terça-feira, 23 de novembro de 2010

Certas esperanças

É preciso — é mais do que preciso, é forçoso — dar boas festas, trocar embrulhinhos, querer mais intensamente, oferecer com mais prodigalidade, manter o sorriso e, acima de tudo, esquecer tristezas e saudades.

Façamos um supremo esforço para lembrar e sermos lembrados, porque assim manda a tradição e é difícil esquecer à tradição. Enviemos cartões e telegramas de felicitações àqueles que amamos e também àqueles que — sabemos perfeitamente — não gostam da gente. O Correio, nesta época do ano, finge-se de eficiente e já lá tem prontos impressos para que desejemos coisas boas aos outros, nivelando a todos em nossos augúrios.

Depois de abraçar e ser abraçado, desejar sincera e indiferentemente, embrulhar e desembrulhar presentes, cada um poderá fazer votos a si mesmo, desejar para si o que bem entender. Subindo na escala das idades, este sonhou todo o mês com um trenzinho elétrico, aquele com uma bicicleta (com farol e tudo), o outro certa moça, mais além um quarto sonhador esteve a remoer a idéia de ser ministro e o rico... bem, o rico só pensa em ser mais rico. O rico detesta amistosamente os ministros, já não tem olhos para a graça da moça, pernas para pedalar uma bicicleta e, muito menos, tempo para brincar com um trenzinho.

Dos planos de cada um, pouquíssimos serão transformados em realidade. Alguns hão de abandoná-los por desleixo e a maioria, mal o ano de 56 começar, não pensará mais nele, por pura desesperança. O melhor, portanto, é não fazer planos. Desejar somente, posto que isso sim, é humano e acalentador.

De minha parte estou disposto a esquecer todas as passadas amarguras, tudo que o destino me arranjou de ruim neste ano que finda. Ficarei somente com as lembranças do que me foi grato e me foi bom.

No mais, desejarei ficar como estou porque, se não é o que há de melhor, também não é tão ruim assim e, tudo somado, ficaram gratas alegrias. Que Deus me proporcione as coisas que sempre me foram gratas e que — Ele sabe — não chegam a fazer de mim um ambicioso.

Que não me falte aquele almoço honesto dos sábados (único almoço comível na semana), com aquele feijão que só a negra Almira sabe fazer; que não me falte o arroz e a cerveja — é muito importante a cerveja, meu Deus! —, como é importante manter em dia o ordenado da Almira.

Se não me for dado comparecer às grandes noites de gala, que fazer? Resta-me o melhor, afinal, que é esticar de vez em quando por aí, transformando em festa uma noite que poderia ser de sono.

E para os pequenos gostos pessoais, que me reste sensibilidade bastante para entretê-las. Ai de mim se começo a não achar mais graça nos pequenos gostos pessoais. Que o perfume do sabonete, no banho matinal, seja sempre violeta; que haja um cigarro forte para depois do café; uma camisa limpa para vestir; um terno que pode não ser novo, mas que também não esteja amarrotado. Uma vez ou outra, acredito que não me fará mal um filme da Lollobrigida, nem um uísque com gelo ou — digamos — uma valsa.

Nada de coisas impossíveis para que a vida possa ser mais bem vivida. Apenas uma praia para janeiro, uma fantasia para fevereiro, um conhaque para junho, um livro para agosto e as mesmas vontades para dezembro.

No mais, continuarei a manter certas esperanças inconfessáveis porém passíveis — e quanto — de acontecerem.


Stanislaw Ponte Preta


A crônica acima foi publicada na revista "Manchete" nº. 193, de 31/12/55.

sábado, 30 de outubro de 2010

O Cronista é um Escritor Crônico


O primeiro texto que publiquei em jornal foi uma crônica. Devia ter eu lá uns 16 ou 17 anos. E aí fui tomando gosto. Dos jornais de Juiz de Fora, passei para os jornais e revistas de Belo Horizonte e depois para a imprensa do Rio e São Paulo. Fiz de tudo (ou quase tudo) em jornal: de repórter policial a crítico literário. Mas foi somente quando me chamaram para substituir Drummond no Jornal do Brasil, em 1984, que passei a fazer crônica sistematicamente. Virei um escritor crônico.
O que é um cronista?

Luís Fernando Veríssimo diz que o cronista é como uma galinha, bota seu ovo regularmente. Carlos Eduardo Novaes diz que crônicas são como laranjas, podem ser doces ou azedas e ser consumidas em gomos ou pedaços, na poltrona de casa ou espremidas na sala de aula.

Já andei dizendo que o cronista é um estilita. Não confundam, por enquanto, com estilista. Estilita era o santo que ficava anos e anos em cima de uma coluna, no deserto, meditando e pregando. São Simeão passou trinta anos assim, exposto ao sol e à chuva. Claro que de tanto purificar seu estilo diariamente o cronista estilita acaba virando um estilista.

O cronista é isso: fica pregando lá em cima de sua coluna no jornal. Por isto, há uma certa confusão entre colunista e cronista, assim como há outra confusão entre articulista e cronista. O articulista escreve textos expositivos e defende temas e idéias. O cronista é o mais livre dos redatores de um jornal. Ele pode ser subjetivo. Pode (e deve) falar na primeira pessoa sem envergonhar-se. Seu "eu", como o do poeta, é um eu de utilidade pública.

Que tipo de crônica escrevo? De vários tipos. Conto casos, faço descrições, anoto momentos líricos, faço críticas sociais. Uma das funções da crônica é interferir no cotidiano. Claro que essas que interferem mais cruamente em assuntos momentosos tendem a perder sua atualidade quando publicadas em livro. Não tem importância. O cronista é crônico, ligado ao tempo, deve estar encharcado, doente de seu tempo e ao mesmo tempo pairar acima dele.


Affonso Romano de Sant'Anna


Texto extraído do jornal "O Globo" - Rio de Janeiro.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Eu sei, mas não devia.

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.


Marina Colasanti

domingo, 12 de setembro de 2010

Tênis X Frescobol


Depois de muito meditar sobre o assunto concluí que os casamentos são de dois tipos: há os casamentos do tipo tênis e há os casamentos do tipo frescobol. Os casamentos do tipo tênis são uma fonte de raiva e ressentimentos e terminam sempre mal. Os casamentos do tipo frescobol são uma fonte de alegria e têm a chance de ter vida longa.

Explico-me. Para começar, uma afirmação de Nietzsche, com a qual concordo inteiramente. Dizia ele: ‘Ao pensar sobre a possibilidade do casamento cada um deveria se fazer a seguinte pergunta: “Você crê que seria capaz de conversar com prazer com esta pessoa até a sua velhice?” Tudo o mais no casamento é transitório, mas as relações que desafiam o tempo são aquelas construídas sobre a arte de conversar.’

Xerazade sabia disso. Sabia que os casamentos baseados nos prazeres da cama são sempre decapitados pela manhã, terminam em separação, pois os prazeres do sexo se esgotam rapidamente, terminam na morte, como no filme O império dos sentidos. Por isso, quando o sexo já estava morto na cama, e o amor não mais se podia dizer através dele, ela o ressuscitava pela magia da palavra: começava uma longa conversa, conversa sem fim, que deveria durar mil e uma noites. O sultão se calava e escutava as suas palavras como se fossem música. A música dos sons ou da palavra – é a sexualidade sob a forma da eternidade: é o amor que ressuscita sempre, depois de morrer. Há os carinhos que se fazem com o corpo e há os carinhos que se fazem com as palavras. E contrariamente ao que pensam os amantes inexperientes, fazer carinho com as palavras não é ficar repetindo o tempo todo: ‘Eu te amo, eu te amo…’ Barthes advertia: ‘Passada a primeira confissão, ‘eu te amo\’ não quer dizer mais nada.’ É na conversa que o nosso verdadeiro corpo se mostra, não em sua nudez anatômica, mas em sua nudez poética. Recordo a sabedoria de Adélia Prado: ‘Erótica é a alma.’

O tênis é um jogo feroz. O seu objetivo é derrotar o adversário. E a sua derrota se revela no seu erro: o outro foi incapaz de devolver a bola. Joga-se tênis para fazer o outro errar. O bom jogador é aquele que tem a exata noção do ponto fraco do seu adversário, e é justamente para aí que ele vai dirigir a sua cortada – palavra muito sugestiva, que indica o seu objetivo sádico, que é o de cortar, interromper, derrotar. O prazer do tênis se encontra, portanto, justamente no momento em que o jogo não pode mais continuar porque o adversário foi colocado fora de jogo. Termina sempre com a alegria de um e a tristeza de outro.

O frescobol se parece muito com o tênis: dois jogadores, duas raquetes e uma bola. Só que, para o jogo ser bom, é preciso que nenhum dos dois perca. Se a bola veio meio torta, a gente sabe que não foi de propósito e faz o maior esforço do mundo para devolvê-la gostosa, no lugar certo, para que o outro possa pegá-la. Não existe adversário porque não há ninguém a ser derrotado. Aqui ou os dois ganham ou ninguém ganha. E ninguém fica feliz quando o outro erra – pois o que se deseja é que ninguém erre. O erro de um, no frescobol, é como ejaculação precoce: um acidente lamentável que não deveria ter acontecido, pois o gostoso mesmo é aquele ir e vir, ir e vir, ir e vir… E o que errou pede desculpas; e o que provocou o erro se sente culpado. Mas não tem importância: começa-se de novo este delicioso jogo em que ninguém marca pontos…

A bola: são as nossas fantasias, irrealidades, sonhos sob a forma de palavras. Conversar é ficar batendo sonho pra lá, sonho pra cá…

Mas há casais que jogam com os sonhos como se jogassem tênis. Ficam à espera do momento certo para a cortada. Camus anotava no seu diário pequenos fragmentos para os livros que pretendia escrever. Um deles, que se encontra nos Primeiros cadernos, é sobre este jogo de tênis:
‘Cena: o marido, a mulher, a galeria. O primeiro tem valor e gosta de brilhar. A segunda guarda silêncio, mas, com pequenas frases secas, destrói todos os propósitos do caro esposo. Desta forma marca constantemente a sua superioridade. O outro domina-se, mas sofre uma humilhação e é assim que nasce o ódio. Exemplo: com um sorriso: ‘Não se faça mais estúpido do que é, meu amigo\’. A galeria torce e sorri pouco à vontade. Ele cora, aproxima-se dela, beija-lhe a mão suspirando: ‘Tens razão, minha querida\’. A situação está salva e o ódio vai aumentando.’

Tênis é assim: recebe-se o sonho do outro para destruí-lo, arrebentá-lo, como bolha de sabão… O que se busca é ter razão e o que se ganha é o distanciamento. Aqui, quem ganha sempre perde.

Já no frescobol é diferente: o sonho do outro é um brinquedo que deve ser preservado, pois se sabe que, se é sonho, é coisa delicada, do coração. O bom ouvinte é aquele que, ao falar, abre espaços para que as bolhas de sabão do outro voem livres. Bola vai, bola vem – cresce o amor… Ninguém ganha para que os dois ganhem. E se deseja então que o outro viva sempre, eternamente, para que o jogo nunca tenha fim…


Rubem Alves
(O retorno e terno, p. 51.)

terça-feira, 27 de julho de 2010

A crônica

Crônica, do grego chrónos, tempo, cronicar, feito Tácito, relatar o tempo ou tempos.

Por que nós, brasileiros, fizemos do gênero especialidade da casa — feito muqueca de peixe ou tutu à mineira?

Eu, pela parte que me cabe — e é pouquíssima a parte que me cabe —, eu tenho minhas teoriazinhas.

Primeiro lugar, porque nós trabalhamos bem com poucas armas, isto é, Euclides da Cunha à parte, nosso fôlego literário é curto.

Não há nenhum demérito nisso.

Se a América Latina fornece caudalosos escritores, como Vargas Llosa, Roa Bastos e Alejo Carpentier, nós, por outro lado, somos excelentes no pinga-pinga do conto: o próprio Machado de Assis, Lima Barreto, Alcântara Machado, Dalton Trevisan, Clarice Lispector, Rubem Fonseca.

Segundo lugar, porque nós temos consciência da extraordinária violência com que o tempo vai levando as coisas e as gentes, daí a necessidade de registrar, de alguma forma, o que se passou e passa no âmbito pessoal e intransferível.

Terceiro lugar, em conseqüência disso que acabei de falar: somos muito pessoais, vemos e vivemos muito a nossa vida e a celebramos quase que no próprio instante em que ela se passa.

A crônica é a nossa autobustificação, por assim dizer.

Ou, em termos da realidade atual: é a nossa autonomeação para assessor disso ou secretário daquilo outro.

E em quarto e último lugar: dinheiro.

Não há motivo nenhum para se ficar encabulado.

Quem não escreve por dinheiro não é digno da profissão.

Um romance vende cinco mil exemplares e o autor, com alguma sorte, pega o equivalente a uns tantos salários mínimos.

Se dividirmos tempo gasto no trabalho e na vida de estante do livro, vai dar nisso mesmo: salário mínimo.

O cronista, por outro lado, mesmo mal pago — e quando é bom não é esse o caso —, tem uns cobres garantidos no fim do mês, se o empregador for bom pagador.

Conseqüentemente: aí está, viva e atuante, a crônica do cronista brasileiro.

Pouco importa que o cronista ou a cronista limite-se a relatar seu encontro no bar ou sua ida ao cabeleireiro.

Tanto faz que seja elitista ou literariamente limitador.

E daí que tenha menos profundidade que mergulhadores mais audazes como Milan Kundera e Marion Zimmer Bradley?

A crônica vai registrando, o cronista vai falando sozinho diante de todo mundo.


Ivan Lessa


Ivan Lessa fez parte do grupo que colaborou e que, durante muito tempo, fez sucesso no jornal "O Pasquim". Carioca, filho de Orígines Lessa e Elsie Lessa, escreve com sucesso, valendo-se de um humor cheio de ironias. Auto-asilado na Inglaterra, segundo ele por ter-se desencantado com o Brasil, trabalha na BBC de Londres. O texto acima consta do livro "Ivan vê o mundo", Editora Objetiva — Rio de Janeiro, 1999.


segunda-feira, 26 de julho de 2010

O assombro das noites

Nunca esqueci a noite em que, acordando de um pesadelo, vi luz acesa na sala e fui ver quem estava lá. Ajoelhada diante da mesa, cabeça baixa, terço nas mãos, tia Zizinha rezava, madrugada alta, tudo em silêncio, ela magrinha, parecia um passarinho molhado, sentindo frio.

Era devota, a minha tia, não deveria ficar impressionado, mesmo assim fiquei. Sabia que ela rezava por todos nós, por mim, pelo meu avô que estava doente, pelo mundo inteiro. Evitei que ela me visse e voltei para a cama, perdera o medo do pesadelo, sabia que os fantasmas não mais me assustariam.

Anos depois, muitos anos depois, viajava com o Otto Maria Carpeaux, fazíamos palestras agendadas por diretórios de estudantes, centros de estudos, era um mambembe não-remunerado e estranhíssimo, pois Carpeaux era gago, eu falava mal e pronunciava as palavras de forma errada, mesmo assim, havia gente que deseja ouvir-nos.

Em Florianópolis, num hotel modesto, acordei no meio da noite e olhei para a cama ao lado. Estava vazia. Carpeaux sofria de insônia, imaginei que ele, sem fazer barulho, na ponta dos pés, tivesse saído do quarto, tomando cuidado para não me acordar.

Não acendi a luz, mas saí da cama, fui à saleta anexa ao quarto, que também estava escura. Voltado contra a parede, numa direção que eu não podia determinar (Roma? Meca? Jerusalém?), Carpeaux estava de joelhos, cabeça baixa, os braços estendidos, como um anacoreta medieval, perdido num deserto de estrelas.

Carpeaux era judeu vienense, convertera-se ao catolicismo, segundo alguns, para conseguir visto no Vaticano que o tirasse da Gestapo, que o procurava. Eu sabia tudo sobre Carpeaux, menos o seu passado europeu, sobre o qual ele nunca falava. Não freqüentava igrejas, evitava qualquer discussão sobre temas religiosos.

Tia Zizinha... Carpeaux... Uma noite dessas, tomo coragem e fico de joelhos diante de meus espantos.


Carlos Heitor Cony


CONY, Carlos Heitor. O assombro das noites. In: Antologia de Crônicas: crônica brasileira contemporânea, Manuel da Costa Pinto (org.). São Paulo: Moderna, 2005, pp. 20-1, coleção “Lendo & Relendo”.

sábado, 12 de junho de 2010


Bem, Márcia, hoje quero te falar de uma namorada de meus dezessete anos. Tenho aqui uma foto dela, só que não vai pro teu álbum, não. Ela faz parte de uma época de consciências etéreas.

Nosso primeiro encontrou deu-se em frente ao Cine Olido, naquela velha galeria da Avenida São João. Por telefone, a voz dela refletia uma ternura ansiosa de conhecimentos, vivências e reconhecimentos. Cada dia imaginava seu rosto, mas não conseguia fixar uma forma, pois a voz me absorvia e contagiava.

Enfim, fui ao encontro como um requintado cavalheiro apaixonado que leva consigo a primazia dos tormentosos dezessete anos. Meu mais bonito terno azulado, com colete e cinto da mesma fazenda da calça. Camisa socialíssima, colarinho alto, bem justo, curto e arredondado. Gravata num tom azul mais escuro, com leves listas mais claras, celestes.

No local exato e na hora marcada, dois enormes olhos negros me espetavam quais filete de açúcar. Lábios promissores (apesar do batom um tanto excessivo), queixo arrogante. A pele me parecia de seda, vontade de tocá-la. E nas voltas da saia rodada, um sorriso irônico. Uma porcelana girando em minha mão indecisa.

Comprei-me um drops de hortelã e entramos. Durante toda a sessão, não me deixou abraçá-la e muito menos beijá-la. De vez em quando roçava-lhe a mão num contato arrepiante. Mas foi bom e de muita sorte, pois ficamos sabendo dias após que o pai dela estivera o tempo todo nos observando, sentado numa poltrona duas carreiras atrás da nossa.

Essa menina me desafiou sempre. Namorávamos muito, mas raramente nos encontrávamos. Passávamos horas e horas ao telefone, falando e ouvindo o Pery Ribeiro cantar: "Quero amar você, inteirinha, abraçar você inteirinha..." Mas nunca nos abraçamos inteirinhos, e nem por partes.

Nossos momentos mais íntimos foram sempre tão domésticos. Quando ela escapava das presilhas aproveitando as artimanhas de seu motorista particular, o Bené, e ia até minha casa. Chegava num Oldsmobile enorme, último tipo. A vizinhança toda na janela espantando-se com aquele carrão vermelho e aquela moça chique a conversar comigo apoiada no rangedor portãozinho de casa. Até que o Bené começava a buzinar, de leve. Quando não descia do carro a espalhar-se matreiro em explicações e gentilezas arraigadas do morro da Casa Verde, sua origem. Ficou meu amigo, o cara, porque eu morava no Bom Retiro, e ele dizia que eu era gente igual a ele. E era mesmo.

Outras vezes, vivi com essa menina tardes românticas nos imensos jardins de sua casa, ao redor de sucos e rubores. Sentávamos nas poltronas de vime de sua varanda ajardinada. E éramos servidos com graça e requinte pela Girogina - mucama com voz de atriz - que nos trazia até pedacinhos picados de maçã à tona das laranjadas. Sensível que era, essa mulata, deixava os refrescos e se retirava, mantendo-se invisível. Mas logo aparecia o Fabinho, irmãozinho da menina. Lindo, quatro anos, louros cabelos cacheados. Ficava o tempo todo enroscado na irmã como a preservá-la de algum possível ataque meu.

Apesar de tudo, era tão profundamente poético. Mas apenas poético... Ah, essa menina compartilhou comigo delicadas introversões e as mais puras indecisões da adolescência.

Muitos anos depois, conheci sua filha, Daniela. Olhos enormes, que não eram negros, mas azuis, e ficaram imortalizados por mim num óleo irresistível. Hoje, quem sabe de Daniela?


João Carlos Pecci

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Sobre a Escrita...

Meu Deus do céu, não tenho nada a dizer. O som de minha máquina é macio.

Que é que eu posso escrever? Como recomeçar a anotar frases? A palavra é o meu meio de comunicação. Eu só poderia amá-la. Eu jogo com elas como se lançam dados: acaso e fatalidade. A palavra é tão forte que atravessa a barreira do som. Cada palavra é uma idéia. Cada palavra materializa o espírito. Quanto mais palavras eu conheço, mais sou capaz de pensar o meu sentimento.

Devemos modelar nossas palavras até se tornarem o mais fino invólucro dos nossos pensamentos. Sempre achei que o traço de um escultor é identificável por um extrema simplicidade de linhas. Todas as palavras que digo - é por esconderem outras palavras.

Qual é mesmo a palavra secreta? Não sei é porque a ouso? Não sei porque não ouso dizê-la? Sinto que existe uma palavra, talvez unicamente uma, que não pode e não deve ser pronunciada. Parece-me que todo o resto não é proibido. Mas acontece que eu quero é exatamente me unir a essa palavra proibida. Ou será? Se eu encontrar essa palavra, só a direi em boca fechada, para mim mesma, senão corro o risco de virar alma perdida por toda a eternidade. Os que inventaram o Velho Testamento sabiam que existia uma fruta proibida. As palavras é que me impedem de dizer a verdade.

Simplesmente não há palavras.

O que não sei dizer é mais importante do que o que eu digo. Acho que o som da música é imprescindível para o ser humano e que o uso da palavra falada e escrita são como a música, duas coisas das mais altas que nos elevam do reino dos macacos, do reino animal, e mineral e vegetal também. Sim, mas é a sorte às vezes.

Sempre quis atingir através da palavra alguma coisa que fosse ao mesmo tempo sem moeda e que fosse e transmitisse tranqüilidade ou simplesmente a verdade mais profunda existente no ser humano e nas coisas. Cada vez mais eu escrevo com menos palavras. Meu livro melhor acontecerá quando eu de todo não escrever. Eu tenho uma falta de assunto essencial. Todo homem tem sina obscura de pensamento que pode ser o de um crepúsculo e pode ser uma aurora.

Simplesmente as palavras do homem.


Clarice Lispector

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Casa para alugar

Ontem fui ver uma casa vazia, que espera seus inquilinos. Onde fica, qual o seu aluguel, isto não são coisas contidas no ofício da cronista. Estava toda escancarada para um sol que lampejava enviesado, desconcertando pelo seu absurdo de má pintura. Já era quase noite num canto do céu. E havia um rasgão azul cintilante, feito para clarear a casinha, que se oferecia, toda branca e nova, para quem quisesse e pudesse. Quando entrei — um operário cantava, outro metia a cabeça pintalgada de branco sob a torneira do jardim. Havia água, espaço, terra em torno, muros cercando o pequeno domínio. Muitas pessoas têm ido ver a casinha vazia. As mulheres ficam perturbadas por um amontoado de sonhos que se desencadeiam, mal elas põem os pés no pequeno terraço. "Aqui fecharei com persianas; será quase um jardim, para que o neném não saia. E mandarei pintar da mesma cor da parede essa tremenda barra de cor verde, na sala de jantar, fingindo mármore".Depois de uma pausa, talvez ainda acrescentem:

"Este quarto será transformado em escritório, porque tem muita parede, e bem se pode nele instalar a grande estante de dois metros e oitenta. E neste canto do quarto cabe a cama de casal".

A casinha será medida, considerada por uma respeitável quantidade de pessoas. Alguém se alegrará com o quintal, nele instalando em imaginação a casa do seu cachorro ou o galinheiro. Pessoas poéticas verão crescidas, aninhando as paredes, amorosas trepadeiras, assim como as begônias no terraço, mais as avencas e os gerânios.

Gostei de ver a casinha desalugada. Ainda não se sabe de quem será! É um palco pequeno e adornado, esperando por seus atores. Até a música que o operário cantarolava me parecia qualquer canto de apresentação, antes de uma peça, cuja primeira parte constará, talvez, da invasão de uma família com sua velha e seu papagaio, seu piano que não encontra parede, sua moça que reclama tudo, e a mãe que briga com os fornecedores. Um gato morrerá, quase, de susto, traumatizado com a alvura das paredes desconhecidas. A jovem achará a barra de imitação de mármore o tipo da coisa suburbana. 0 pai, vindo de uma era de casas mais enfestadas, defenderá aquela aparência de suntuosidade com o calor que só as discussões domésticas podem ter. Haverá um filho estudando, brigas sobre o horário do almoço, objetos perdidos na mudança, e o martirológio da dona da casa entoado por ela própria, sem que ninguém se importe com seu drama. Pode ser que a moça se case, que haja na salinha de barra verde uma mesa com comes e bebes. Acontecerá, quem sabe, em certa madrugada, riscar o escuro o choro de uma criancinha recém-nascida pungentemente cantando dos difíceis começos, doloridos começos de qualquer vida. Haverá alegria, haverá dívidas de dar nó na garganta, e festa de formatura, e discussões políticas. A casinha nova, então, terá paredes riscadas, gordura sobre o forro da cozinha, portas sem chave, torneiras escorrendo. Na ex-cobiçada pequena casa pessoas baterão portas com raiva:

— "Esta casa é um inferno!"

Outras chegarão nela, já toda sabida e experimentada, como amante sem segredo, e irão diretamente a um canto mais fresco do terraço, ou para a profundeza de um quarto.

— "Eu estava morrendo de calor (ou de cansaço). Não agüentava mais a rua."

Terá a casinha tão perfeitamente pura, hoje, pregos caídos da parede, ladrilhos que faltam, como dentadura incompleta. Se passar algum tempo mais — talvez que o velho morra, e se enterre com a roupa feita ainda para o casamento da filha em seu caixão, que no alto será levantado, quando atravessar o portãozinho.

Ah, casinha que espera seus donos, branca e bonita como uma noiva menina! Estás preparada para teu destino. E, antes dos moradores — compactos fantasmas de vida e de morte já te povoam, eu sei.


Dinah Silveira de Queiroz


Dinah Silveira de Queiroz nasceu em 09/11/1910 na capital paulista. Publicou seu primeiro conto em 1937, e dois anos depois lançou seu primeiro livro, "Floradas na Serra", obtendo grande sucesso e sendo premiada pela Academia Paulista de Letras. Em 1954 recebeu o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto de sua obra. Desempenhou as funções de adido cultural do Brasil junto à nossa Embaixada em Madrid. É a autora de "A Sereia Verde", "Margarida La Roque", "Aventuras do Homem Vegetal", "A Muralha", "O Oitavo Dia", "As Noites do Morro do Encanto", "Eles Herdarão a Terra" e "Os Invasores", dentre outros. Como cronista, assinou no jornal A Manhã, do Rio de Janeiro, a seção "Café da Manhã", e no Jornal do Commércio, da mesma cidade, a seção "Jornalzinho Pobre". Colaborou em programas na Rádio Ministério da Educação e na Rádio Nacional.

sábado, 2 de janeiro de 2010

Sabiás e rouxinóis

Nos meus tempos de criança tive um tio que era grande contador de histórias. Este dom, se o tornava querido da criançada, era também uma fonte de maçadas. Bastava um dia de chuva, ou um de nós preso na cama por um resfriado, já Tio Fausto era requisitado para nos distrair. Embora sua paciência e imaginação fossem quase inesgotáveis, certas vezes refugavam a tarefa, e vinha então o recurso que nos obrigava a desistir do intento: "Em Portugal canta o rouxinol e aqui no Brasil canta o sabiá, mas a distância entre cá e lá é tão grande que o que se canta cá não se ouve lá, e o que se canta lá não se ouve cá. Por isso é que ninguém sabe a história da casinha amarela que eu vou contar. Quer que eu conte?... Em Portugal canta o rouxinol..." E a cantilena recomeçava até que o mais persistente entregasse os pontos,

Lembrei-me desta velha história quando, viajando por quase toda a Europa sem qualquer dificuldade, em Portugal apenas consegui fazer-me entender e a custo compreendia a gente da terra. Não é só que o português engula bom número de sílabas, nem que a pronúncia seja carregada e outra a sintaxe, dando à frase um tom que ao brasileiro parece pomposo. É que as palavras usadas na linguagem corrente são outras ou têm sentido diferente do nosso. Assim foi que, perguntando ao porteiro do hotel em Lisboa se havia trem para a praia da Nazaré, o homem respondeu-me em tom de espanto: — "Trem não, minha Senhora, que é demasiado distante..."

Que eu saiba, o trem foi inventado justamente para as grandes distâncias, mas não discuti, — "E ônibus?"

— "Ai, minha Sra., de ônibus V. Excia. levaria o dia todo para lá chegar. É preferível a camionete". — "Camionete... (pensei num caminhão pequeno e fechado) mas não será muito incômodo?" E o diálogo continuou até que se esclarecesse o quiproquó: Em Portugal trem é carro puxado por cavalos, ônibus é o nosso trem vagaroso que chamamos leiteiro, camionete é nosso ônibus, sendo que toda esta complicação teria sido evitada se, de início, eu tivesse perguntado pelo combóio.

Quem passou por Lisboa numa escala rápida, sabe da inutilidade de indagar onde se toma o bonde, expressão totalmente desconhecida e sem relação com "o elétrico", e se, na pressa da partida, quiser saber como ir até o navio, terá que perguntar pelo barco, à moda da terra. Na conversa, portugueses e brasileiros regalam-se de ouvir um do outro expressões e modismos que lhes parecem do melhor cômico. O português não sabe o que é "dar uma prosa", e se quer tirar um cochilo fala em "passar pelas brasas". Já no telefone leva-se um susto quando em vez de alô ouve-se um berro: — "Está lá?..." e a telefonista perplexa não entende que meia dúzia é seis.

Nas compras a confusão é ainda maior; quem quiser ir a uma loja de armarinho comprar carretel de linha, cadarço, colchetes, grampos, terá que procurar o retroveiro onde peça um carrinho de fio, nastro, molas e ganchos, sendo que as vitrinas são montras, as meias de homem peúgas, as mulheres é que usam cuecas e o homens calções. Numa casa de doces pedi balas, e responderam-me que só em loja de armas; quando apontei o que queria foi um alívio: — "Ah, V. Excia. quer rebuçados e caramelos, ou, sob a influência americana, "drops", mas nada de balas.

Ali chocolate é uma coisa e cacau outra, conforme aprendeu uma brasileira que pedindo "chocolate na xícara" teve a pronta resposta: — "Não há, minha Sra. Só temos cacau em chávena." Realmente existe a diferença , o chocolate sendo o cacau preparado com leite e a chávena um termo caído em desuso, só empregado pelos que apreciam os arcaísmos.

Creio que o português tem um vocabulário mais amplo que o nosso e usa os termos com mais exatidão, sendo também incapaz de interpretar o pensamento incorretamente expresso pela sintaxe brasileira. Assim foi que um amigo meu, pedindo uma lata de bolachas, após longa espera recebeu uma lata cuidadosamente aberta e esvaziada. Ao seu protesto, o próprio gerente da loja veio dar razão ao empregado: — "V. Excia. pediu uma lata "de" bolachas, e aí está. Se pedisse uma lata "com" bolachas, a coisa era outra".

Foi para evitar mal-entendidos que, ainda na praia da Nazaré, o copeiro da pensão encerrou assim nosso diálogo: — "Seu Leandro, esta noite os pernilongos não me deixaram dormir". — "Perdão, minha Sra.?" — "Os mosquitos, Seu Leandro". — "Ai, V. Excia. quer dizer os melgas?..." — "Não sei se são melgas, mas diga-me, aqui há maleita?" — "Perdão, minha Sra.?" — "Digo malária.." O homem olhou-me de banda e teve uma inspiração: — "V. Excia. não prefere falar em francês ou inglês?..."

Tinha razão o bom do homem. Assim que abandonamos o vernáculo nos entendemos perfeitamente.

Vejo agora nos jornais que vamos ter um Congresso da Língua Portuguesa, ao qual comparecerão seis filólogos lusitanos, e tenho medo que este grupo de escol resolva mexer outra vez na nossa ortografia, quando não tente unificar a língua d'aquém e d'além-mar.

Francamente, não vejo porque reviram e reformam a pobre ortografia, quando a língua falada em cada pais é tão diversa. As reformas só têm tido o magnífico resultado de tornar analfabetos nossos poucos alfabetizados. Quantos de nós, que escrevemos profissionalmente, sabemos onde colocar os acentos ou se, afinal de contas, Pedro Calmon conseguiu defender o H de Bahia? O escritor ou jornalista geralmente escreve como aprendeu em criança, fiando-se no trabalho do especialista que é o revisor ortográfico indispensável a cada editora e redação. O povo escreve como lhe dá na cabeça, e a meninada que já passou por mais de uma reforma manda a ortografia às favas.

Os ingleses pouco se incomodam que os americanos simplifiquem "night", em "nite" e "through" em "thru", e não me consta que a França jamais se tenha preocupado com o francês falado e escrito no Canadá ou nas colônias, nem que a "Madre Pátria" espanhola estenda seu cuidado maternal até zelar pelo castiço da língua de Cervantes, cujos termos, nesta América Latina, mudam perigosamente de sentido de um país a outro.

Que venham os filólogos lusitanos, mas não se assanhem os mestres nacionais. Aproveitem a ocasião para ouvir as últimas maledicências correntes no Chiado e as novas anedotas sobre Salazar. Por sua vez, forneçam aos nossos irmão d'além-mar um estoque de anedotas cariocas que, repetidas em Lisboa, terão "imensa piada", e tenham a camaradagem de ensinar-lhes os sambas deste carnaval, que o samba é o produto brasileiro mais cotado em Portugal. No mais, lembrem-se que "o que se canta cá não se ouve lá, e o que se canta lá não se ouve cá".

Se temos garganta de sabiá, não vamos desafinar fingindo de rouxinóis.


Vera Pacheco Jordão


Vera Pacheco Jordão nasceu em São Paulo e tornou-se carioca por opção. Especializou-se em literatura, foi professora e durante muito tempo trabalhou em uma editora onde selecionava livros estrangeiros para tradução e publicação no Brasil. Seu livro "Maneco, o byroniano", que foi editado pelos "Cadernos de Cultura" do Ministério da Educação, é uma coletânea de ensaios do melhor teor literário, o primeiro dos quais sobre Álvares de Azevedo. Tendo viajado pela Europa, escreveu crônicas deliciosas como a que agora apresentamos, extraída do livro "Antologia do Humorismo e Sátira", Editora Civilização Brasileira — Rio de Janeiro, 1957, pág. 399.


Aí pelas três da tarde


Nesta sala atulhada de mesas, máquinas e papéis, onde invejáveis escreventes dividiram entre si o bom senso do mundo, aplicando-se em idéias claras apesar do ruído e do mormaço, seguros ao se pronunciarem sobre problemas que afligem o homem moderno (espécie da qual você, milenarmente cansado, talvez se sinta um tanto excluído), largue tudo de repente sob os olhares a sua volta, componha uma cara de louco quieto e perigoso, faça os gestos mais calmos quanto os tais escribas mais severos, dê um largo "ciao" ao trabalho do dia, assim como quem se despede da vida, e surpreenda pouco mais tarde, com sua presença em hora tão insólita, os que estiveram em casa ocupados na limpeza dos armários, que você não sabia antes como era conduzida. Convém não responder aos olhares interrogativos, deixando crescer, por instantes, a intensa expectativa que se instala. Mas não exagere na medida e suba sem demora ao quarto, libertando aí os pés das meias e dos sapatos, tirando a roupa do corpo como se retirasse a importância das coisas, pondo-se enfim em vestes mínimas, quem sabe até em pêlo, mas sem ferir o decoro (o seu decoro, está claro), e aceitando ao mesmo tempo, como boa verdade provisória, toda mudança de comportamento. Feito um banhista incerto, assome em seguida no trampolim do patamar e avance dois passos como se fosse beirar um salto, silenciando de vez, embaixo, o surto abafado dos comentários. Nada de grandes lances. Desça, sem pressa, degrau por degrau, sendo tolerante com o espanto (coitados!) dos pobres familiares, que cobrem a boca com a mão enquanto se comprimem ao pé da escada. Passe por eles calado, circule pela casa toda como se andasse numa praia deserta (mas sempre com a mesma cara de louco ainda não precipitado) e se achegue depois, com cuidado e ternura, junto à rede languidamente envergada entre plantas lá no terraço. Largue-se nela como quem se larga na vida, e vá ao fundo nesse mergulho: cerre as abas da rede sobre os olhos e, com um impulso do pé (já não importa em que apoio), goze a fantasia de se sentir embalado pelo mundo.


Raduan Nassar


Texto extraído do livro "Menina a caminho", Companhia das Letras - São Paulo, 1997. pág.71.