sábado, 12 de fevereiro de 2011

Dias tortos

Estou na Avenida 23 de Maio, na pista do meio. Engarrafamento. De repente, a da direita anda. A da esquerda também. A minha não. Fico contando os carros que passam. Começo a ranger os dentes. Imagino: "Deve haver um acidente nesta pista". Dou seta à esquerda. Atiro meu carro na pista do lado. Ouço buzinadas. Consegui! Agora vou andar! Puro engano. Imediatamente, a da esquerda pára. A pista onde eu estava se desafoga. Todos os veículos que se encontravam atrás de mim me ultrapassam. Permaneço imóvel. Lamento-me: "Por que fui mudar de pista?".

É um mistério do trânsito. A pista do lado sempre anda mais que a minha! Pior. Há dias em que todos os semáforos ficam vermelhos quando me aproximo. Sem exceção. Isso costuma acontecer quando tenho algum compromisso inadiável. Tipo reunião com o chefe. Consulta médica. Canal do dente latejando. Pagar imposto no último dia de prazo!

Viajo muito de avião. O tamanho dos bancos diminuiu. Minha barriga aumentou. Todas as vezes o passageiro da frente reclina o banco, me deixando entalado. Com freqüência, ninguém mais, em todo o avião, reclina o assento. Só o da minha frente! Se vou a um teatro lotado, vira e mexe sento atrás de um gigante! Passo o espetáculo inteiro entortando o pescoço!

E caixa eletrônico de posto de gasolina? Quando chega a minha vez, há sempre um quebrado e no outro alguém lento. A pessoa tecla, tecla. Bota o cartão. Tira. Tecla de novo. Quando o caixa é ao ar livre, em geral cai um chuvisco. Fico com os óculos gotejando, durante séculos!

Passo semanas planejando ir a determinado restaurante do qual falam de um bacalhau fantástico. Cinqüenta minutos de espera. Mal pego o cardápio, anuncio:

– Vou querer o bacalhau.

O garçom sorri:

– O bacalhau hoje saiu todo...

Ahhhhhhhhhh! Filas de supermercado também me aterrorizam. Permaneço um tempão à espera. Quando a senhora à minha frente está terminando de passar os produtos, a caixa descobre uma melancia sem preço. Chama um rapaz para verificar. Ele demora horas. Finalmente a melancia é cobrada. A pessoa resolve pagar com cartão de débito. Mas esqueceu a senha. Ou o cartão não passa. Vem o gerente para resolver. E eu espero, espero! Quando chega a minha vez, a mocinha avisa:

– Um instantinho!

É a hora de mudar de caixa! Ela conta moeda por moeda. A substituta troca o carretel de papel. Levanta-se para ir falar com o gerente. Todos os outros caixas estão vazios! Mas já tirei meus produtos do carrinho! E vai e vem, e vai e vem. Uma outra caixa chega para conversar. Quase berro:

– Calem a boca!

Dou apenas um longo suspiro. Elas nem ligam! Eu poderia escrever livros inteiros sobre filas. No embarque do aeroporto as duas pessoas à minha frente costumam ter problemas, com muitas idas e vindas das atendentes, enquanto meu vôo está sendo chamado! Nas lojas, sempre há um obstáculo. Como uma senhora que pede dez pacotes de presente, todos com lacinhos, enquanto espero! Ou na livraria um senhor resolve contar a vida para o caixa, em detalhes!

Há dias que são assim, tortos. Tudo conspira para dar errado. Mas, felizmente, outros são o contrário. Acordo feliz sem saber por quê. Os semáforos estão verdes. Não há filas! A mocinha do caixa sorri e tenho vontade de bater papo com ela!

Será coisa do destino? Meu humor atrai um dia ruim, outro melhor? Será que todos os dias são iguais, com coisas desagradáveis ou não? Serei eu que em alguns dias acho tudo péssimo e em outros, maravilhoso? Talvez seja essa a grande questão!


Walcyr Carrasco

O monstro

Pelas margens sagradas do Eufrates, que fugia, então, sem espuma e sem ondas, caminhavam, na infância maravilhosa da Terra, a Dor e a Morte. Eram dois espetros longos e vagos, sem forma definida, cujos pés não deixavam traços na areia. De onde vinham, nem elas próprias sabiam. Guardavam silêncio, e marchavam sem ruído olhando as coisas recém-criadas.

Foi isto no sexto dia da Criação. Com o focinho mergulhado no rio, hipopótamos descomunais contemplavam, parados, a sua sombra enorme, tremulamente refletida nas águas. Leões fulvos, de jubas tão grandes que pareciam, de longe, estranhas frondes de árvores louras, estendiam a cabeça redonda, perscrutando o Deserto. Para o interior da terra, onde o solo começava a cobrir-se de verde, velando a sua nudez com um leve manto de relva moça, que os primeiros botões enfeitavam, fervilhava um mundo de seres novos, assustados, ainda, com a surpresa miraculosa da Vida. Eram aves gigantescas, palmípedes monstruosos, que mal se sustinham nas asas grosseiras, e que traziam ainda na fragilidade dos ossos a umidade do barro modelado na véspera. Algumas marchavam aos saltos, o arcabouço à mostra, mal vestidas pela penugem nascente. Outras se aninhavam, já, nas moitas sem espinhos, nos primeiros cuidados da primeira procriação. Batráquios de dorso esverdeado porejando água fitavam mudos, com os largos olhos fosforescentes e interrogativos, a fila cinzenta dos outeiros longínquos que pareciam à distância, à sua brutalidade virgem, uma procissão silenciosa, contínua, infinita, de batráquios maiores. Auroques taciturnos, sacudindo a cabeça brutal em que se enrolavam encharcadas e gotejantes braçadas de ervas dos charcos, desafiavam-se, urrando, com as patas enfiadas na terra mole.

Rebanho monstruoso de um gigante que os perdera, os elefantes pastavam em bando, colhendo com a tromba, como ramalhetes verdes, moitas de arbustos frescos. Aqui e ali um alce galopava célere. E à sua passagem os outros animais o ficavam olhando, como se perguntassem que focinho, que tromba, ou que bico havia privado das folhas aquele galho seco e pontiagudo que ele arrebatava na fuga. Ursos primitivos lambiam as patas monotonamente. E quando um pássaro mais ligeiro cortava o ar num vôo rápido, havia como que uma interrogação inocente nos olhos ingênuos de todos os brutos.

Em passo triste, a Dor e a Morte caminham, olhando sem interesse as maravilhas da Criação. Raramente marcham lado a lado. A Dor vai sempre à frente, ora mais vagarosa, ora mais apressada; a outra, sempre no mesmo ritmo, não se adianta nem se atrasa. Adivinhando de longe a marcha dos dois duendes, as coisas todas se arrepiam, tomadas de agoniado terror. As folhas, ainda mal recortadas no limo do chão, contraem-se num susto impreciso. Os animais entreolham-se inquietos e o vento, o próprio vento, parece gemer mais alto e correr mais veloz à aproximação lenta mas segura das duas inimigas da Vida.

Súbito, como se a detivesse um grande braço invisível, a Dor estacou, deixando aproximar-se a companheira.

- Para que mistério - disse a voz surda - para que mistério teria Jeová, no capricho da sua onipotência, enfeitado a terra de tanta coisa curiosa?

A Morte estendeu os olhos perscrutadores até os limites do horizonte, abrangendo o rio e o Deserto, e observou num sorriso macabro que fez rugir os leões:

- Para nós ambas, talvez...

- E se nós próprias fizéssemos com as nossas mãos uma criatura que fosse, na terra, o objeto carinhoso do nosso cuidado? Modelado por nós mesmas, o nosso filho seria, com certeza, diferente dos auroques, dos ursos, dos mastodontes, das aves fugitivas do céu e das grandes baleias do mar. Trá-lo-íamos, eu e tu, em nossos braços, fazendo do seu canto, ou do seu urro, a música do nosso prazer... Eu o traria sempre comigo, embalando-o, avivando-lhe o espírito, aperfeiçoando-lhe à alma, formando-lhe o coração. Quando eu me fatigasse, tomá-lo-ias tu então no teu regaço... Queres?

A Morte assentiu, e desceram ambas à margem do rio, onde se acocoraram sombrias modelando o seu filho.

- Eu darei a água... - disse a Dor, mergulhando a concha das mãos, de dedos esqueléticos, no lençol vagaroso da corrente.

- Eu darei o barro... - ajuntou a Morte, enchendo as mãos de lama pútrida, que o sol endurecera.

E puseram-se a trabalhar. Seca e áspera, a lama se desfazia nas mãos da oleira sinistra, que assim trabalhava inutilmente.

- Traze mais água! - pedia.

A Dor enchia as mãos no leito do rio, molhava o barro, e este logo se amoldava, escuro, ao capricho dos dedos magros que o comprimiam. O crânio, os olhos, o nariz, a boca, os braços, o ventre, as pernas, tudo se foi formando a um jeito mais forte ou mais leve da escultora silenciosa.

- Mais água! - pedia esta, logo que o barro se tornava menos dócil.

E a Dor enchia as mãos na corrente e levava-a à companheira.

Horas depois possuía a Criação um bicho desconhecido. Plagiado da obra divina, o novo habitante da Terra não se parecia com os outros, sendo embora nas suas particularidades uma reminiscência de todos eles. A sua juba era a do leão; os seus dentes, os do lobo; os seus olhos, os da hiena; andava sobre dois pés como as aves, e trepava rápido como os bugios.

O seu aparecimento no seio da animalidade alarmou a Criação. Os ursos, que jamais se haviam mostrado selvagens, urravam alto, e escarvavam o solo à sua aproximação. As aves piavam nos ninhos, amedrontadas e os leões, as hienas, os tigres, os lobos, reconhecendo-se nele, arreganhavam o dentes ou mostravam as garras, como se a terra acabasse de ser invadida naquele instante por um inimigo inesperado.

Repelido pelos outros seres, marchava assim o Homem pela margem do rio, custodiado pela Dor e pela Morte. No seu espírito inseguro surgiam às vezes interrogações inquietantes. Certo, se aqueles seres se assombravam à sua aproximação, era porque reconheciam unânimes a sua condição superior. E assim refletindo, comprazia-se em amedrontar as aves e em perseguir em correrias desabaladas pela planície, ou pela margem do rio, esquecendo por um instante a Dor e a Morte, os gamos, os cerdos, as cabras, os animais que lhe pareciam mais fracos.

Um dia, porém, orgulhosas do seu filho, as duas se desavieram, disputando-se a primazia na criação do abantesma.

- Quem o criou fui eu! - dizia a Morte. - Fui eu quem contribuiu com o barro!

- Fui eu! - gritava a outra. - Que farias tu sem a água, que amoleceu a lama?

E como nenhuma voz conciliadora as serenasse, resolveram as duas que cada uma tiraria da sua criatura a parte com que havia contribuído.

- Eu dei a água! - tornou a Dor.

- Eu dei o barro! - insistiu a Morte.

Abrindo os braços, a Dor lançou-se contra o monstro, apertando-o violentamente com as tenazes das mãos. A água que o corpo continha subiu de repente aos olhos do Homem, e começou a cair gota a gota...

Quando não havia mais água que espremer a Dor se foi embora. A Morte aproximou-se então do monte de lama, tomou-o nos ombros, e partiu...


Humberto de Campos

Rapadura


Outro dia foi presa uma senhora porque numa banca de mercado, em pleno sábado de feira, agrediu a rival com uma rapadura, dando-lhe uma tijolada que exigiu doze pontos no couro cabeludo. Rapadura é arma perigosa, um paralelepípedo de doce bruto, pesado e com arestas. Batendo de quina pode até matar.

A banca de rapadura era o local de comércio do próprio marido da agressora. Vinha ela descuidosa, passando ali por acaso, e de repente depara com o quadro ofensivo: o marido em idílio público com a dalila, a messalina, a loba do seu lar! Ela debruçada ao balcão e ele, de dentro, segurava o queixo da sereia e lhe cochichava no ouvido. O monte de rapaduras estava ao lado. Foi só passar a mão na rapadura de cima e virá-la de quina, para castigar mesmo, no pé do ouvido da outra. A agredida se pôs a gritar, com a cara coberta de sangue, e o infiel asperamente ralhou: "Cala a boca, mulher, senão aparece a polícia".

Mas avisou tarde, porque a polícia já vinha na pessoa de um cabo a quem o idílio adúltero também repugnara, pois de há muito que ele, cabo, suspirava pelos favores da destruidora de lares. Debalde lhe fizera serenatas, com uma radiola cheia de discos do Roberto Carlos; e ela até lhe atirara um sapato pela janela, certa vez em que ele encostara a máquina cantante à rótula, tocando aquela música em que RC declara à amada : "Você vai aprender a ser gente!"

- Quem vai aprender é a mãe, gritara a julieta ofendida.

Mas o cabo apanhou o pé de sapato como se fosse o chapim da Borralheira, foi na loja do Geraldo e escolheu a sandalinha mais mimosa que tinha lá, com tiras prateadas e flor de contas no peito do pé. Entregou-a com um bilhete: "Recebi a medida e lhe mando a encomenda".

A bela pagou com um sorriso. Mas continuou com o homem das rapaduras, que tinha o que gastar com ela. Cabo arranchado mal ganha para o cigarro.

Agora porém tinha o cabo a sua oportunidade. Mandou a amada para o Samdu, num jipe, e bradou esteje preso para os mais.

Na delegacia a agressora já vinha muito unida ao marido (que a tratava até de meu bem) e declarou à autoridade que de nada se lembrava. Só sabia que vinha fazer umas compras, e passando pela banca de rapadura, viu aquela piranha com os dentes na cara do marido - marido de padre e juiz! - Sentira um escurecimento de vista - e aí não sabia mais de nada.

O delegado, naturalmente, punia pelos direitos de família legítima; e ia passando ao marido, para encerrar perfunctoriamente o caso, quando de súbito aparece a sogra, avisada às pressas. Da rua, a velha vinha gritando. Já sabia que aquilo ia acabar mal, minha filha está farta de sofrer, o sem vergonha do marido não tem rapariga na rua do Baturité que ele não gaste com ela, minha filha devia mesmo era ter lascado a cabeça da vagabunda. E ele ainda bate na pobrezinha, bate de correia, a vizinhança toda sabe!

Aí a mulher do marido interrompeu agastada: "Minha mãe cale sua boca, que o caso é outro. Ninguém está querendo saber se ele me bate. E se bate, bate no que é dele". (Vide Nelson Rodrigues.)

A sogra engasgou-se com a ingratidão. Desengasgando ia gritando "mal agradecida!", mas nesse ínterim o delegado se levantara e pedira silêncio. E explicou que o adultério é a peçonha dos lares; embora fosse errado apelar para a violência compreendia-se que a senhora no desvario da privação de sentidos e inteligência, agredisse a rival. Mas afinal não houvera morte, nem queixa registrada, o sangue era pouco, cada um fosse para casa e não pecasse mais. Falou, estava falado.

O cabo correu ao Samdu, onde lhe foi fácil fazer entender à pecadora que não há como a proteção das armas para uma frágil dama delicada.

O marido infiel levou a mulher para casa - conta a vizinhança que lhe deu uma surra para ela deixar de ser valente. E depois foram muito felizes.



Rachel de Queiroz
(“Revista O Cruzeiro” / “Elenco de Cronistas”)



Amores distantes


Quem não amou sem, de repente, já não poder trocar um beijo, um olhar, um sim, ou mesmo um não? Amores distantes são fantasmas, presenças incorpóreas, arrepios de vento ou de lembranças – não de toques.

Quem não amou pelo breve tempo de uma viagem, sabendo que ali na frente estava a volta com suas impossibilidades? O alongado tempo da ausência? Como se interpõe um oceano entre dois desejos, como se plantam montanhas, meridianos, paralelos entre duas ânsias de estar junto? Amantes separados têm necessidades que nenhum e-mail alivia, nenhuma carta com beijo de batom ameniza, nenhum telefonema consola – ao contrário: mais apertam o coração e o resto.

Quem não se apaixonou e teve de se afastar, só, deixando para trás um pedaço de si, transformado em metade, roubado do amor por uma transferência do trabalho, uma oportunidade, uma família que se muda? Ou quem, por outro lado, teve de ficar e se resignar, também metade? Duas metades oxidando suas cicatrizes, como laranja partida.

Quem não se enganou, pensando que era fugaz o amor e o dispensou, sem pena de o ver partir? Amor que mais tarde se revelou brasa dormindo sob as cinzas, mas agora sem remédio, pois o preterido se tornara de outra o preferido.

E quem não amou secretamente, por algum motivo?

Já foram mais duros os impedimentos do amor; as distâncias, mais impossíveis de vencer. Filhas eram postas em conventos pelos pais, que queriam matar sufocado algum amor que repudiavam. Até princesas eram encerradas em torres. Hoje princesas namoram cavalariços.

O inconfidente preso Tomás Antônio Gonzaga, o Dirceu de Marília, consolava-se com os poemas que escrevia para a amada no presídio de Vila Rica, impossibilitado de vê-la: "Nesta cruel masmorra tenebrosa / ainda vendo estou teus olhos belos, / a testa formosa, / os dentes nevados, / os negros cabelos". Ou este outro, escrito na prisão da Ilha das Cobras, no Rio de Janeiro, sempre figurando a noiva: "Nesta triste masmorra, / de um semi-vivo corpo sepultura, / inda, Marília, adoro / a tua formosura. / Amor na minha idéia te retrata; / busca, extremoso, que eu assim resista / à dor imensa que me cerca e mata". Foi de lá exilado para a África e nunca mais a viu.

De tais tormentos não se podem queixar os presos de hoje, nestes tempos liberais que facultam a visita íntima – amor é abraço.

Até impedimentos banais foram cantados, como nesta canção do ano de 1940: "Oi, eu de cá, você de lá / do outro lado da lagoa / de dia não tenho tempo / de noite não tem canoa". Boleros, sambas, valsas, modas sertanejas, tangos, blues, baladas, axés, reggaes, rocks – em todos os ritmos as canções falaram de amores a distância, porque a verdade é que amores venturosos não costumam dar ibope. "Quem parte leva saudade de alguém / que fica chorando de dor."

Há abismos que nós mesmos abrimos, por nos faltar ousadia para dar o passo; há Julietas frustradas em balcões que não galgamos, Romeus vacilantes; há barreiras como a guerra, a doença, o fanatismo, o racismo, o autoritarismo, o casamento, que os apaixonados, mesmo próximos, por fraqueza ou juízo não conseguem transpor – tudo é distância, pois amor é abraço.

– E você, poeta? – pergunto.

– Em outro hemisfério já deixei suspirosas Cristinas, Bárbaras e Ellens, suspiroso fiquei por ausentes Guidas e Vidinhas. Mas houve amores que venceram distâncias e não conseguiram vencer o tempo. E você, cronista?

– Cultivo o amor de convivência. Porque amor é abraço.


Ivan Ângelo

Areia branca


O lotação ia de Copacabana para o centro, com lugares vazios, cada passageiro pensando em sua vida; é o gênero de transporte onde menos viceja a flor da comunicação humana. Quando, em Botafogo, ouviu-se a voz de um senhor lá atrás:

- Olhe aqui, vou atender a você, mas não faça mais isso, ouviu? É muito feio pedir dinheiro aos outros. Na sua idade, eu já dava duro e ajudava em casa.

E passou a nota ao rapazinho de quinze anos, se tanto, que a recolheu com humildade. O homem continuava, agora dirigindo-se a outro passageiro:

- Está vendo? Fica essa garotada aí vivendo de expediente, encontra uns sujeitos como eu, que vão na conversa, e depois...

- Isso é um país sem solução, comentou o vizinho. Não há escola profissional para os meninos, andam jogados ao deus-dará, enquanto o governo só faz besteira. Não vê o porta-aviões?

O rapazinho não parecia interessado na crítica ao Governo, e mudou de lugar. Foi para junto de outro senhor e expôs-lhe o problema, baixinho.

- Como é?

- Areia Branca. Lá é minha terra. Tou querendo voltar, falta só 27 cruzeiros...

O homem puxou lentamente a carteira, lentamente extraiu uma nota, passou-a ao rapazinho.

- Está vendo? - comentou o senhor do fundo. - Aquele ali caiu também, quem é que não cai? Aposto que esse menino não vai pedir àquela senhora da esquerda. Mulher não vai na onda, só tem pena de aleijado e de velhinho.

De fato, o postulante deixou de lado a senhora e a moça que havia no carro, e foi contar a história mais adiante (com êxito) a outro representante do sexo frágil, isto é, masculino.

- Oba! Já tenho 20, daqui a pouco posso ir para Areia Branca.

E foi sentar-se ao lado de outro jovem que, pelos cadernos de capa grossa na mão, se revelava colegial.

- Quer me ajudar? Então inteire minha passagem para Areia Branca.

Não era pedido; era recomendação, em tom natural, tão natural que o estudante não discutiu. Sacou do bolso o macinho de notas miúdas - dinheiro do sorvete e da volta, - contou-as uma por uma, e estendeu cinco.

- Se você quer ajudar, inteira logo. Mais dois.

O outro passou-lhe os dois, que esperara inutilmente salvar da requisição, e, à guisa de agradecimento, o beneficiado esticou o dedo:

- Espia só o mar: que estouro! Areia Branca é do outro lado.

E levantou-se mais uma vez, foi ao motorista, curvou-se, passou-lhe o braço nas costas, numa conversa particular e macia. O senhor de trás, moralista e observador implacável, ia-lhe acompanhando as evoluções:

- Olha só o garoto. Aposto que cantou o motorista para uma carona.

O motorista - de queixo comprido, lembrando agradavelmente o velho atacante Ademir - sem volver o rosto, foi dizendo:

- Cai fora, coisinha.

- Eu não disse? - comentou o de trás, satisfeito com a própria agudeza.

O lotação parou, o meninote desceu. Ai, intervém a senhora, até então muda e queda como penedo:

- Garanto que agora ele vai tomar outro lotação para Copacabana, e repetir o golpe.

- Não duvido nada - secundou o moralista, meio desapontado porque não lhe havia ocorrido esse desenvolvimento.

O rapazinho atravessou a rua - era no contorno do Morro da Viúva - e parou à espera, na calçada.

- Vejam só - continuava exclamando o homem. - Vem com essa conversa de Areia Branca, Areia Branca, um nome tão poético, lembra o Caymmi, a gente não resiste mesmo. Se ele dissesse que queria voltar para Areia Preta, essa não, eu pensava naquela praia do Espírito Santo, em reumatismo, não soltava um níquel. Mas Areia Branca, esse moleque é impossível!


Carlos Drummond de Andrade
(Elenco de Cronistas - “A Bolsa & A Vida”)


Um cinturão

As minhas primeiras relações com a justiça foram dolorosas e deixaram-me funda impressão. Eu devia ter quatro ou cinco anos, por aí, e figurei na qualidade de réu. Certamente já me haviam feito representar esse papel, mas ninguém me dera a entender que se tratava de julgamento. Batiam-me porque podiam bater-me, e isto era natural.

Os golpes que recebi antes do caso do cinturão, puramente físicos, desapareciam quando findava a dor. Certa vez minha mãe surrou-me com urna corda nodosa que me pintou as costas de manchas sangrentas. Moído, virando a cabeça com dificuldade, eu distinguia nas costelas grandes lanhos vermelhos. Deitaram-me, enrolaram-me em panos molhados com água de sal - e houve uma discussão na família. Minha avó, que nos visitava, condenou o procedimento da filha e esta afligiu-se. Irritada, ferira-me à toa, sem querer. Não guardei ódio a minha mãe: o culpado era o nó. Se não fosse ele, a flagelação me haveria causado menor estrago. E estaria esquecida. A história do cinturão, que veio pouco depois, avivou-a.

Meu pai dormia na rede, armada na sala enorme. Tudo é nebuloso. Paredes extraordinariamente afastadas, rede infinita, os armadores longe, e meu pai acordando, levantando-se de mau humor, batendo com os chinelos no chão, a cara enferrujada. Naturalmente não me lembro da ferrugem, das rugas, da voz áspera, do tempo que ele consumiu rosnando uma exigência. Sei que estava bastante zangado, e isto me trouxe a covardia habitual. Desejei vê-lo dirigir-se a minha mãe e a José Baía, pessoas grandes, que não levavam pancada. Tentei ansiosamente fixar-me nessa esperança frágil. A força de meu pai encontraria resistência e gastar-se-ia em palavras.

Débil e ignorante, incapaz de conversa ou defesa, fui encolher-me num canto, para lá dos caixões verdes. Se o pavor não me segurasse tentaria escapulir-me: pela porta da frente chegaria ao açude, pela do corredor acharia o pé de turco. Devo ter pensado nisso, imóvel, atrás dos caixões. Só queria que minha mãe, sinhá Leopoldina, Amaro e José Baía surgissem de repente e me livrassem daquele perigo.

Ninguém veio, meu pai me descobriu acocorado e sem fôlego, colado ao muro, e arrancou-me dali violentamente, reclamando um cinturão. Onde estava o cinturão? Eu não sabia, mas era difícil explicar-me: atrapalhava-me, gaguejava, embrutecido, sem atinar com o motivo da raiva. Os modos brutais, coléricos, atavam-me; os ,sons duros morriam, desprovidos de significação.

Não consigo reproduzir toda a cena. Juntando vagas lembranças dela a fatos que se deram depois, imagino os berros de meu pai, a zanga terrível, a minha tremura infeliz. Provavelmente fui sacudido. O assombro gelava-me o sangue, escancarava-me os olhos.

Onde estava o cinturão? Impossível responder. Ainda que tivesse escondido o infame objeto, emudeceria, tão apavorado me achava. Situações deste gênero constituíram as maiores torturas da minha infância, e as conseqüências delas me acompanharam.

O homem não me perguntava se eu tinha guardado a miserável correia: ordenava que a entregasse imediatamente. Os seus gritos me entravam na cabeça, nunca ninguém se esgoelou de semelhante maneira.

Onde estava o cinturão? Hoje não posso ouvir uma pessoa falar alto. O coração bate-me forte, desanima, como se fosse parar, a voz emperra, a vista escurece, uma cólera doida agita coisas adormecidas cá dentro. A horrível sensação de que me furam os tímpanos com pontas de ferro.

Onde estava o cinturão? A pergunta repisada ficou-me na lembrança: parece que foi pregada a martelo.

A fúria louca ia aumentar, causar-me sério desgosto. Conservar-me-ia ali desmaiado, encolhido, movendo os dedos frios, os beiços trêmulos e silenciosos. Se o moleque José ou um cachorro entrasse na sala, talvez as pancadas se transferissem. O moleque e os cachorros eram inocentes, mas não se tratava disso. Responsabilizando qualquer deles, meu pai me esqueceria, deixar-me-ia fugir, esconder-me na beira do açude ou no quintal.

Minha mãe, José Baía, Amaro, sinhá Leopoldina, o moleque e os cachorros da fazenda abandonaram-me. Aperto na garganta, a casa a girar, o meu corpo a cair lento, voando, abelhas de todos os cortiços enchendo-me os ouvidos - e, nesse zunzum, a pergunta medonha. Náusea, sono. Onde estava o cinturão? Dormir muito, atrás dos caixões, livre do martírio.

Havia uma neblina, e não percebi direito os movimentos de meu pai. Não o vi aproximar-se do torno e pegar o chicote. A mão cabeluda prendeu-me, arrastou-me para o meio da sala, a folha de couro fustigou-me as costas. Uivos, alarido inútil, estertor. Já então eu devia saber que rogos e adulações exasperavam o algoz. Nenhum socorro. José Baía, meu amigo, era um pobre-diabo.

Achava-me num deserto. A casa escura, triste; as pessoas tristes. Penso com horror nesse ermo, recordo-me de cemitérios e de ruínas mal-assombradas. Cerravam-se as portas e as janelas, do teto negro pendiam teias de aranha. Nos quartos lúgubres minha irmãzinha engatinhava, começava a aprendizagem dolorosa.

Junto de mim, um homem furioso, segurando-me um braço, açoitando-me. Talvez as vergastadas não fossem muito fortes: comparadas ao que senti depois, quando me ensinaram a carta de A B C, valiam pouco. Certamente o meu choro, os saltos, as tentativas para rodopiar na sala como carrapeta eram menos um sinal de dor que a explosão do medo reprimido. Estivera sem bulir, quase sem respirar. Agora esvaziava os pulmões, movia-me, num desespero.

O suplício durou bastante, mas, por muito prolongado que tenha sido, não igualava a mortificação da fase preparatória: o olho duro a magnetizar-me, os gestos ameaçadores, a voz rouca a mastigar uma interrogação incompreensível.

Solto, fui enroscar-me perto dos caixões, coçar as pisaduras, engolir soluços, gemer baixinho e embalar-me com os gemidos. Antes de adormecer, cansado, vi meu pai dirigir-se à rede, afastar as varandas, sentar-se e logo se levantar, agarrando uma tira de sola, o maldito cinturão, a que desprendera a fivela quando se deitara. Resmungou e entrou a passear agitado. Tive a impressão de que ia falar-me: baixou a cabeça, a cara enrugada serenou, os olhos esmoreceram, procuraram o refúgio onde me abatia, aniquilado.

Pareceu-me que a figura imponente minguava - e a minha desgraça diminuiu. Se meu pai se tivesse chegado a mim, eu o teria recebido sem o arrepio que a presença dele sempre me deu. Não se aproximou: conservou-se longe, rondando, inquieto. Depois se afastou.

Sozinho, vi-o de novo cruel e forte, soprando, espumando. E ali permaneci, miúdo, insignificante, tão insignificante e miúdo como as aranhas que trabalhavam na telha negra.

Foi esse o primeiro contato que tive com a justiça


Graciliano Ramos

Para Maria da Graça


Agora, que chegaste à idade avançada de 15 anos, Maria da Graça, eu te dou este livro: “Alice no País das Maravilhas”.

Este livro é doido, Maria. Isto é: o sentido dele está em ti.

Escuta: se não descobrires um sentido na loucura acabarás louca. Aprende, pois, logo de saída para a grande vida, a ler este livro como um simples manual do sentido evidente de todas as coisas, inclusive as loucas. Aprende isso a teu modo, pois te dou apenas umas poucas chaves entre milhares que abrem as portas da realidade.

A realidade, Maria, é louca.

Nem o Papa, ninguém no mundo, pode responder sem pestanejar à pergunta que Alice faz à gatinha: "Fala a verdade Dinah, já comeste um morcego?".

Não te espantes quando o mundo amanhecer irreconhecível. Para melhor ou pior, isso acontece muitas vezes por ano. "Quem sou eu no mundo?". Essa indagação perplexa é o lugar-comum de cada história de gente. Quantas vezes mais decifrares essa charada, tão entranhada em ti mesma como os teus ossos, mais forte ficarás. Não importa qual seja a resposta; o importante é dar ou inventar uma resposta. Ainda que seja mentira.

A sozinhez (esquece essa palavra que inventei agora sem querer) é inevitável. Foi o que Alice falou no fundo do poço: "Estou tão cansada de estar aqui sozinha!". O importante é que ela conseguiu sair de lá, abrindo a porta. A porta do poço! Só as criaturas humanas (nem mesmo os grandes macacos e os cães amestrados) conseguem abrir uma porta bem fechada, e vice-versa, isto é, fechar uma porta bem aberta.

Somos todos tão bobos, Maria. Praticamos uma ação trivial, e temos a presunção petulante de esperar dela grandes conseqüências. Quando Alice comeu o bolo, e não cresceu de tamanho, ficou no maior dos espantos. Apesar de ser isso o que acontece, geralmente, às pessoas que comem bolo.

Maria, há uma sabedoria social ou de bolso; nem toda sabedoria tem de ser grave.

A gente vive errando em relação ao próximo e o jeito é pedir desculpas sete vezes por dia: "Oh, I beg your pardon!". Pois viver é falar de corda em casa de enforcado. Por isso te digo, para a tua sabedoria de bolso: se gostas de gato, experimenta o ponto-de-vista do rato. Foi o que o rato perguntou à Alice: "Gostarias de gatos se fosses eu?".

Os homens vivem apostando corrida, Maria. Nos escritórios, nos negócios, na política, nacional e internacional, nos clubes, nos bares, nas artes, na literatura, até amigos, até irmãos, até marido e mulher, até namorados todos vivem apostando corrida. São competições tão confusas, tão cheias de truques, tão desnecessárias, tão fingindo que não é, tão ridículas muitas vezes, por caminhos tão escondidos, que, quando os atletas chegam exaustos a um ponto, costumam perguntar: "A corrida terminou! Mas quem ganhou?". É bobice, Maria da Graça, disputar uma corrida se a gente não irá saber quem venceu. Se tiveres de ir a algum lugar, não te preocupe a vaidade fatigante de ser a primeira a chegar. Se chegares sempre aonde quiseres, ganhaste.

Disse o ratinho: "Minha história é longa e triste!". Ouvirás isso milhares de vezes. Como ouvirás a terrível variante: "Minha vida daria um romance". Ora, como todas as vidas vividas até o fim são longas e tristes, e como todas as vidas dariam romances, pois o romance é só o jeito de contar uma vida, foge, polida mas energicamente, dos homens e das mulheres que suspiram e dizem: "Minha vida daria um romance!". Sobretudo dos homens. Uns chatos irremediáveis, Maria.

Os milagres sempre acontecem na vida de cada um e na vida de todos. Mas, ao contrário do que se pensa, os melhores e mais fundos milagres não acontecem de repente, mas devagar, muito devagar. Quero dizer o seguinte: a palavra depressão cairá de moda mais cedo ou mais tarde. Como talvez seja mais tarde, prepara-te para a visita do monstro, e não te desesperes ao triste pensamento de Alice: "Devo estar diminuindo de novo". Em algum lugar há cogumelos que nos fazem crescer novamente.

E escuta esta parábola perfeita: Alice tinha diminuído tanto de tamanho que tomou um camundongo por um hipopótamo. Isso acontece muito, Mariazinha. Mas não sejamos ingênuos, pois o contrário também acontece. E é um outro escritor inglês que nos fala mais ou menos assim: o camundongo que expulsamos ontem passou a ser hoje um terrível rinoceronte. Ê isso mesmo. A alma da gente é uma máquina complicada que produz durante a vida uma quantidade imensa de camundongos que parecem hipopótamos e de rinocerontes que parecem camundongos. O jeito é rir no caso da primeira confusão e ficar bem disposto para enfrentar o rinoceronte que entrou em nossos domínios disfarçado de camundongo. E como tomar o pequeno por grande e o grande por pequeno é sempre meio cômico, nunca devemos perder o bom-humor.

Toda pessoa deve ter três caixas para guardar humor: uma caixa grande para o humor mais ou menos barato que a gente gasta na rua com os outros; uma caixa média para o humor que a gente precisa ter quando está sozinho, para perdoares a ti mesma, para rires de ti mesma; por fim, uma caixinha preciosa, muito escondida, para as grandes ocasiões. Chamo de grandes ocasiões os momentos perigosos em que estamos cheios de dor ou de vaidade, em que sofremos a tentação de achar que fracassamos ou triunfamos, em que nos sentimos umas drogas ou muito bacanas. Cuidado, Maria, com as grandes ocasiões.

Por fim, mais uma palavra de bolso: às vezes uma pessoa se abandona de tal forma ao sofrimento, com uma tal complacência, que tem medo de não poder sair de lá. A dor também tem o seu feitiço, e este se vira contra o enfeitiçado. Por isso Alice, depois de ter chorado um lago, pensava: "Agora serei castigada, afogando-me em minhas próprias lágrimas...".

Conclusão: a própria dor deve ter a sua medida: É feio, é imodesto, é vão, é perigoso ultrapassar a fronteira de nossa dor, Maria da Graça.


Paulo Mendes Campos
("Elenco de Cronistas" - “O Colunista do Morro”)


Uma vela para Dario


Dario vinha apressado, guarda-chuva no braço esquerdo e, assim que dobrou a esquina, diminuiu o passo até parar, encostando-se à parede de uma casa. Por ela escorregando, sentou-se na calçada, ainda úmida de chuva, e descansou na pedra o cachimbo.

Dois ou três passantes rodearam-no e indagaram se não se sentia bem. Dario abriu a boca, moveu os lábios, não se ouviu resposta. O senhor gordo, de branco, sugeriu que devia sofrer de ataque.

Ele reclinou-se mais um pouco, estendido agora na calçada, e o cachimbo tinha apagado. O rapaz de bigode pediu aos outros que se afastassem e o deixassem respirar. Abriu-lhe o paletó, o colarinho, a gravata e a cinta. Quando lhe retiraram os sapatos, Dario roncou feio e bolhas de espuma surgiram no canto da boca.

Cada pessoa que chegava erguia-se na ponta dos pés, embora não o pudesse ver. Os moradores da rua conversavam de uma porta à outra, as crianças foram despertadas e de pijama acudiram à janela. O senhor gordo repetia que Dario sentara-se na calçada, soprando ainda a fumaça do cachimbo e encostando o guarda-chuva na parede. Mas não se via guarda-chuva ou cachimbo ao seu lado.

A velhinha de cabeça grisalha gritou que ele estava morrendo. Um grupo o arrastou para o táxi da esquina. Já no carro a metade do corpo, protestou o motorista: quem pagaria a corrida? Concordaram chamar a ambulância. Dario conduzido de volta e recostado á parede - não tinha os sapatos nem o alfinete de pérola na gravata.

Alguém informou da farmácia na outra rua. Não carregaram Dario além da esquina; a farmácia no fim do quarteirão e, além do mais, muito pesado. Foi largado na porta de uma peixaria. Enxame de moscas lhe cobriu o rosto, sem que fizesse um gesto para espantá-las.

Ocupado o café próximo pelas pessoas que vieram apreciar o incidente e, agora, comendo e bebendo, gozavam as delicias da noite. Dario ficou torto como o deixaram, no degrau da peixaria, sem o relógio de pulso.

Um terceiro sugeriu que lhe examinassem os papéis, retirados - com vários objetos - de seus bolsos e alinhados sobre a camisa branca. Ficaram sabendo do nome, idade; sinal de nascença. O endereço na carteira era de outra cidade.

Registrou-se correria de mais de duzentos curiosos que, a essa hora, ocupavam toda a rua e as calçadas: era a polícia. O carro negro investiu a multidão. Várias pessoas tropeçaram no corpo de Dario, que foi pisoteado dezessete vezes.

O guarda aproximou-se do cadáver e não pôde identificá-lo - os bolsos vazios. Restava a aliança de ouro na mão esquerda, que ele próprio quando vivo - só podia destacar umedecida com sabonete. Ficou decidido que o caso era com o rabecão.

A última boca repetiu - Ele morreu, ele morreu. A gente começou a se dispersar. Dario levara duas horas para morrer, ninguém acreditou que estivesse no fim. Agora, aos que podiam vê-lo, tinha todo o ar de um defunto.

Um senhor piedoso despiu o paletó de Dario para lhe sustentar a cabeça. Cruzou as suas mãos no peito. Não pôde fechar os olhos nem a boca, onde a espuma tinha desaparecido. Apenas um homem morto, e a multidão se espalhou, as mesas do café ficaram vazias. Na janela alguns moradores com almofadas para descansar os cotovelos.

Um menino de cor e descalço veio com uma vela, que acendeu ao lado do cadáver. Parecia morto há muitos anos, quase o retrato de um morto desbotado pela chuva.

Fecharam-se uma a uma as janelas e, três horas depois, lá estava Dario à espera do rabecão. A cabeça agora na pedra, sem o paletó, e o dedo sem a aliança. A vela tinha queimado até a metade e apagou-se às primeiras gotas da chuva, que voltava a cair.


Dalton Trevisan

Sentar-se à janela do avião


Era criança quando, pela primeira vez, entrei em um avião. A ansiedade de voar era enorme.

Eu queria me sentar ao lado da janela de qualquer jeito, acompanhar o vôo desde o primeiro momento e sentir o avião correndo na pista cada vez mais rápido até a decolagem.

Ao olhar pela janela via, sem palavras, o avião rompendo as nuvens, chegando ao céu azul.

Tudo era novidade e fantasia...

Cresci, me formei, e comecei a trabalhar. No meu trabalho, desde o início, voar era uma necessidade constante. As reuniões em outras cidades e a correria me obrigavam, às vezes, a estar em dois lugares num mesmo dia.

No início pedia sempre poltronas ao lado da janela, e, ainda com olhos de menino, fitava as nuvens, curtia a viagem, e nem me incomodava de esperar um pouco mais para sair do avião, pegar a bagagem, coisa e tal.

O tempo foi passando, a correria aumentando, e já não fazia questão de me sentar à janela, nem mesmo de ver as nuvens, o sol, as cidades abaixo, o mar ou qualquer paisagem que fosse.

Perdi o encanto. Pensava somente em chegar e sair, me acomodar rápido e sair rápido.

As poltronas do corredor agora eram exigência. Mais fáceis para sair sem ter que esperar ninguém, sempre e sempre preocupado com a hora, com o compromisso, com tudo, menos com a viagem, com a paisagem, comigo mesmo.

Por um desses maravilhosos 'acasos' do destino, estava eu louco para voltar de São Paulo numa tarde chuvosa, precisando chegar em Curitiba o mais rápido possível.

O vôo estava lotado e o único lugar disponível era uma janela, na última poltrona.

Sem pensar concordei de imediato, peguei meu bilhete e fui para o embarque.

Embarquei no avião, me acomodei na poltrona indicada: a janela. Janela que há muito eu não via, ou melhor, pela qual já não me preocupava em olhar.

E, num rompante, assim que o avião decolou, lembrei-me da primeira vez que voara. Senti novamente e estranhamente aquela ansiedade, aquele frio na barriga. Olhava o avião rompendo as nuvens escuras até que, tendo passado pela chuva, apareceu o céu.

Era de um azul tão lindo como jamais tinha visto. E também o sol, que brilhava como se tivesse acabado de nascer.

Naquele instante, em que voltei a ser criança, percebi que estava deixando de viver um pouco a cada viagem em que desprezava aquela vista.

Pensei comigo mesmo: será que em relação às outras coisas da minha vida eu também não havia deixado de me sentar à janela, como, por exemplo, olhar pela janela das minhas amizades, do meu casamento, do meu trabalho e convívio pessoal?

Creio que aos poucos, e mesmo sem perceber, deixamos de olhar pela janela da nossa vida.

A vida também é uma viagem e se não nos sentarmos à janela, perdemos o que há de melhor: as paisagens, que são nossos amores, alegrias, tristezas, enfim, tudo o que nos mantém vivos.

Se viajarmos somente na poltrona do corredor, com pressa de chegar, sabe-se lá aonde, perderemos a oportunidade de apreciar as belezas que a viagem nos oferece.

Se você também está num ritmo acelerado, pedindo sempre poltronas do corredor, para embarcar e desembarcar rápido e 'ganhar tempo', pare um pouco e reflita sobre aonde você quer chegar. A aeronave da nossa existência voa célere e a duração da viagem não é anunciada pelo comandante.

Não sabemos quanto tempo ainda nos resta. Por essa razão, vale a pena sentar próximo da janela para não perder nenhum detalhe.

Afinal, 'a vida, a felicidade e a paz são caminhos e não destinos'.


Alexandre Garcia

Sete mulhares

O meu noviciado de amor passei-o em Lisboa. Amei as primeiras sete mulheres que vi e que me viram.

A primeira era uma órfã, que vivia da caridade de um ourives, amigo do seu defunto pai. Chamava-se Leontina. Fiz versos a Leontina, sonetos em rima fácil, e muito errados, como tive ocasião de verificar, quando os quis dedicar a outra, dois anos depois.

Leontina não tinha caligrafia nem idéias; mas os olhos eram bonitos e o jeito de encostar a face à mão tinha encantos.

Era minha vizinha. Por desgraça também, era meu vizinho um algibebe que morria de amores por ela e, à conta deste amor, se ia arruinando, por descuidar-se em chamar freguesia, como os seus rivais, que saíam à rua a puxar pelos indivíduos suspeitos de quererem comprar. Aristocratizara-o o amor: envergonhava-se ele de tais alicantinas, debaixo do olhar distraído da mulher amada.

Odiava-me o algibebe. Recebi uma carta anônima, que devia ser sua. Era lacônica e sumária: “Se não muda de casa, qualquer noite é assassinado”.

Pouco mais dizia.

Contei a Leontina, em estilo alegre, com presunçoso desprezo da morte, o perigo em que estava minha vida, por amor dela. Indiquei o algibebe como autor da carta. A menina, que tivera o desfastio de lhe receber noutro tempo algumas, conheceu a letra mal disfarçada. Tomou-lhe raiva, fez-lhe arremessos e induziu a criada a atirar-lhe com uma casca de melão. Que lhe sujou um colete de veludinho amarelo e verde com listas encarnadas e pintas roxas. Que colete!

Passados tempos, Leontina desapareceu com a família; e, ao outro dia, recebi dela um bilhete, escrito em Almada. Dizia-me que o algibebe escrevera ao seu padrinho uma carta anônima, denunciando o namoro comigo. O padrinho ordenou logo a saída para a quinta de Almada.

O padrinho era o ourives, sujeito de cinqüenta anos, viúvo, com duas filhas mulheres, das quais amargamente Leontina se queixava. As filhas do ourives, receando que o pai se casasse com a órfã, queriam-lhe mal, e folgavam de a ver nas presas de alguma paixão, que a arrastasse ao crime, para assim se livrarem da temerosa perspectiva de tal madrasta.

E o certo é que o ourives pensava em casar com Leontina, logo que as filhas se arrumassem. Estas, porém, sobre serem feias, tinham contra si a repugnância do pai no dotá-las em vida. Ninguém as queria para passatempo e menos ainda para esposas.

Picado pelo ciúme, abriu o ourives seu peito à órfã, ofereceu-lhe a mão, e uma pulseira de brilhantes nela, com a condição de me esquecer.

Leontina disse que sim, cuidando que mentia; mas passados oito dias admirou-se de ter dito a verdade. Nunca mais soube de mim, nem eu dela; até que, um ano depois, a criada que a servia me contou que a menina casara com o padrinho e que as enteadas, coagidas pelo pai, se tinham ido para o recolhimento do Grilo com uma pequena mesada e a esperança de ficarem pobres. Não sei mais nada a respeito da primeira das sete mulheres que amei, em Lisboa.


Nota:

Eu sei mais alguma coisa que merece crônica. Leontina subjugou o ânimo do marido; descobriu que ele era rico e gozou quanto podia das regalias do mundo, às quais vivera estranha até aos vinte e quatro anos. O ourives tomou gosto aos prazeres e esqueceu o valor do dinheiro, exceto o que dava às filhas, que lhe saía da secretária com pedaços de vida. Começaram pelos arlequins e pelos touros e acabaram no Teatro de S. Carlos o refinamento do gosto.

Leontina andou falada na sua roda, como esposa fiel e admirável vencedora de tentações. Quase todos os amigos particulares do marido a cortejaram, sem resultado. Deu bailes em sua casa, donde era freqüente saírem os convidados penhorados, às quatro horas da manhã; mas, duma vez, não saíram todos; ficou um escondido no quarto da criada, e lá passou o dia seguinte.

O ourives ignorou muito tempo que a sua lealdade não era dignamente correspondida: porém, suspeitando um dia que a criada o roubava, fez-lhe uma visita domiciliária ao quarto, sem prevenir a esposa, e achou lá o filho do seu primo Anselmo, dormindo sobre a cama da moça, com a segurança de quem dorme em sua casa. Estava de moiras amarelas e vestia um chambre de lã do dono da casa! É o escândalo e mangação!

Foi chamada Leontina a altos gritos. Acordou o filho de Anselmo e foi procurar na algibeira do paletó um revólver. O qüinquagenário viu cinco bocas de ferro, mais persuasivas que a boca de ouro de Crisóstomo, o santo.

Passou ao andar de baixo e gritou pelo código criminal. Leontina tinha fugido para casa da sua amiga e vizinha D. Carlota, pessoa de hipotética probidade.

O escandaloso possessor do chambre despiu-o, vestiu-se, sacudiu as moiras amarelas, sentou-se a calçar as botas, acendeu um charuto, desceu as escadas serenamente e encontrou-se no pátio com dois cabos de polícia e um municipal. Dali foi para o administrador, que o mandou reter até ulteriores explicações.

Leontina, dias depois, foi para o Convento da Encarnação, onde esteve dois anos e donde saiu a tomar caldas em Torres Vedras, por consenso do marido, que a foi lá visitar e de lá foi com ela à exposição a Londres. Da volta da viagem, o ourives morreu hidrópico, legando às filhas umas inscrições, que rendem para ambas um cruzado diário, e à esposa uma independência farta em títulos bancários e em gêneros de ourivesaria.

Consta-me que Leontina se lembrara então de Silvestre; mas ignorava que destino ele tivesse. Incumbiu um compadre de indagar se estava no Porto o homem; a resposta demorou-se alguns dias, sete, creio eu, e ao sexto já ela estava em indagações da vida e costumes dum sujeito de bigode e pêra, que à mesma hora de cada tarde lhe passava à porta num tílburi, tirado por uma orça. Fácil lhe foi saber que o sujeito fora, cinco anos antes, algibebe, tirara o prêmio da Loteria de Espanha e fechara a loja. Era o mesmo algibebe que levara no colete de veludinho com a casca de melão.

Que mudança de cara e de maneiras ele fizera! O dinheiro faz essas mudanças e outras mais espantosas ainda. Chegaram à fala, deram-se explicações e casaram. Eu tive ocasião de os ver ontem no seu palacete a Buenos Aires.

Estão gordos, ricos e muito considerados na rua.


Camilo Castelo Branco


A crônica


A crônica, oficialmente, não existe. Mas, como ocorre com bruxas, há sempre alguém disposto a testemunhar que já a viu - e nas mais diferentes formas. Pode aparecer na forma de comentário sobre a cena política, ou como um recorte da infância. Ontem, disfarçou-se em digressões sobre o cotidiano. Amanhã, será poema em prosa. Às vezes exibe-se como trecho de algum romance que vai consumindo o autor ao longo de muitas madrugadas. Assume ainda características de ensaio, ou de experimentação estilística. Pode ser brincalhona, amarga, profunda, superficial, atrevida.

Tentativas de enquadrá-la com rigor em algum gênero não parecem recomendáveis. Catalogar a crônica como gênero menor, por exemplo, esbarra na evidência de que não existem gêneros menores. Há grandes e pequenos romancistas, grandes e pequenos poetas, grandes e pequenos contistas. Também há bons e maus cronistas. Contrapô-la ao conto é imaginar, equivocadamente, que crônicas seriam apenas histórias breves, inferiores ao conto em qualidade, densidade ou qualquer outro substantivo invocado para comparações dessa espécie. Numa frase: a crônica não passaria de conto leve e leviano. Mas como aplicar tal definição às obras-primas de um Rubem Braga ou um Fernando Sabino?

Inconstante, descompromissada, libertária, a crônica é avessa a regras e incompatível com camisas-de-força. Nos tempos da Província de São Paulo, por exemplo, já foi até anônima.

Raul Pompéia e Olavo Bilac assinavam textos curtos. Euclides da Cunha, Monteiro Lobato - obcecado com a questão da dicotomia atraso-progresso – publicavam, sem limitação de espaço, textos à altura das obras que lhes asseguraram uma vaga entre os grandes autores da língua portuguesa.

Além disso há outras particularidades: por exemplo ao perguntarem a Rubem Braga o que era a crônica, ele respondeu: "Repare bem: se não é aguda é crônica!".

Moacir Amâncio

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Crônica


Ah, essas pequenas coisas, tão quotidianas, tão prosaicas às vezes, de que se compõe meticulosamente a tessitura de um poema... talvez a poesia não passe de um gênero de crônica, apenas: uma espécie de crônica da eternidade.


(QUINTANA, Mario. Crônica. In: ─ . 80 anos de poesia; seleção e organização Tania Franco Carvalhal. São Paulo: Globo, 13. ed., 2008, p. 126, “Coleção Mario Quintana”.)

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

O fim do mundo


A primeira vez que ouvi falar no fim do mundo, o mundo para mim não tinha nenhum sentido, ainda; de modo que não me interessava nem o seu começo nem o seu fim. Lembro-me, porém, vagamente, de umas mulheres nervosas que choravam, meio desgrenhadas, e aludiam a um cometa que andava pelo céu, responsável pelo acontecimento que elas tanto temiam.

Nada disso se entendia comigo: o mundo era delas, o cometa era para elas: nós, crianças, existíamos apenas para brincar com as flores da goiabeira e as cores do tapete.

Mas, uma noite, levantaram-me da cama, enrolada num lençol, e, estremunhada, levaram-me à janela para me apresentarem à força ao temível cometa. Aquilo que até então não me interessava nada, que nem vencia a preguiça dos meus olhos pareceu-me, de repente, maravilhoso. Era um pavão branco, pousado no ar, por cima dos telhados? Era uma noiva, que caminhava pela noite, sozinha, ao encontro da sua festa? Gostei muito do cometa. Devia sempre haver um cometa no céu, como há lua, sol, estrelas. Por que as pessoas andavam tão apavoradas? A mim não me causava medo nenhum.

Ora, o cometa desapareceu, aqueles que choravam enxugaram os olhos, o mundo não se acabou, talvez eu tenha ficado um pouco triste - mas que importância tem a tristeza das crianças?

Passou-se muito tempo. Aprendi muitas coisas, entre as quais o suposto sentido do mundo. Não duvido de que o mundo tenha sentido. Deve ter mesmo muitos, inúmeros, pois em redor de mim as pessoas mais ilustres e sabedoras fazem cada coisa que bem se vê haver um sentido do mundo peculiar a cada um.

Dizem que o mundo termina em fevereiro próximo. Ninguém fala em cometa, e é pena, porque eu gostaria de tornar a ver um cometa, para verificar se a lembrança que conservo dessa imagem do céu é verdadeira ou inventada pelo sono dos meus olhos naquela noite já muito antiga.

O mundo vai acabar, e certamente saberemos qual era o seu verdadeiro sentido. Se valeu a pena que uns trabalhassem tanto e outros tão pouco. Por que fomos tão sinceros ou tão hipócritas, tão falsos e tão leais. Por que pensamos tanto em nós mesmos ou só nos outros. Por que fizemos voto de pobreza ou assaltamos os cofres públicos - além dos particulares. Por que mentimos tanto, com palavras tão judiciosas. Tudo isso saberemos e muito mais do que cabe enumerar numa crônica.

Se o fim do mundo for mesmo em fevereiro, convém pensarmos desde já se utilizamos este dom de viver da maneira mais digna.

Em muitos pontos da terra há pessoas, neste momento, pedindo a Deus - dono de todos os mundos - que trate com benignidade as criaturas que se preparam para encerrar a sua carreira mortal. Há mesmo alguns místicos - segundo leio - que, na Índia, lançam flores ao fogo, num rito de adoração.

Enquanto isso, os planetas assumem os lugares que lhes competem, na ordem do universo, neste universo de enigmas a que estamos ligados e no qual por vezes nos arrogamos posições que não temos - insignificantes que somos, na tremenda grandiosidade total.

Ainda há uns dias a reflexão e o arrependimento: por que não os utilizaremos? Se o fim do mundo não for em fevereiro, todos teremos fim, em qualquer mês...


Cecília Meireles


Texto extraído do livro "Quatro Vozes", Distribuidora Record de Serviços de Imprensa - Rio de Janeiro, 1998, pág. 73