quarta-feira, 30 de abril de 2008

De amor antigo

Disseram-me que os jovens decretaram um novo costume às rotinas da arte de namorar. Aliás, para dizer a verdade, percebe-se que o namoro na sua versão clássica do escurinho do cinema, dos beijos serenados no portão, esse está irremediavelmente perdido, revogado pela nova ordem constitucional dos desejos.

E, agora, o que fazem esses rapazes e essas moças, quando se conhecem nos degraus da Faculdade, ganhando os primeiros lances da vida?

Ao cinema, por certo, já não querem ir, por não terem mais o que fazer. Ninguém namora mais diante dos pais, imagine na frente de Humphrey Bogart e de Ingrid Bergman.

Chego a pensar que essa moçada já começa pelo fim. Juntam-se, pensando que amor se faz assim. Depois, separam-se pensando que a vida se desfaz assim...

Deve ser por isso que ninguém se lembra mais de namorar.

Os tempos modernos ensinaram aos moços que a arte de amar começa pelos finalmente.

Findam desconhecendo o amor, já que só têm tempo de provar o gosto final das coisas que jamais souberam começar.

Talvez seja este um defeito dos que, como eu, conheceram esses ofícios pela artesania das mãos, pela lavra dos olhares, pelo talhe doce dos corpos pressentidos e nunca revelados...

O que fazer, então, se assim nos disseram que assim devia ser?

Concederam-me a gradação dos sentidos e me disseram para esperar pelos avisos da alma, senhora das revelações. A grande viagem de um namoro começava nas mãos da estrela amada e podia chegar às galáxias mais encantadas – só dependia do argonauta apaixonado.

Se você ainda pensa conforme esse modelo, meu caro leitor, o defeito é seu. Assim como também é meu. Estamos irremediavelmente perdidos e revogados tal como o Amor Antigo.

Hoje, todos os namoros são executivos (ou serão executórios?). Antes, havia só o sentimento a penhorar. Mas era tudo. Porque se namorava singelamente por conta de um simples depósito de amor, que valia por todos os tesouros deste mundo.

Agora, até mesmo os poetas calaram-se de repente, não mais que de repente...

Nem eles falam mais das artes da paixão. Quando muito, um cronista eternamente apaixonado ainda se atreve a tanto ousar e no amor deixa-se estar.

Coisas de cronista, nada mais.


LUIZ AUGUSTO CRISPIM


(Correio da Paraíba, 13/04/2008, A8.)

terça-feira, 15 de abril de 2008

A última noite de Natal

Os grandes olhos claros e aguados boiavam na sombra nevoenta, cheios de espanto. Esfregou-os, arrastou-se pesado e entanguido, mal seguro à bengala,sentou-se num banco do jardim, fatigado, suspirando, examinou a custo os arredores. Gastou uns minutos passeando as mãos desajeitadas na gola do casaco. 0 exercício penoso enfureceu-o. Resmungou palavras enérgicas e incompreensíveis, esforçou-se por dominar a tremura. Com certeza era por causa do frio que os dedos caprichosos divagavam no pano esgarçado e os queixos banguelos se moviam continuamente. Era por causa do frio, sem dúvida. Se conseguisse abotoar o casaco e levantar a gola, os movimentos incômodos cessariam.

Em que estava pensando ao chegar ali? Ia jurar que pensava em coisas agradáveis. Ou seriam desagradáveis? Pedaços de recordações incoerentes dançavam-lhe no espírito, acendiam-se, apagavam-se, como vaga-lumes, confundiam-se com os letreiros verdes, vermelhos, que se acendiam e apagavam também quase invisíveis na poeira nebulosa. Tentou reunir as letras, fixar a atenção nas mais próximas, brilhantes, enormes.

A igreja toda aberta resplandecia. O incenso formava uma neblina perturbadora. E, através dela, os altares refugiam como sóis, a luz das velas numerosas chispava nas auréolas dos santos.

Que doidice ! Não é que estava imaginando ver ali, nas transitórias claridades, a igreja vista sessenta anos antes? Tresvariava. Sacudiu a cabeça, afastou a lembrança importuna. De que servia desenterrar casos antigos, alegrias e sofrimentos incompletos?

O que devia fazer... Pôs-se a mexer os beiços, procurando nas trevas úmidas e leitosas que o envolviam o resto da frase. O que devia fazer... Repetiu isto muitas vezes, numa cantilena, distraiu-se olhando a chuva amarela, verde, vermelha, dos repuxos. Impossível distinguir as cores. Ultimamente a cidade ia escurecendo. As pessoas que transitavam junto aos canteiros sem flores eram vultos indecisos; .os prédios se diluíam nas ramagens das árvores, manchas negras; os letreiros vacilantes não tinham sentido.

O que devia fazer... De repente a idéia rebelde surgiu. Bem. Devia meter os botões nas casas e agasalhar o pescoço. Depois cruzaria os braços, aqueceria as mãos debaixo dos sovacos, ficaria imóvel e tranqüilo. Mas os dedos finos e engelhados avançavam, recuavam, não havia meio de governá-los. Se pudesse riscar um fósforo, chegá-lo a um cigarro, esqueceria os inconvenientes que o aperreavam: o frio, a dureza das juntas, o tremor, a zoeira constante, sussurro de maribondos assanhados. Dores errantes andavam-lhe no corpo, entravam nos ossos e vinham à pele, arrepiavam os cabelos, fixavam-se nas pernas, esmoreciam.

Agora não estava no banco do jardim, perto das estátuas, das árvores, do coreto, dos esguichos coloridos. Estava longe, a sessenta anos de distância, ajoelhado na grama, diante da igreja da vila. Os rostos embotados, que se dissociavam, juntaram-se no largo onde um padre velho dizia a missa da meia-noite. Fervilhavam matutos em redor das barracas, num barulho de feira, e uma sineta badalava impondo em vão respeito e silêncio. Os cavalinhos rodavam. Esgueiravam-se casais pelos cantos. O padre velho dirigia olhares fulminantes àquela cambada de hereges. Uma figura pequenina cantava os hinos ingênuos, de versos curtos, fáceis. Tudo parecera de chofre muito sério, eterno. Os hinos capengas elevavam-se, estiravam-se. A mulher tinha um rosto de santa e exigia adoração. Sessenta anos. As fachadas enfeitavam-se com lanternas de papel, janelas escancaradas exibiam presépios, listas de foguetes cortavam o céu negro. A sineta badalava, zangada. E o burburinho da multidão não diminuía.

Sessenta anos. Da cinza que ocultava os olhos frios saltou uma faísca; os alfinetes pregados na carne trêmula embotaram-se; o espinhaço curvo endireitou-se; um débil sorriso franziu os beiços murchos; os braços ergueram-se lentos, buscando a imagem de sonho.

Imagem de sonho, que doidice! Era apenas uma bonita criatura de bom coração. Ligara-se a ela. E dezenas de vezes tinham-se os dois ajoelhado ali na grama, olhando as lanternas, os presépios, os foguetes, o padre que dizia a missa da meia-noite. Algumas esperanças, muitos desgostos. Os meninos cresciam, engordavam. E no jardim da casa miúda um jasmineiro recendia.

Depois tudo fora decaindo, minguando, morrendo. Achara-se novamente só. Os filhos e os netos se haviam espalhado pelo mundo. Agora... Que extensa caminhada, que enormes ladeiras, pai do céu ! Já nem se lembrava dos lugares percorridos.

Conseguiu abotoar o casaco e levantar a gola.

Andar tanto e afinal chegar ali, arriar num banco, não perceber as letras que se acendiam . e apagavam.

Certamente àquela hora, diante duma igreja aberta, outro homem novo admirava outra pessoinha ajoelhada, sentia desejos imensos, formava planos absurdos. Os desejos e os planos iam desfazer-se como a. fumaça luminosa dos repuxos.

(20 de dezembro de 1941).

Graciliano Ramos


Texto extraído do livro “Linhas Tortas”, Editora Record – Rio de Janeiro, 1983, pág. 222.



quarta-feira, 9 de abril de 2008

A coleira no pescoço


Nenhum dos dois conseguia disfarçar os danos da velhice, que suportavam em silenciosas e mútuas acusações. O velho parecia fazer um esforço muito grande para puxar o cão ladeira acima. A sola seca de seus sapatos esfolava o ladrilho da calçada arrancando-lhe um ruído ríspido, áspero, como de alguma coisa que se arrasta, e isso irritava o cão, cuja cabeça se mantinha o tempo todo virada para fora, o focinho apontando para o lado da rua. Seu corpo todo era uma recusa tensa e escura e ele tinha o olhar aborrecido de quem não pode esperar mais nada da vida além daquela coleira no pescoço, na ponta de uma corrente.

Uma língua de vento gelado passou rente ao chão, levantando em revoada, vida efêmera, folhas mortas de magnólia e de plátano, que se misturavam a outros detritos da rua. Com seu grosso boné de lã na mão direita, o velho cobriu o rosto e pensou que uma das maneiras de se morrer pode ser assim mesmo: sufocado pelo cheiro da própria cabeça, um cheiro de suores noturnos e pesadelos.

A caminhada estava suspensa à espera de que o vento fosse brincar em outras bandas da cidade, em alguma rua onde, a uma hora daquelas da manhã, ninguém cumprisse o destino de caminhar. Enquanto isso, parado sobre as pernas muito abertas, o velho suportava paciente as agulhadas da chuva de areia suspensa no ar.

O cão, de cabeça virada para a rua, permaneceu de olhos fechados, espremendo muito as pálpebras em proteção, aborrecido com aquele passeio cuja significação extraviara-se nos anos de sua juventude. Sacudiu a cabeça, abanando suas orelhas dependuradas, frouxas, porque era esse o modo de expressar sua recusa. Não olhava para a frente. Um rancor muito antigo impedia que os dois se encarassem. Mesmo por trás, e sem a vigilância daqueles dois olhos lacrimosos presos em suas órbitas avermelhadas, a figura do velho causava-lhe repugnância. Por isso o pescoço torto, a cabeça virada para a rua: o lado de fora.

A manhã passava sozinha, sem auxílio nenhum do sol, que se mantinha escondido entre nuvens grossas e leitosas. O vento amainou e o boné voltou para o alto da cabeça. Sem proferir uma só palavra, o velho andou coisa de três passos. Outra vez aquele ruído áspero esfolando os ouvidos sensíveis do cão. Preso à ponta da corrente esticada, ele apenas manteve o equilíbrio: suas patas tentavam cravar as unhas no ladrilho do passeio, mas era uma tentativa absurda. Moveu-se o suficiente para não cair. O cão sabia por experiência que estava preso à ponta de uma corrente esticada. Muitas vezes a vira, algumas vezes experimentara seus dentes nos elos de ferro. Há muito, entretanto, tinha desistido da liberdade. Ultimamente intuíra a existência de correntes menos visíveis e de elos sem forma definida, mas quase todas muito mais rígidas do que os dentes de um cão. Parado na calçada, pernas trêmulas, ele pressentiu a proximidade da magnólia. A idade não lhe extinguira o faro. Havia, naquele tronco, imensa variedade de cheiros sobrepostos demarcando inutilmente o sítio. Gesto atávico, há muito tempo destituído de qualquer significado. Preso à corrente, nem essa ilusão de poderio lhe era concedida.

A rua subia a ladeira encolhida entre casas de janelas fechadas e algumas árvores de folhas amarelas. Tosses e vozes mal chegavam às venezianas: a cidade recusava o dia. Além do velho e do cão, arrastando-se com dificuldade pela calçada, bem poucos transeuntes, de cabeça baixa, enfrentavam o frio que ainda restava da noite longa.

Cada um tem que cumprir seu itinerário na vida, pensava o velho com o braço esquerdo esticado para trás, puxando seu fardo. Há muito, entretanto, desistira de olhar-se no espelho.

Mesmo sendo um fragor conhecido, repetido a cada manhã, o cão encolheu-se um pouco, em proteção, quando o velho levou com a mão direita o lenço ao nariz. As orelhas pretas e caídas não se moveram. Além do susto já fraco, de tão cotidiano, suas patas malferidas na superfície áspera do passeio deveriam ser debitadas também ao companheiro. O cão piscou seu desconforto à passagem de um carro que desapareceu na primeira esquina, então foi arrastado por mais três passos.

A dor no ombro esquerdo só poderia ter como causa a teimosia daquele maldito cão, que nunca aceitava sem resistência as caminhadas matinais. O médico dissera-lhe que era desgaste da idade, a dor nos joelhos. Não havia razão para duvidar, mas o próprio desgaste teria sido menor se o companheiro não fosse aquele peso a ser arrastado.

As pernas secas do velho, com seus joelhos gastos, mediam o passeio menos de quarenta centímetros a cada vez em que se moviam. Compasso hesitante, de articulações enferrujadas, que pouco se abria. Em sua concentração, havia indícios de uma desconfiança antiga, principalmente quando seus pés encontraram as arestas duras de alguns ladrilhos salientes, empurrados para cima por raízes grossas que se escondiam debaixo da terra. Depois de avançar meia dúzia de metros, o velho parou, suado, a mão direita espalmada contra uma parede cinza, e então olhou para trás. A progressão existia, realmente, ou não passava tudo de alguma ilusão? Atrás ou na frente, o que via não eram pontos a compor um ponto maior, o todo estático? Sempre aquelas dúvidas a importuná-lo. O cão, pelo menos, o cão estava lá, no fim da corrente, com a cauda escondida entre as pernas retesadas e trêmulas, mergulhado em seu peso e seu pretume. Ir até o cão seria cobrir uma distância. Esse foi um pensamento indesejado, pois jamais faria isso, mas que lhe concedeu a paz de que tinha necessidade.

Nos últimos tempos chegaram a passar dias, semanas, às vezes, sem a troca do menor gesto que os ligasse. E isso foi acontecendo aos poucos, sem que percebessem. O latido rouco do cão já não tinha qualquer significado, e o ruído desnecessário exasperava o velho, que detinha o poder do castigo. Então espancava o companheiro, sem dó, para depois ralhar com ele, exigindo que ficasse quieto. O cão se encolhia todo e soltava uma espécie de gemido agudo pela boca fechada. Modelavam-se os dois, um pelas rabugices do outro. Por fim, aprenderam a engolir o próprio rancor em silêncio.

Quando o Sol por fim se mostrou entre galhos e platibandas, o velho e seu cão já haviam dobrado a mesma esquina por onde o carro tinha sumido. Primeiro sumiu o velho com sua altura ameaçada de desabar, depois foi a vez do cão, com a cabeça virada para trás. Os dois, acorrentados um ao outro, cumprindo uma interminável caminhada.


Menalton Braff

O homem de cabeça de papelão

No País que chamavam de Sol, apesar de chover, às vezes, semanas inteiras, vivia um homem de nome Antenor. Não era príncipe. Nem deputado. Nem rico. Nem jornalista. Absolutamente sem importância social.

O País do Sol, como em geral todos os países lendários, era o mais comum, o menos surpreendente em idéias e práticas. Os habitantes afluíam todos para a capital, composta de praças, ruas, jardins e avenidas, e tomavam todos os lugares e todas as possibilidades da vida dos que, por desventura, eram da capital. De modo que estes eram mendigos e parasitas, únicos meios de vida sem concorrência, isso mesmo com muitas restrições quanto ao parasitismo. Os prédios da capital, no centro elevavam aos ares alguns andares e a fortuna dos proprietários, nos subúrbios não passavam de um andar sem que por isso não enriquecessem os proprietários também. Havia milhares de automóveis à disparada pelas artérias matando gente para matar o tempo, cabarets fatigados, jornais, tramways, partidos nacionalistas, ausência de conservadores, a Bolsa, o Governo, a Moda, e um aborrecimento integral. Enfim tudo quanto a cidade de fantasia pode almejar para ser igual a uma grande cidade com pretensões da América. E o povo que a habitava julgava-se, além de inteligente, possuidor de imenso bom senso. Bom senso! Se não fosse a capital do País do Sol, a cidade seria a capital do Bom Senso!

Precisamente por isso, Antenor, apesar de não ter importância alguma, era exceção mal vista. Esse rapaz, filho de boa família (tão boa que até tinha sentimentos), agira sempre em desacordo com a norma dos seus concidadãos.

Desde menino, a sua respeitável progenitora descobriu-lhe um defeito horrível: Antenor só dizia a verdade. Não a sua verdade, a verdade útil, mas a verdade verdadeira. Alarmada, a digna senhora pensou em tomar providências. Foi-lhe impossível. Antenor era diverso no modo de comer, na maneira de vestir, no jeito de andar, na expressão com que se dirigia aos outros. Enquanto usara calções, os amigos da família consideravam-no um enfant terrible, porque no País do Sol todos falavam francês com convicção, mesmo falando mal. Rapaz, entretanto, Antenor tornou-se alarmante. Entre outras coisas, Antenor pensava livremente por conta própria. Assim, a família via chegar Antenor como a própria revolução; os mestres indignavam-se porque ele aprendia ao contrario do que ensinavam; os amigos odiavam-no; os transeuntes, vendo-o passar, sorriam.

Uma só coisa descobriu a mãe de Antenor para não ser forçada a mandá-lo embora: Antenor nada do que fazia, fazia por mal. Ao contrário. Era escandalosamente, incompreensivelmente bom. Aliás, só para ela, para os olhos maternos. Porque quando Antenor resolveu arranjar trabalho para os mendigos e corria a bengala os parasitas na rua, ficou provado que Antenor era apenas doido furioso. Não só para as vítimas da sua bondade como para a esclarecida inteligência dos delegados de polícia a quem teve de explicar a sua caridade.

Com o fim de convencer Antenor de que devia seguir os tramitas legais de um jovem solar, isto é: ser bacharel e depois empregado público nacionalista, deixando à atividade da canalha estrangeira o resto, os interesses congregados da família em nome dos princípios organizaram vários meetings como aqueles que se fazem na inexistente democracia americana para provar que a chave abre portas e a faca serve para cortar o que é nosso para nós e o que é dos outros também para nós. Antenor, diante da evidência, negou-se.

— Ouça! bradava o tio. Bacharel é o princípio de tudo. Não estude. Pouco importa! Mas seja bacharel! Bacharel você tem tudo nas mãos. Ao lado de um político-chefe, sabendo lisonjear, é a ascensão: deputado, ministro.

— Mas não quero ser nada disso.

— Então quer ser vagabundo?

— Quero trabalhar.

— Vem dar na mesma coisa. Vagabundo é um sujeito a quem faltam três coisas: dinheiro, prestígio e posição. Desde que você não as tem, mesmo trabalhando — é vagabundo.

— Eu não acho.

— É pior. É um tipo sem bom senso. É bolchevique. Depois, trabalhar para os outros é uma ilusão. Você está inteiramente doido.

Antenor foi trabalhar, entretanto. E teve uma grande dificuldade para trabalhar. Pode-se dizer que a originalidade da sua vida era trabalhar para trabalhar. Acedendo ao pedido da respeitável senhora que era mãe de Antenor, Antenor passeou a sua má cabeça por várias casas de comércio, várias empresas industriais. Ao cabo de um ano, dois meses, estava na rua. Por que mandavam embora Antenor? Ele não tinha exigências, era honesto como a água, trabalhador, sincero, verdadeiro, cheio de idéias. Até alegre — qualidade raríssima no país onde o sol, a cerveja e a inveja faziam batalhões de biliosos tristes. Mas companheiros e patrões prevenidos, se a princípio declinavam hostilidades, dentro em pouco não o aturavam. Quando um companheiro não atura o outro, intriga-o. Quando um patrão não atura o empregado, despede-o. É a norma do País do Sol. Com Antenor depois de despedido, companheiros e patrões ainda por cima tomavam-lhe birra. Por que? É tão difícil saber a verdadeira razão por que um homem não suporta outro homem!

Um dos seus ex-companheiros explicou certa vez:

— É doido. Tem a mania de fazer mais que os outros. Estraga a norma do serviço e acaba não sendo tolerado. Mau companheiro. E depois com ares...

O patrão do último estabelecimento de que saíra o rapaz respondeu à mãe de Antenor:

— A perigosa mania de seu filho é por em prática idéias que julga próprias.

— Prejudicou-lhe, Sr. Praxedes?

Não. Mas podia prejudicar. Sempre altera o bom senso. Depois, mesmo que seu filho fosse águia, quem manda na minha casa sou eu.

No País do Sol o comércio ë uma maçonaria. Antenor, com fama de perigoso, insuportável, desobediente, não pôde em breve obter emprego algum. Os patrões que mais tinham lucrado com as suas idéias eram os que mais falavam. Os companheiros que mais o haviam aproveitado tinham-lhe raiva. E se Antenor sentia a triste experiência do erro econômico no trabalho sem a norma, a praxe, no convívio social compreendia o desastre da verdade. Não o toleravam. Era-lhe impossível ter amigos, por muito tempo, porque esses só o eram enquanto. não o tinham explorado.

Antenor ria. Antenor tinha saúde. Todas aquelas desditas eram para ele brincadeira. Estava convencido de estar com a razão, de vencer. Mas, a razão sua, sem interesse chocava-se à razão dos outros ou com interesses ou presa à sugestão dos alheios. Ele via os erros, as hipocrisias, as vaidades, e dizia o que via. Ele ia fazer o bem, mas mostrava o que ia fazer. Como tolerar tal miserável? Antenor tentou tudo, juvenilmente, na cidade. A digníssima sua progenitora desculpava-o ainda.

— É doido, mas bom.

Os parentes, porém, não o cumprimentavam mais. Antenor exercera o comércio, a indústria, o professorado, o proletariado. Ensinara geografia num colégio, de onde foi expulso pelo diretor; estivera numa fábrica de tecidos, forçado a retirar-se pelos operários e pelos patrões; oscilara entre revisor de jornal e condutor de bonde. Em todas as profissões vira os círculos estreitos das classes, a defesa hostil dos outros homens, o ódio com que o repeliam, porque ele pensava, sentia, dizia outra coisa diversa.

— Mas, Deus, eu sou honesto, bom, inteligente, incapaz de fazer mal...

— É da tua má cabeça, meu filho.

— Qual?

— A tua cabeça não regula.

— Quem sabe?

Antenor começava a pensar na sua má cabeça, quando o seu coração apaixonou-se. Era uma rapariga chamada Maria Antônia, filha da nova lavadeira de sua mãe. Antenor achava perfeitamente justo casar com a Maria Antônia. Todos viram nisso mais uma prova do desarranjo cerebral de Antenor. Apenas, com pasmo geral, a resposta de Maria Antônia foi condicional.

— Só caso se o senhor tomar juízo.

— Mas que chama você juízo?

— Ser como os mais.

— Então você gosta de mim?

— E por isso é que só caso depois.

Como tomar juízo? Como regular a cabeça? O amor leva aos maiores desatinos. Antenor pensava em arranjar a má cabeça, estava convencido.

Nessas disposições, Antenor caminhava por uma rua no centro da cidade, quando os seus olhos descobriram a tabuleta de uma "relojoaria e outros maquinismos delicados de precisão". Achou graça e entrou. Um cavalheiro grave veio servi-lo.

— Traz algum relógio?

— Trago a minha cabeça.

— Ah! Desarranjada?

— Dizem-no, pelo menos.

— Em todo o caso, há tempo?

— Desde que nasci.

— Talvez imprevisão na montagem das peças. Não lhe posso dizer nada sem observação de trinta dias e a desmontagem geral. As cabeças como os relógios para regular bem...

Antenor atalhou:

— E o senhor fica com a minha cabeça?

— Se a deixar.

— Pois aqui a tem. Conserte-a. O diabo é que eu não posso andar sem cabeça...

— Claro. Mas, enquanto a arranjo, empresto-lhe uma de papelão.

— Regula?

— É de papelão! explicou o honesto negociante. Antenor recebeu o número de sua cabeça, enfiou a de papelão, e saiu para a rua.

Dois meses depois, Antenor tinha uma porção de amigos, jogava o pôquer com o Ministro da Agricultura, ganhava uma pequena fortuna vendendo feijão bichado para os exércitos aliados. A respeitável mãe de Antenor via-o mentir, fazer mal, trapacear e ostentar tudo o que não era. Os parentes, porem, estimavam-no, e os companheiros tinham garbo em recordar o tempo em que Antenor era maluco.

Antenor não pensava. Antenor agia como os outros. Queria ganhar. Explorava, adulava, falsificava. Maria Antônia tremia de contentamento vendo Antenor com juízo. Mas Antenor, logicamente, desprezou-a propondo um concubinato que o não desmoralizasse a ele. Outras Marias ricas, de posição, eram de opinião da primeira Maria. Ele só tinha de escolher. No centro operário, a sua fama crescia, querido dos patrões burgueses e dos operários irmãos dos spartakistas da Alemanha. Foi eleito deputado por todos, e, especialmente, pelo presidente da República — a quem atacou logo, pois para a futura eleição o presidente seria outro. A sua ascensão só podia ser comparada à dos balões. Antenor esquecia o passado, amava a sua terra. Era o modelo da felicidade. Regulava admiravelmente.

Passaram-se assim anos. Todos os chefes políticos do País do Sol estavam na dificuldade de concordar no nome do novo senador, que fosse o expoente da norma, do bom senso. O nome de Antenor era cotado. Então Antenor passeava de automóvel pelas ruas centrais, para tomar pulso à opinião, quando os seus olhos deram na tabuleta do relojoeiro e lhe veio a memória.

— Bolas! E eu que esqueci! A minha cabeça está ali há tempo... Que acharia o relojoeiro? É capaz de tê-la vendido para o interior. Não posso ficar toda vida com uma cabeça de papelão!

Saltou. Entrou na casa do negociante. Era o mesmo que o servira.

— Há tempos deixei aqui uma cabeça.

— Não precisa dizer mais. Espero-o ansioso e admirado da sua ausência, desde que ia desmontar a sua cabeça.

— Ah! fez Antenor.

— Tem-se dado bem com a de papelão? — Assim...

— As cabeças de papelão não são más de todo. Fabricações por séries. Vendem-se muito.

— Mas a minha cabeça?

— Vou buscá-la.

Foi ao interior e trouxe um embrulho com respeitoso cuidado.

— Consertou-a?

— Não.

— Então, desarranjo grande?

O homem recuou.

— Senhor, na minha longa vida profissional jamais encontrei um aparelho igual, como perfeição, como acabamento, como precisão. Nenhuma cabeça regulará no mundo melhor do que a sua. É a placa sensível do tempo, das idéias, é o equilíbrio de todas as vibrações. O senhor não tem uma cabeça qualquer. Tem uma cabeça de exposição, uma cabeça de gênio, hors-concours.

Antenor ia entregar a cabeça de papelão. Mas conteve-se.

— Faça o obséquio de embrulhá-la.

— Não a coloca?

— Não.

— V.EX. faz bem. Quem possui uma cabeça assim não a usa todos os dias. Fatalmente dá na vista.

Mas Antenor era prudente, respeitador da harmonia social.

— Diga-me cá. Mesmo parada em casa, sem corda, numa redoma, talvez prejudique.

— Qual! V.EX. terá a primeira cabeça.

Antenor ficou seco.

— Pode ser que V., profissionalmente, tenha razão. Mas, para mim, a verdade é a dos outros, que sempre a julgaram desarranjada e não regulando bem. Cabeças e relógios querem-se conforme o clima e a moral de cada terra. Fique V. com ela. Eu continuo com a de papelão.

E, em vez de viver no País do Sol um rapaz chamado Antenor, que não conseguia ser nada tendo a cabeça mais admirável — um dos elementos mais ilustres do País do Sol foi Antenor, que conseguiu tudo com uma cabeça de papelão.

João do Rio