sábado, 22 de janeiro de 2011

Sobre a crônica

“Na crônica, ao contrário, estamos diante de experiências do homem comum, expressas em linguagem ordinária e publicadas regularmente nas páginas da imprensa, ou seja, nesses catalisadores da vida pública que são os jornais e as revistas. Em suma, a crônica não se enquadra na divisão clássica dos gêneros ─ épica, drama (subdividido em tragédia e comédia) e lírica. Sua matéria-prima são os fatos do dia a dia, as notícias curiosas, acasos e encontros muitas vezes surpreendentes, mas que podem ocorrer com qualquer um, acontecimentos que propiciam momentos de nostalgia, enternecimento ou indignação compartilhados pelo cronista e os leitores. Sua linguagem procura captar o lirismo contido na simplicidade, a poesia embutida no di álogo das ruas, o encanto das gírias e dos palavrões, o sabor dos clichês lingüísticos em que o senso comum se perpetua.

“Embora não derive dos gêneros estabelecidos desde a Antiguidade, a crônica tem dois antecedentes históricos: 1) o ensaio, um tipo de texto criado pelo francês Michel de Montaigne no século 16, que mescla experiência autobiográfica e reflexão sobre o mundo com uma lapidação estilística que transforma sua leitura em algo comparável à fruição de um romance; 2) o familiar essay de origem inglesa, gênero de comentário e devaneio pessoal veiculado em jornais pelos chamados ‘folhetinistas’.

“A crônica incorpora essas características, a tal ponto que, num trabalho intitulado O Ensaio Literário no Brasil, o crítico Alexandre Eulalio afirma ser ela uma espécie de aclimatação da linhagem de ensaístas: ‘A crônica, que é nosso familiar essay, possui tradição de primeira ordem, cultivada, desde o amanhecer do periodismo nacional, pelos maiores poetas e prosistas da época ─ não será necessário citar aqui outros nomes além dos de José de Alencar, Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade’.

“Deve-se notar, todavia, que a crônica agrega elementos que fazem desse gênero não apenas uma versão tropical do familiar essay, mas também um modo genuinamente brasileiro de perceber e representar a realidade.

“Em primeiro lugar, a escrita em ‘tom menor’ da crônica corresponde àquela auto-imagem, criada ao longo de séculos de dependência econômica e importação de modelos culturais, de que o Brasil está fadado a orbitar na periferia do capitalismo, de que o país estaria apartado das grandes questões ocidentais (das quais seriam mero consumidor), de que esse filho ilegítimo da civilização européia estaria condenado a discutir sua identidade etc. (...)”

“Nesse contexto, a crônica aparece como o lado positivo de nossa problemática identidade nacional: a uma realidade apequenada, sem alcance ou possibilidade de utopia, corresponde um gênero que dá cor e forma às miudezas da vida cotidiana, que encontra no humor, no deboche e na banalidade uma expressão saudável dessa informalidade social que, em outros momentos, mascara desigualdades econômicas, autoritarismo e confusão entre as esferas pública e privada. Ironicamente, portanto, a crônica surge de uma espécie de complexo de inferioridade da sociedade e da literatura brasileiras, para se transformar num gênero autenticamente brasileiro, com um acervo de textos cuja riqueza poucas potências literárias conseguiram acumular.

“Em segundo lugar ─ e como decorrência do que foi afirmado acima ─, a crônica é o gênero que realiza de maneira mais feliz uma das palavras de ordem do modernismo: a superação do abismo que há, no Brasil, entre língua escrita e língua falada, entre linguagem literária e linguagem coloquial. (...)”

“(...) Foi com a crônica, portanto, que o projeto de aproximação da linguagem literária à dicção coloquial se deu de modo contínuo ─ e, não por acaso, os dois poetas que consolidaram essa tendência para um lirismo desinflado, cotidiano, foram também cronistas de mão cheia: Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade.

“O apogeu do novo gênero ─ ou seja, o momento em que a crônica perde os vestígios de seus antecessores europeus, transformando-se na expressão rematada de uma forma brasileira de sentir e se situar no mundo ─ se dá a partir dos anos 1950 e 1960 , com cronistas como Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende, Nelson Rodrigues e Fernando Sabino.

“Fato notável, quase todos eram simultaneamente cronistas que escreviam regularmente em jornais ou revistas e escritores que praticavam outros gêneros literários ─ o que reforça a idéia de que a crônica, longe de ser um subproduto da ficção ou do ensaio, é um campo textual próprio, que oferece possibilidades expressivas que nenhum outro gênero proporciona.”

“(...) Em meio ao caos e às injustiças galopantes da sociedade contemporânea, descobrem graça, harmonia, olhares de afeto e cumplicidade, enfim, sentimentos e lembranças que alimentam nosso senso crítico, pois nos ajudam a lutar por um lirismo que ainda respira nas casas e nas ruas.”



(PINTO, Manuel da Costa. Crônica, o mais brasileiro dos gêneros literários. In: Antologia de crônicas: crônica brasileira contemporânea; organização e apresentação de Manuel da Costa Pinto. São Paulo: Moderna/Salamandra, 1ª ed., 2005, pp. 7-13, “Lendo & Relendo”.)

*Texto enviado pelo colaborador Adauto Neto

domingo, 16 de janeiro de 2011

O flagelo do vestibular

Não tenho curso superior. O que eu sei foi a vida que me ensinou e, como eu não prestava atenção e faltava muito, aprendi pouco. Sei o essencial, que é amarrar sapatos, algumas tabuadas e como distinguir um bom Beaujolais pelo rótulo. E tenho um certo jeito ─ como comprova este exemplo ─ para usar frases entre travessões, o que me garante o sustento. No caso de alguma dúvida maior, recorro ao bom senso. Que sempre me responde da mesma maneira:
─ Olha na enciclopédia, pô.
Este naco de autobiografia á apenas para dizer que nunca tive que passar pelo martírio do vestibular. É uma experiência que jamais vou ter, como a dor do parto. Mas isso não impede que todos os anos eu sofra com o padecimento de amigos que se submetem à terrível prova, ou até de estranhos que vejo pelos jornais chegando um minuto atrasados, tendo insolações e tonturas, roendo metade do lápis durante o exame e, no fim, olhando para o infinito com aquele ar de sobrevivente da marcha da morte de Bataan*. Enfim, os flagelados do unificado. Só lhes posso oferecer minha simpatia, como oferecia uma conhecida nossa que este ano esteve no inferno.
─ Calma, calma. Você pode parar de roer as unhas. O pior já passou.
─ Não consigo. Vou levar duas semanas para me acalmar.
─ Então roa as próprias unhas. Essas são as minhas.
─ Ah, desculpe. Foi terrível. A incerteza, as noites sem sono. Eu estava de um jeito que calmante me excitava. E, quando conseguia dormir, sonhava com escolhas múltiplas: a) fracasso, b) vexame, c) desilusão. E acordava gritando: Nenhuma dessas! Nenhuma dessas! Foi horrível.
─ Só não compreendo por que você inventou de fazer vestibular a esta altura da vida.
─ Mas quem é que fez vestibular? Foi meu filho. E o cretino está na praia enquanto eu fico aqui, à beira do colapso.
Mãe de vestibulando. Os casos mais dolorosos. O inconsciente do filho às vezes nem tá, diz pra coroa que cravou coluna do meio em tudo e está matematicamente garantido. E ela ali, desdobrando fibra por fibra o gabarito. Não haveria um jeito mais humano de fazer a seleção para as universidades? Por exemplo, largar todos os candidatos no ponto mais remoto da Floresta Amazônica e os que voltassem à civilização estariam automaticamente classificados? Afinal, o Brasil precisa de desbravadores. E as mães dos reprovados, indagadas sobre a sorte do filho, poderiam enxugar uma lágrima e dizer com altivez:
─ Ele foi um dos que não voltaram.
Em vez de:
─ É uma besta!
Os candidatos a Engenharia no Rio de Janeiro poderiam ser postos a trabalhar no metrô dia e noite, quem pedisse água seria desclassificado. O Estado acabaria com poucos engenheiros novos ─ aliás, uma segurança para a população ─, mas as obras do metrô progrediriam como nunca. Na direção errada, mas que diabo.
O certo é que do jeito que está não pode continuar. E ainda há os cursinhos pré-vestibulares. Em São Paulo os cursinhos usam helicópteros na guerra pela preferência dos vestibulandos. Daí para o napalm, o bombardeio estratégico, o desembarque anfíbio e, pior, a interferência do Reagan para negociar a paz é um pulo. Em São Paulo há cursinhos tão grandes que, para o professor se comunicar com as filas de trás, tem de usar o correio. Se todos os alunos de cursinhos no centro de São Paulo saíssem para a rua ao mesmo tempo, ia ter gente caindo no mar em Santos. O vestibular virou indústria. E os robôs que saem das usinas pré-vestibulares só têm dois movimentos: marcar cruzinha e rezar.
O filho da nossa nervosa amiga chegou em casa meio pessimista com uma de suas provas.
─ Sei não. Acho que entrei pelo cano. O inglês não tava mole.
─ Mas, meu filho, hoje não era inglês. Era Física e Matemática.
─ Oba! Então acho que fui bem.


Luis Fernando Veríssimo

(VERISSIMO, Luis Fernando Veríssimo. O flagelo do vestibular. In: Antologia de crônicas: crônica brasileira contemporânea; organização e apresentação de Manuel da Costa Pinto. São Paulo: Moderna/Salamandra, 1ª ed., 2005, pp. 128-31, “Lendo & Relendo”.)


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Bataan: “Célebre batalha entre os exércitos do Japão e EUA, ocorrida nas Filipinas durante a Segunda Guerra Mundial.”

Texto enviado pelo amigo e colaborador Adauto Neto

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Conversas de mulher

Conheço-a há pouco tempo, mas tenho por ela a maior das simpatias. É mulher vibrátil, inteligente, bonita e espirituosa. Fala-me de coisas belas e boas da vida, e outro dia subitamente perguntou-me se não cogito de fazer uma operação plástica facial, que acabe com as minhas rugas, devolvendo-me ao rosto a louçania de passadas eras.

Isso aconteceu num encontro de rua, banal encontro de duas mulheres, não fosse a longa explanação que dela ouvi sobre a técnica do rejuvenescimento. Citou nomes de mulheres nacionais e estrangeiras muito jovens hoje e que realmente conheci maduras quando eu era menina.

— Veja, por exemplo, a Marlene Dietrich...

Conta-me que essas operações já estão sendo feitas no Brasil, que antigamente, para desenrugar-se, a mulher precisava ir a Paris, Londres, Viena ou Nova Iorque, onde a operação, sendo a mesma, é inteiramente diferente quanto ao custo.

— Em nosso país há médicos especializados e competentes realizando a operação pelo preço baratíssimo de cinqüenta mil cruzeiros.

Assim ela fala e eu ouço encantada: convenhamos que tem razão ; a recuperação da mocidade, mesmo e apenas aparente, vale muito mais do que qualquer quantia.

A conversa. continuou, e ouvi então esta enorme revelação: o perigo, o grande perigo é que muitas mulheres, quando saem da casa de saúde despidas de rugas, trazem no rosto um ar de total imbecilidade. Por isso é importante — muito importante — saber o que tirar, qual a ruga ou grupo de rugas que devem permanecer. O médico, além de bom operador deve ser também um esteta e um psicólogo para não liquidar na máscara feminina a marca da personalidade conquistada através, de. anos vividos.

Como estávamos ambas apressadas — ela para continuar fazendo compras e eu para trabalhar, despedimo-nos. Sua frase final andou comigo pelas ruas, gravada em mim:

— Essa coisa está ficando tão comum e obrigatória que daqui a cinco anos ouviremos uma mulher dizer que está com hora marcada num médico: — "Hoje vou fazer minha operação plástica" — como hoje diz que tem hora marcada no cabeleireiro ou no dentista. Tiraremos rugas como tiramos sobrancelhas.

Não desaprovo essas operações nem nego às mulheres o direito de defender e conservar a beleza, mas depois dessa conversa pensei. um pouco nas minhas rugas, pobres rugas que jamais serão desfeitas e que até aquele momento não tinham vivido um minuto sequer em minhas cogitações. Cinqüenta mil cruzeiros. Com eles, se os tivesse, quantos meses passaria em Paris? Ou viajaria o Amazonas? Que livros compraria?

As rugas de minha testa apareceram cedo. Depois li que elas são o prêmio concedido, a partir dos dezoito anos, às pessoas que costumam se preocupar com problemas seus e do mundo. Quantas preocupações tive, ainda menina., com a.s definições, os problemas da Metafísica, os sentimentais e mesmo os políticos. Quantas rugas criei as poucas vezes que votei?

Operando minhas rugas, eu poderia depois pensar sem que outras rugas nascessem, ou a operação me proibiria, cassaria meu direito a pensar? A quem estaria enganando sem rugas. a mim ou aos outros? E se depois da operação plástica eu ficasse com uma cara imbecil se bem que formosa ? Se eu me procurasse e não me encontrasse Pensei em minha mãe muito jovem ensinando que o importante: é ter sempre saúde mental, física e moral. Pensei em George Sand dizendo: — "Quando me examino vejo que as duas químicas paixões de minha vida foram a maternidade e a amizade." Com essas duas paixões quantas rugas terão nascido naquela tão fabulosa mulher?

De qualquer modo, cumprimentemo-nos: dentro em breve, neste país, com as operações plásticas a preço módico — cinqüenta mil cruzeiros — não mais haverá brotinhos, balzacas ou coroas. Infelizmente a divisão de classes continuará por algum tempo, e por isso no Brasil, daqui a pouco só serão velhas as mulheres trabalhadoras como eu e centenas de outras, e as mulheres operárias, aos milhares.

Manteremos as rugas: elas contam nosso destino.


Eneida

ENEIDA de Moraes nasceu em Belém do Pará no dia 23 de outubro de 1904. Jornalista, escritora, foi uma das mais profundas conhecedoras do carnaval brasileiro. Formada em odontologia, logo trocou seu consultório para se tornar colaboradora em jornais e revistas. A paixão pelas letras levou-a a organizar grupos de escritores para discutir literatura em vários cantos do Brasil. O ano de 1929 marcou a estréia como autora, com o volume de versos "Terra Verde".