quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Uma oração

Minha boca pronunciou e pronunciará, milhares de vezes e nos dois idiomas que me são íntimos, o pai-nosso, mas só em parte o entendo. Hoje de manhã, dia primeiro de julho de 1969, quero tentar uma oração que seja pessoal, não herdada. Sei que se trata de uma tarefa que exige uma sinceridade mais que humana. É evidente, em primeiro lugar, que me está vedado pedir. Pedir que não anoiteçam meus olhos seria loucura; sei de milhares de pessoas que vêem e que não são particularmente felizes, justas ou sábias. O processo do tempo é uma trama de efeitos e causas, de sorte que pedir qualquer mercê, por ínfima que seja, é pedir que se rompa um elo dessa trama de ferro, é pedir que já se tenha rompido. Ninguém merece tal milagre. Não posso suplicar que meus erros me sejam perdoados; o perdão é um ato alheio e só eu posso salvar-me. O perdão purifica o ofendido, não o ofensor, a quem quase não afeta. A liberdade de meu arbítrio é talvez ilusória, mas posso dar ou sonhar que dou. Posso dar a coragem, que não tenho; posso dar a esperança, que não está em mim; posso ensinar a vontade de aprender o que pouco sei ou entrevejo. Quero ser lembrado menos como poeta que como amigo; que alguém repita uma cadência de Dunbar ou de Frost ou do homem que viu à meia-noite a árvore que sangra, a Cruz, e pense que pela primeira vez a ouviu de meus lábios. O restante não me importa; espero que o esquecimento não demore. Desconhecemos os desígnios do universo, mas sabemos que raciocinar com lucidez e agir com justiça é ajudar esses desígnios, que não nos serão revelados.

Quero morrer completamente; quero morrer com este companheiro, meu corpo.


Jorge Luis Borges

segunda-feira, 13 de outubro de 2008


Ouve, namorada, vou te contar um segredinho. Dessas coisinhas que a gente não comenta com ninguém, e fica curtindo a vitória, bem lá no fundo do peito, mas com vontade de gritar pra todo mundo. E se gritar, as pessoas julgarão a vitória como resultado de uma atitude de mau caráter. Mas essa minha até que foi interessante e sem prejuízo de segundos ou terceiros.

Olha, antes de tudo, isso aconteceu e eu não te conhecia direito ainda, viu? Nós não nos víamos muito, acho que que nem era namoro. Por isso, não precisa começar com esse beicinho de zangada, tá?

Vê bem, presta atenção: tenho uma amiga chamada Rosa Maria. Alguns a chamam de Maria Rosa, mas prefiro a primeira forma, é mais fluente. E houve períodos em que, na rota da amizade, chegamos a derrapar em tratos mais íntimos, e não evitamos as derrapadas. Apesar disso, não colidimos pra valer. E era essa colisão que eu procurava. Que provocasse desajustes nos chassis, capotamentos, ferragens retorcidas. Pra valer mesmo!

Acontece que, por outra pista, Rosa Maria foi apresentada a Vinícius de Moraes. E morena que é, complexo estravagante de curvas e cheiros, não custou muito ao poeta, já no primeiro encontro, jogar-lhe um dengo e malícia sarrateiras sugestões de carinhos forradas com a promessa de um soneto especial. E o soneto ficou na promessa, e na cabecinha de Rosa Maria. Enquanto continuava em minha cabeça a tão almejada colisão.

Passado algum tempo, e sabedor de que uma tal noite eu me encontraria com Vinícius no teatro, ela me pediu que cobrasse dele o tal soneto que lhe prometera. E com forte emoção me falou de seu desejo de receber do poeta essa atenção incomum. E olhou-me deslizante, sem muito breque nas rodas.

- Se você conseguir, nem sei o que te dou!

Jurei a ela de olhos fechados que conseguiria o soneto. E vislumbrei aí a oportunidade de provocar a tão almejada colisão.

- Ah, nem sei o que te dou!

“Mas eu sei...” – Pensei.

Passei a ver várias formas poéticas semelhantes, para observar a métrica dos versos e a disposição das rimas. Enfim, compus o meu soneto de Vinícius de Moraes. Desenhei sua assinatura idêntica, pois eu a possuia em três escritos que ele me enviara durante os anos de nosso conhecimento.

Ao ler o soneto, Rosa Maria não cabia em si. Tirou da bolsa um guardanapo no qual Vinícius lhe dedicara uns versos. A assinatura era a mesma!

-Ai, nem sei o que te dou! – abraçava-me ela.

E naquele cruzamento, perdemos a direção. Colidimos na curva, antes da ponte. E derrapamos, capotamos, rolamos ribanceiras. Depois, por entre as ferragens,contei-lhe a verdade. E ainda hoje, não sei não, mas Rosa Maria duvida um pouco não ter sido Vinícius o autor daqueles versos.

De tudo isso, namorada, ficou-me a conclusão de que fazer sonetos é tarefa exclusiva dos poetas maiores.


João Carlos Pecci

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Amor é amor

Mulher gamada é fogo. Elas, quando se vidram e se amarram num homem, são capazes de fazer das tripas coração pra defender seus interesses. Uma mulher apaixonada se transforma dos pés à cabeça. Se é classuda, cai da panca e, sem vacilar, apronta os maiores salseiros. Se é acanhada, endoida e não regateia pra fazer um escândalo. Esse lance de que a mulher mesmo muito ligada num homem e tal e coisa, se enruste e se fecha em copas porque tem categoria é papo furado. Mulher que deixa o amor no barato não está toda na parada. Que nada! Às vezes, está por solidão, por simpatia, por conveniência e os cambaus. Nunca por gama. É isso. Não tem erro. Sou eu que afirmo, e de mulher eu entendo. Mas deixa isso de lado. O que quero contar e o que pesa na balança é a história da Dilma Fuleira e da Celeste Bicuda, duas flores da Barra do Catimbó que se unharam e se dentaram por amor ao Ariovaldo Piolho, um vagau de pouca presença física, mas de muita embaixada. Ele lidava com seu rebanho com mil e um macetes e, por essas e outras, sempre foi muito considerado pelo mulherio. É verdade que esse perereco se deu nas quebradas do mundaréu, onde o vento encosta o lixo e as pragas botam os ovos, mas, se acontecesse nos salões da mais fina gente da sociedade, não me causava nenhum espanto. Mulher é mulher em qualquer lugar. Mestre Zagaia, velho cabo-de-esquadra que navegou sem bandeira por muita água barrenta e que bateu perna à toa pelos caminhos mais escamosos, esquisitos e estreitos do roçado do bom Deus, viu quizilas de assombrar negos de patuá forte, embrulhou sua solidão em muito lençol encardido e escancarou nas Tabuadas das Candongas uma dica sobre o assunto:

— Depois dos panos arriados, o espetáculo é sempre o mesmo.

E, se Mestre Zagaia falou, tá falado. Mulher é sempre mulher. E a Dilma Fuleira e a Celeste Bicuda também são, embora à primeira vista não pareçam. Sabe como é. Elas nasceram lesadas da sorte e só pegaram a pior. Bagulho catado no chão da feira nunca fez bem à beleza de ninguém.

Porém (e sempre tem um porém), não foi a condição de bagulho que impediu que elas tivessem grandes ilusões a respeito de amor. E o galã dos sonhos das duas era, como já disse, o Ariovaldo Piolho. Esse vagau se serviu das duas sem a mínima cerimônia. Foi ali na base do agrião. Como as duas estavam a fim dele, o danado negociou. Fez valer a velha e tinhosa lei da oferta e da procura. Se fingia de morto e esperava pra ver quem comparecia no seu enterro.

Como quem não quer nada, pegava a grana na mão da Dilma, cumpria a obrigação e ia buscar os pixulés com a Celeste. E se o dinheiro compensava, não deixava ela em falta. Até que o caldo engrossou.

Bateu sujeira. O doutor delerusca resolveu acabar com o pesqueiro das piranhas e a Dilma Fuleira e a Celeste Bicuda se viram no papo-de-aranha. Escaparam da cana, mas o faturamento caiu às pamparras. E, no meio disso tudo, o Ariovaldo Piolho sentiu o aroma da perpétua. Vagau escolado por muitos anos de janela é sempre cem por cento profissional. Sem pagório, deixou as mulheres na saudade. E se deu o esquinapo.

A Dilma Fuleira achou que o Piolho não queria nada com ela porque estava enredado pela Celeste Bicuda. Procurou a rival e, sem conversa, deu-lhe uma tremenda biaba. A Celeste Bicuda era encardida. Encarou, mas não deu nem pra saída. A Dilma Fuleira era gordona e alta. A Celeste, baixinha e só pele e osso. Teve que apanhar e correr. Porém, como não era de engolir nada enrolado, a Celeste Bicuda tramou a forra. Foi na macumba levar o nome da Dilma Fuleira pra sua mãe-de-santo enterrar no cemitério. Feita a façanha, a Celeste Bicuda se botou a boquejar nos botecos. Garantia pra quem duvidasse que a Dilma Fuleira ia murchar até morrer. E não faltou fuxiqueiro pra ir rapidinho envenenar a Dilma. E ela, que já estava atolada até o gogó no pântano, acreditou que a bananosa toda que curtia era devido à mandinga da Celeste. Se picou de raiva e jurou pela luz que a iluminava que ia pegar a inimiga e dar pancada até ela desenterrar seu nome. E foi pra guerra.

A Dilma encontrou a Celeste no seu barraco e nem pediu licença. Entrou na força bruta e foi botando pra quebrar. De repente, a Celeste Bicuda deu uns gritos, uns pulos pro alto e, quando desceu, era uma fera batusquela. Passou a mão numa enxada e tocou o bumba-meu-boi no lombo da Dilma, que se viu obrigada a dar pinote. Mas a Celeste foi na captura e derrubou o barraco da Dilma a enxadada. Em desespero e apavorada com a fúria da Celeste Bicuda, a Dilma se refugiou na casa do Piolho. A Celeste não tomou conhecimento. Aliás, ainda ficou mais endoidada de ver a rival junto do homem da sua gama. Aumentou o escarcéu.

O Ariovaldo, sem se afobar saiu de fininho e chamou a polícia. A cana chegou e ferrou a Celeste e a Dilma. No Distrito, a Celeste falou que não tinha nada com a briga. Foi o exu da sua crença que encarnou nela pra acabar com a Dilma. A Dilma, de zoeira, entregou tudo como era. Disse pro doutor que a bronca era por causa do Piolho, que estava na fita como testemunha. O delegado quis saber se o Piolho tinha emprego. Não tinha. Entrou em pua e as mulheres foram dispensadas. Mas continuam pelejando por amor. Uma visita o vagau às quartas-feiras; a outra, aos domingos. E todas as duas levam o santo dinheirinho de presente pro Ariovaldo Piolho, o bom amante.


Plínio Marcos