sim. Por que mandar a "crônica de Natal" antes do dia adequado? Porque tudo indica que não terei forças dentro de 48 horas.

Comecei a me perder, a me desorientar, na segunda-feira, quando taquei serenamente, neste cantinho que me cabe, que o Sol nascia a oeste.

Deve estar nascendo assim ao menos para mim. Os duendes que auxiliam Papai Noel entortaram e, desde o começo da semana, deram para botar para quebrar aqui em casa. Literalmente.

A televisão transformou 12 canais digitais em expressionismos abstratos mudos como esse filme, O Silêncio, de que tanto falam.

A cortina de meu quarto quebrou e recusa-se a abrir, roubando-me do ralo sol de dezembro que banha por uma uma ou duas horas o aposento a que chamo, sem ironia ou vergonha, de quarto/escritório, que, agora, como minha vida interior, anda às escuras.

Três lâmpadas direcionais de 40w iluminam minha cela, tal como chamo isso que sobrou de minha vida, quando nela cumpro parte de minha sentença (esbanjamento ilegal de joie de vivre antes do tempo, disseram os juízes, meus algozes).

O resto da casa também trama contra mim. A pequena e outrora fiel árvore de Natal de plástico, com seus enfeites bobocas, virou na mesinha da sala, deu curto e eu tive de me virar também, descurtificando sem fôlego o desastre diante do espanto e medo da gata, que já não é, como eu, broto.

Olhamo-nos, mudos como o "falado" filme que citei acima, para ver quem envelhece mais e morre primeiro.

Continuando: o banco errou no pagamento de algumas contas. Uma tarde perdida conversando com gravações que, como o resto do mundo, só sabia me deixar aguardando impotente em hold. É, estou em hold há uns bons 20 anos.

A vizinha de cima bateu na minha porta, muito educada (trabalha na City, e é ruiva natural, porem feiosa), para me avisar que, na noite de sexta-feira, vai dar uma recepção e que iria procurar bimbalhar o mais baixo possível. Duvide-o-dó.

Agora, é sentar na poltrona que me detesta e eu a ela e, juntos, esperarmos a tempestade declarar missão cumprida, como um Iraque pacificado desde a época do George W. Bush, e aguardar até que o sistema de aquecimento dê o prego.

Em geral, quando essas coisas batem, batem com força e para valer. Fico, com a gata a me espionar, a tentar ribombar e não bimbalhar. Acabo sendo ribombado e bimbalhado por força das circunstâncias e contra minha vontade. Claro.


Ivan Lessa
Colunista da BBC BRASIL
Folha.com.br