quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Fragmentos sobre a crônica

A crônica consiste num gênero textual em que se faz uma reflexão pessoal sobre acontecimentos pitorescos do cotidiano. Ela não se limita à mera reprodução de fatos, mas vai além, mostrando ângulos não percebidos. É fragmentária, pois não tem a pretensão de abordar o fato como um todo, mas apenas alguns detalhes significativos. Esse gênero, na maioria das vezes, é um texto curto e rápido, escrito quase sempre numa linguagem comum ou familiar.


“Conforme Coutinho e Souza, o fato, que é em geral um fim para o jornalista, para o cronista é um pretexto para divagações, comentários e reflexões. É um gênero textual altamente pessoal, uma reação individual e íntima diante da vida, das coisas ou dos seres (2001, p. 562-563). Num estilo leve, o cronista pode tratar de problemas sociais, de fraquezas humanas, de fatos ocorridos na sociedade, de uma notícia marcante, de um filme, de uma viagem, entre outros temas.

 
“Geralmente, a crônica aborda fatos do dia a dia, ao primeiro olhar, sem importância. Para Martins e Saito (2006), o cronista faz com que esses fatos banais sejam significativos, na medida em que mostra ‘a grandeza’ escondida neles.

 
“Uma das marcas desse gênero é abarcar o comentário do fato jornalístico, a ficção, a ironia, o humor diante da sociedade e a defesa de idéias, tendo sempre um olhar crítico e inesperado. A crônica tem uma estrutura livre, e pode valer-se do diálogo, do monólogo, da entrevista, da resenha e de personagens reais ou fictícios.

 
“Esse gênero pode apresentar tipologia textual de base narrativa, dissertativa, entre outras, dependendo da intenção do autor. A crônica com tipologia de base narrativa possui poucas personagens, e as referências espaciais e temporais são limitadas: as ações ocorrem num único espaço, e o tempo normalmente corresponde a alguns minutos ou algumas horas. Segundo costa, quando a crônica é ‘predominantemente narrativa, possui trama quase sempre pouco definida, sem conflitos densos, personagens de pouca densidade psicológica, o que a diferencia do conto’ (2009, p. 80).

 
“A crônica com tipologia textual de base narrativa admite o narrador em primeira pessoa, participando dos acontecimentos, ou em terceira pessoa do discurso, observando os fatos. Conforme Costa, a crônica busca aproximar o enunciador do leitor pelo uso freqüente do discurso indireto livre e de perguntas retóricas (2009, p. 81). O discurso indireto livre ocorre quando há fusão entre personagem e narrador, pois, entremeando a narrativa, aparecem diálogos indiretos da personagem, que complementam a fala do narrador. Por sua vez, as perguntas retóricas estão presentes quando o narrador propõe ao leitor questionamentos sem esperar uma resposta, com a intenção de levá-lo a pensar sobre o assunto.”

 
(...)

“Há dois tipos de crônica, a literária e a não literária; ambas são construídas a partir de dados da realidade. A crônica literária pertence à ordem do narrar e a não literária, à ordem do relatar.

 
“Na crônica literária, o cronista transforma os elementos objetivos em estéticos a partir de sua liberdade e capacidade imaginativa. Reinventa o real pelo uso particular das palavras, através do emprego da linguagem conotativa e subjetiva, deixando transparecer suas emoções e desvelando poeticamente o instante. A linguagem conotativa refere-se ao significado que certas palavras e expressões assumem, modificando seu sentido literal, e a linguagem subjetiva mostra a visão pessoal do indivíduo e sua reação emotiva frente a algo. De acordo com Soares, enquanto literatura, a crônica atravessa o tempo por ser um registro poético e, muitas vezes, irônico, que capta o imaginário coletivo em suas manifestações cotidianas, perpetuando-o ( 1997, p. 64).

 
“Já na crônica não literária, o autor vale-se da realidade objetiva, com seus dados passíveis de comprovação. Para que sua intenção seja comunicada, usa sobretudo a linguagem denotativa e objetiva. Conforme Machado, a crônica não é propriamente uma notícia, mas um artigo sobre a notícia (1994, p. 240). Entre as crônicas não literárias, as mais comuns são a crônica jornalística, policial, esportiva, política, social e de moda.

 
(...)

 
“Moisés coloca que, na Idade Média, após o século XII, a crônica voltou-se para a perspectiva histórica, o que determinou umas distinção: havia obras que narravam os acontecimentos detalhadamente, com algumas explicações; outras os apresentavam numa perspectiva individual da história, como ocorre nas obras de Fernão Lopes (séc. XIV). O autor diz que existiam, além disso, os cronições, também chamados de crônicas breves, que constituíam notações simples e impessoais sobre o cotidiano (2004, p. 110).

 
“Ainda conforme Moisés, no século XVI, o termo crônica foi substituído por história. A partir do século XIX, o vocábulo foi utilizado para designar textos que tinham pouca relação com o primeiro tipo de crônica e que assumiram estrita personalidade literária. Essa forma de crônica teria sido produzida inicialmente pelo francês Julien-Louis Geoffroy, por volta de 1800, e publicade no Journal des Débats (2004, p. 110).

“No Brasil a crônica surgiu há uns 150 anos, com o Romantismo e o desenvolvimento da imprensa, e é considerada um dos mais antigos gêneros jornalísticos. A princípio foi designada pelo nome de folhetim.

(...)

Sintetizando

A crônica:

Quadrado pequeno pretoconsiste numa produção breve sobre um fato do cotidiano;

Quadrado pequeno pretoenvolve dados da realidade;

Quadrado pequeno pretopretende refletir e/ou divertir;

Quadrado pequeno pretocapta os aspectos singulares do fato e mostra ângulos não percebidos;

Quadrado pequeno pretoé um texto leve, escrito de forma pessoal;

Quadrado pequeno pretopossui estrutura livre;

Quadrado pequeno pretoemprega a linguagem comum ou familiar;

Quadrado pequeno pretoutiliza narrador em primeira ou terceira pessoa do discurso;

Quadrado pequeno pretopode ser literária ou não literária.”

 

VANILDA SALTON KÖCHE (et al.)

 
(KÖCHE, Vanilda Salton, MARINELLO, Adiane Fogali, BOFF, Odete Maria Benetti. Crônica. In: ___. Estudo e produção de textos: gêneros textuais do relatar, narrar e descrever. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012, p. 69-72.)


*Sugestão e indicação de postagem do amigo Adauto Neto

domingo, 22 de julho de 2012

Receita de domingo

Ter na véspera o cuidado de escancarar a janela. Despertar com a primeira luz cantando e ver dentro da moldura da janela a mocidade do universo, límpido incêndio a debruar de vermelho quase frio as nuvens espessas. A brisa alta, que se levanta, agitar docemente as grinaldas das janelas fronteiras. Uma gaivota madrugadora cruzar o retângulo. Um galo desenhar na hora a parábola de seu canto. Então, dormir de novo, devagar, como se dessa vez fosse para retornar à terra só ao som da trombeta do arcanjo.

Café e jornais devem estar à nossa espera no momento preciso no qual violentamos a ausência do sono e voltamos à tona. Esse milagre doméstico tem de ser. Da área subir uma dissonância festiva de instrumentos de percussão — caçarolas, panelas, frigideiras, cristais anunciando que a química e a ternura do almoço mais farto e saboroso não foram esquecidas. Jorre a água do tanque e, perto deste, a galinha que vai entrar na faca saia de seu mutismo e cacareje como em domingos de antigamente. Também o canário belga do vizinho descobrir deslumbrado que faz domingo.

Enquanto tomamos café, lembrar que é dia de um grande jogo de futebol. Vestir um short, zanzar pela casa, lutar no chão com o caçula, receber dele um soco que nos deixe doloridos e orgulhosos. A mulher precisa dizer, fingindo-se muito zangada, que estamos a fazer uma bagunça terrível e somos mais crianças do que as crianças.

Só depois de chatear suficientemente a todos, sair em bando familiar em direção à praia, naturalmente com a barraca mais desbotada e desmilingüida de toda a redondeza.

Se a Aeronáutica não se dispuser esta manhã a divertir a infância com os seus mergulhos acrobáticos, torna-se indispensável a passagem de sócios da Hípica, em corcéis ainda mais kar do que os próprios cavaleiros.

Comprar para a meninada tudo que o médico e o regime doméstico desaconselham: sorvetes mil, uvas cristalizadas, pirulitos, algodão doce, refrigerantes, balões em forma de pingüim, macaquinhos de pano, papaventos. Fingir-se de distraído no momento em que o terrível caçula, armado, aproximar-se da barraca onde dorme o imenso alemão para desferir nas costas gordas do tedesco uma vigorosa paulada. A pedagogia recomenda não contrariar demais as crianças.

No instante em que a meninada já comece a "encher", a mulher deve resolver ir cuidar do almoço e deixar-nos sós. Notar, portanto, que as moças estão em flor, e o nosso envelhecimento não é uma regra geral. Depois, fechar os olhos, torrar no sol até que a pele adquira uma vida própria, esperar que os insetos da areia nos despertem do meio-sono.

A caminho de casa, é de bom alvitre encontrar, também de calção, um amigo motorizado, que a gente não via há muito tempo. Com ele ir às ostras na Barra da Tijuca, beber chope ou vinho branco.

O banho, o espaçado almoço, o sol transpassando o dia. Desistir à última hora de ver o futebol, pois o nosso time não está em jogo. Ir à casa de um amigo, recusar o uísque que este nos oferece, dizer bobagens, brigar com os filhos dele em várias partidas de pingue-pongue.

Novamente em casa, conversar com a família. Contar uma história meio macabra aos meninos. Enquanto estes são postos em sossego, abrir um livro. Sentir que a noite desceu e as luzes distantes melancolizam. Se a solidão assaltar-nos, subjugá-la; se o sentimento de insegurança chegar, usar o telefone; se for a saudade, abrigá-la com reservas; se for a poesia, possuí-la; se for o corvo arranhando o caixilho da janela, gritar-lhe alto e bom som: never more.

Noite pesada. À luz da lâmpada, viajamos. O livro precisa dizer-nos que o mundo está errado, que o mundo devia, mas não é composto de domingos. Então, como uma espada, surgir da nossa felicidade burguesa e particular uma dor viril e irritada, de lado a lado. Para que os dias da semana entrante não nos repartam em uma existência de egoísmos.


Paulo Mendes Campos

Somos todos estrangeiros

Somos todos estrangeiros




Ivan Lessa





Estrangeiro é o bairro em que moramos, estrangeira é a mulher que encoxamos no elevador, estrangeiros são nossos pais, nossos filhos. Nunca me senti em casa no Brasil, ninguém está em casa no Brasil: todo mundo foi até a esquina, todo mundo foi tomar um cafezinho. Achava que, de uma maneira ou de outra, eu estava embromando ou sendo embromado por alguém. Que viver não era nada daquilo, que eu não tinha nada com o peixe, que os verdadeiros brasileiros estavam misteriosamente ocupados com seus sofrimentos, ou então atarefados criando um Brasil melhor: gente andando rapidamente nas ruas da cidade, ou cavando uma terra dura e ingrata. Os brasileiros eram abstratos, distantes, mais calados do que comumente se supõe. Conheço algumas vozes brasileiras: gostaria de saber escrever na tonalidade do Jorge Veiga, ou do Moreira da Silva, misturada a uma retórica aborrecida e às avessas semelhante à de Ruy Barbosa — como o Hino à Bandeira acompanhado de caixinha de fósforos. Os sambinhas, claro, eram brasileiros, o pessoal que sentava ao meu lado no Maracanã era brasileiro, as piadas de papagaio eram brasileiras. Mas tudo era de mentirinha, beirando sempre o pitoresco ou se precipitando na tragédia policial ou no editorial dos jornais. A vida a sério, os seis quarteirões em que me locomovia, as seis pessoas com quem convivia não eram, digamos assim, bem brasileiros — assim como eu, tinham máquina fotográfica a tiracolo e camisas com palmeiras.

Em tudo que eu engolia ficava uma ponta de tradução atravessada em minha garganta: os filmes com legendas em português, as histórias em quadrinhos, os livros, as notícias; os foxes. Éramos uma versão pobre do que a vida deveria ser — e a vida vinha sempre em inglês, em francês, em alemão. Mesmo quando dizia “eu te amo”, ou “não me chateia”, eu me sentia vagamente ridículo, apropriador — feito um homem de série da televisão mal dublado: minha boca fechada e as palavras ainda saindo, um ventríloquo com descontrole psicomotor.

Reconheci, pelo paladar, pelos olhos, certos molhos, certas bossas tipicamente brasileiras (o problema é que eram típicos): feijoada, dendê, folha seca de Didi, Noel Rosa, escola de samba. Mas a essência, a parte que tratava de mim (nos meus seis quarteirões, na cidade no sul do país) e de minha relação com os severinos todos, essa parte era sempre tratada em outra língua; eu pertencia aos estrangeiros, foram eles que me disseram como vim a fazer parte ou como nunca fiz parte. Eu era, como todo brasileiro, um improvisador, um adaptador, um tradutor, conseqüentemente um traidor — porque eu olhava para a cara de meu semelhante e não sabia como poderíamos nos entender, o que ele tinha a me dizer, o que eu poderia lhe dizer, como juntos conseguiríamos nos salvar. No entanto, o tempo todo, eu era, eu sou, apenas mais um João, só que em russo.

Não consegui, como tanta gente de minha geração ou mais moça do que eu, me interessar pelo folclore caboclo. A própria palavra folclore já leva embutido um desaforo urbano. No entanto, achava que o setor, devidamente estudado por profissionais competentes, me seria útil, me forneceria, por exemplo, dados para escrever com justeza para um público moço que vive de cinema, disco e que sabe, curiosamente, que há uma tremenda safadeza, uma violência no ar. Não lia, portanto, O Negrinho do Pastoreio — o que já preparava o terreno até para eu deixar de ler Machado de Assis ou Dalton Trevisan. Comprava pocketbooks, que eram mais baratos, mais engraçados, e, de certa forma, sobre mim, a meu respeito. Preocupado comigo mesmo, com esse “meu respeito”, descobri-me sozinho no meio da avenida repetindo eu... eu... eu... como um pronome enguiçado que não consegue engatar a segunda e a terceira do singular. Perdi os joões, os josés, os severinos, vim para o original, o estrangeiro, dando início a uma certa paz, tranqüilidade, a noção de ordem: as legendas acabaram, sou finalmente, completamente, um estrangeiro. Posso agora conjugar-me no plural, dizer nós. Somos todos estrangeiros, sois todos estrangeiros, são todos estrangeiros. Não há nada a fazer a não ser descobrir esse estrangeiro que há na gente. Daí então a gente começa a falar brasileiro, coça o saco, conta como é que é. Daí então o papo, aquele papo, pode começar. Só que agora pra valer.

Londres, 7 de setembro, 1970


Ivan Lessa

A primeira morte

A pequena tragédia de um homem comum diante do exame de colesterol.

A notícia veio em um exame de rotina, aberto na página do laboratório na internet enquanto tomava um chocolate quente. Na verdade, leite com um chocolate em pó cheio de porcarias que ele toma desde a infância e, por isso, aos 43 anos, é uma fonte de alegria permanente na prateleira da cozinha. Quando bateu na minha porta, os olhos escancarados, avisando que tinha uma má notícia, eu pensei logo em câncer. No nosso tempo, é o que a gente sempre pensa, mesmo que não diga. “Meu colesterol está alto”, ele disse. “Muito acima do péssimo.” Amoleci inteira e até esbocei um sorriso. “Ah, mas isso não é tão grave.” Mas era. Eu não fui capaz de perceber logo, mas era a primeira morte de meu melhor ami go.

Não era uma doença incurável, não era um drama humanitário, não era nada que alterasse a ordem do mundo. Era só a pequena tragédia dele. Comezinha e cotidiana. A tragédia de um homem comum, com uma vida comum, que sentia a primeira fisgada do fim.

No percurso de uma vida, quando temos a sorte de ter uma existência longa, passamos por várias pequenas mortes e renascimentos. É importante que partes de nós morram para que outras possam nascer – ou apenas para que esses pedaços mofados de nossas crenças sobre nós ou da crença de outros sobre nós saiam do caminho. É triste quando alguém é uma coisa só a vida toda – perdendo a chance de acolher todos os outros de si. Quando alguém anda pela vida apertado em uma roupa que nunca lhe serviu direito, mas que foi vestida nele ou nela por seus pais ainda na infância, como se fosse o único modelo que lhe coubesse.

É importante que, em algum momento, de preferência mais cedo do que tarde, a gente descubra que essa roupa não serve – ou que apenas algumas partes servem e outras precisam ser jogadas fora, para que novas possam ser inventadas. É essencial que nos libertemos dos dogmas impingidos sobre nós para podermos criar uma vida que faça mais sentido – e para nos sentirmos livres para recriá-la o tempo todo. O olhar do outro sobre nós, a começar pelo dos nossos pais, às vezes é redenção, em outras é prisão, em geral é ambos.

Por isso me parece que uma vida é mais rica quando morremos e renascemos muitas vezes. Mas esta é a existência psíquica, é o que se passa em nossas porções invisíveis, naquela parte da nossa geografia que não se pode tocar com as mãos. Poucas coisas ou nenhuma são mais assustadoras do que ousar se libertar de um jeito de ser cujo funcionamento conhecemos. Porque ainda que esse jeito nos sequestre o desejo, nos parece mais seguro do que enfrentar o vazio de descobrir formas de viver mais próximas de nossos anseios. Mas, se tivermos essa coragem que anda de mãos agarradas com o medo, nós nos responsabilizamos pelas nossas escolhas, seguimos e criamos e morremos e renascemos. Muitas vezes.Em algum momento, porém, o corpo anuncia uma morte da qual não é possível renascer. A rigor, começamos a morrer desde o nascimento. De fato, nosso declínio físico começa aos 20 e poucos anos, mas esses sinais podem ser ignorados. E são. Por volta dos 40 – um pouco depois, para quem tem mais sorte, um pouco antes, para quem tem mais azar –, recebemos a notícia da primeira morte que não podemos ignorar. A primeira morte do corpo.

Foi o que aconteceu com meu melhor amigo. Para não morrer nos próximos anos de enfarte ou AVC por causa das artérias entupidas de gordura, ele matou com um só golpe um mundo inteiro dentro de si. Não é uma mera mudança de hábitos, como médicos e nutricionistas tentam nos convencer em consultas, reportagens e sites da internet. É um mundo inteiro que se extingue como se o Sol explodisse de repente, muito antes dos bilhões de anos calculados pelos astrônomos. Para quem vive nesse planeta, é uma hecatombe. Para a imensidão do universo, é um nada, estrelas morrem o tempo todo sem que a ordem da vida dos outros se altere.

Para o planeta humano que é meu melhor amigo, foi uma hecatombe. Acabaram-se as feijoadas, o churrasco, a pizza, o hambúrguer, a batata frita, os pastéis, os bolos, os bolinhos, as tortas, os chocolates. Mas não só. Encerrou-se a possibilidade de renovar a qualquer momento a memória de uma vida de afetos: a receita de bacalhau da mãe que morreu, a torta de morangos que só a sogra sabe fazer, o feijão gordo que a mulher prepara toda quinta-feira e havia se tornado um acontecimento, a noite com o amigo de infância recheada de cumplicidade, chope e frituras.

Acabou-se a possibilidade de degustar territórios ainda não desbravados. As experiências gastronômicas com um amigo chefe de cozinha. O acesso às dores de alma e as alegrias de outros povos e terras através da comida, dos ingredientes e dos temperos, que o instigavam a jamais perder nenhuma chance de viajar. Suas próprias invenções com as panelas que reuniam os mais próximos em alegres descobertas na mesa da cozinha. Agora, ele terá de recusar pratos em almoços e jantares – e será um problema na cozinha alheia.

Um mundo dentro do mundo morreu em um segundo. E a notícia dessa morte o lembra o tempo todo de que é só a primeira das muitas que virão. “Tenho medo de morrer de repente”, ele diz. Porque sente que uma parte dele teve morte súbita tendo ele mesmo por testemunha. “Eu não fumo, não uso drogas, só bebo em ocasiões especiais”, ele diz, traído. Eu quase digo: “A vida não dá garantias”, mas me contenho a tempo.

Sei que dentro dele toca o réquiem de Verdi, dramático e grandiloquente, mas só ele escuta. Porque sua tragédia é prosaica, acontece com muitos, não é notícia nem na família. Ele é só mais um homem diante do parapeito da ponte – sem vontade de atirar-se dali, mas apavorado porque um dia vai estar lá embaixo.

Pesquisamos juntos na internet, tentamos inventar receitas, descobrir novos ingredientes, criar um mundo novo dentro do universo restrito ao qual ele foi confinado. Cheiramos desconfiados uma linguiça de soja, passamos retos pela manteiga, enchemos o carrinho de coisas verdes. Depois vamos ao cinema para esquecer seu pequeno drama diante da grandeza do drama maior de um outro, mas quando estaqueamos diante da pipoca, o luto desce sobre ele, inexorável. Sabemos que é preciso aceitar essa morte, assim como todas que virão, com o excesso de perdas que ela contém. Em geral não se morre de uma vez só, mas aos poucos. E é o corpo que nos ensina a brutalidade dessa verdade.

O colesterol não encolheu apenas a largura das artérias de meu melhor amigo, mas também a largura da sua vida. Ele sabe que não pode escapar dos limites impostos pelo corpo. Pode, como todos nós, no máximo adiá-los. No exame do laboratório o tal do LDL avisa que a juventude, aquele tempo no qual era possível fingir que não havia limites, acabou. Mas a gordura que entulha as artérias de meu melhor amigo não lhe obstrui o espírito. Porque morreu e nasceu muitas vezes ao longo de seus 43 anos, há nele uma vida dentro da vida que se amplia também nesse choque com os limites. Enquanto o corpo falha, sua mente recolhe suas lágrimas, sua surpresa e sua dor e os transforma em uma experiência a mais.

Sempre foi assim, afinal. É no confronto com a miséria da condição humana que produzimos o melhor do humano. Condenados eternamente ao fracasso de nosso embate com a morte, inventamos essa vida dentro da vida. Que, se tivermos a ousadia de morrer e nascer várias vezes no espaço de uma existência, será uma vida maior que a vida.

Não tenho dúvidas de que meu melhor amigo seguirá suspirando de saudades de uma picanha gorda ou de um feijão com costelinha de porco. Mas, nesse último final de semana, ele já havia colado um cartaz patético na cozinha, com imagens suas de a.C. e d.C. – “C” não de Cristo, mas de colesterol. Estava entrouxado de roupas porque acreditava que os 100 gramas que tinha perdido desde que abriu o exame tornaram-no “mais friorento”. E tentava inventar uma maionese caseira sem ovos nem óleo.

Soube então que estava salvo. Não do colesterol, mas de algo muito pior: uma vida pequena.


Eliane Brum

Jornalista, escritora e documentarista

domingo, 1 de abril de 2012

Reminiscência

Nasci numa pequena cidade de Minas. Até aí, nada demais. Muita gente nasce em cidades pequenas, distantes e quietas. Seria feliz, de qualquer maneira, se quem lê neste instante pudesse saber a alegria que existe em se nascer num lugar assim, em que as ruas pequenas e estreitas, as altas palmeiras, a água macia da chuva que cai sempre, as muitas estrelas e a lua, as pedrinhas das calçadas, a meninada, a carteira da sala de aula, a mestra e mais uma quantidade destas lembranças simples sejam, mais tarde, influências reais na vida da gente.

Na vida de quem, afinal, preferiu enfrentar a cidade grande: as águas desse mar, a luz dessas lâmpadas frias, a sala fechada, triste e sem perspectivas em que se ganha a vida, a cadeira quente e insegura das tardes de ir e vir — pura fadiga — das empresas, a luta, a dura luta de ser alguém, um peixe grande em mar estranhamente grande.

A verdade é que, um dia, a pensar e refletir na grama macia da pracinha da matriz, a criança decidiu sair. E a estrada se abriu a sua frente. Vir era uma idéia. Fixa. Caminhar era fácil. A chegada: a rua imensa, as buzinas, as luzes, sinal verde, aquela cidade grande, grande ali, na sua frente. Cada face, cada ser que passava — para lá e para cá — inquietamente, tanta gente, suada, apressada, sem alegria, sem alma, a alma cerrada, enrustida, cada triste surpresa era a chegada. Cheguei. Um táxi. A mala. As esquinas. Está bem, mas, que fazer? Sentei e pensei. Pela janela da casa alta vai a vida. Seria a vida? E disse a primeira frase na cidade grande, as primeiras palavras diante da grande luta e as palavras eram: Meu Deus, que saudade! E nem um dia me separava da pracinha da matriz.

Cada dia que, a seguir, vi passar, esqueci. Diante da máquina, neste instante, há uma distância imensa entre aquele dia na missa cantada na minha igrejinha e este dia em que, diante de mim, diante de minha mulher e da minha casa feita de cidade grande, minhas filhas brincam de ser gente grande. E elas. Que vai ser delas? Sem palmeiras, sem um pai de ar grave; sem entender a chuva a cair em jardins humildes, nas margaridas branquinhas; sem entender de lua e de estrelas — que céu aqui, para se ver nem se vê —, sem brincar na lama das ruas, a lama das chuvas, casca de palmeira, descer as barracas, nadar sem mamãe saber, nas águas escuras, fim de quintal, quintal, quintal? Sem quintal? Pedrinha de calçada, marcar a canivete sua inicial na carteira da sala. Ainda bem que nasceram meninas. Já é diferente. Será que é? Sei lá. Entre a chegada e este instante, lembrança nenhuma. Sei que cheguei. E sei mais: que esta página está é uma grande besteira, dura de cintura, sem graça, uma m... Já se vê que quem nasceu para caratinguense nunca chega a Rubem Braga. E também tem mais: Quem é capaz de escrever uma página literária decente — igual a essa (?) — sem usar uma vez sequer a letra O? Leiam mais uma vez. Atentamente. Se tiver um — além deste aí em cima — eu como!


Ziraldo Alves Pinto

sábado, 3 de março de 2012

Pega ladrão, Papai Noel!

Ele não era bem um Papai Noel, era mais um Santa Claus, pois trabalhava numa cadeia de lojas multinacional, a Emperor Presentes e Utilidades Domésticas, aquela grande, da avenida. Consta, inclusive, que fez um curso de seis semanas no próprio States para testar e aperfeiçoar sua tendência vocacional, obtendo boa nota, mesmo cantar o "Jingle Bell" com imperdoável sotaque latino-americano. Mas seu visual, ora sem uniforme, impressionou favoravelmente a banca examinadora: era gordo, como convém a um Papai Noel; tinha olhos da cor do céu e a capacidade de sorrir durante horas inteiras sem nenhum motivo aparente.Aliás, um Papai Noel é isso: uma mancha vermelha que sabe rir e às vezes fala.

- Você está ótimo! - disse-lhe o chefe da seção de brinquedos. - As crianças vão adorá-lo!

Era véspera de Natal e a Emperor andava preocupadíssima com as vendas, inferiores ao ano anterior. E preocupada com outra coisa, ainda: o incrível número de furtos, razão porque o Papai Noel além de sorrir e estimular as vendas teria que ser também um olheiro, um insuspeito fiscal de seção.

Ele passeava pelo atraente departamento de brinquedos eletrônicos, juntamente com seu sorriso, e acabara de passar a mão nos cabelos louros de um garotinho, logo viu. Viu o quê? Um homem, e mais que ele, sua mão surrupiando um trenzinho de pilha, imediatamente metido numa bolsa promocinal da Emperor. Interrompendo em meio seu sorriso, Papai Noel deu um passo firme e fez voz de vigia:

- Por favor, me deixe ver essa bolsa!

Nem todo susto é paralisante: o homem sem largar a bolsa, saiu em disparada pela seção de brinquedos, empurrando pessoas, chutando coisas, derrubando e pisando em brinquedos, Atrás desse furacão, seguia outro furacão, este encarnado, o Papai Noel aludido, que repetia em cores mais vivas os desastres provocados pelo primeiro. A cena prosseguiu com mais dramaticidade e ruídos na escadaria da Emperor, pois a seção de brinquedos era no sexto andar. No quarto pavimento Papai Noel chegou a grampear o ladrão pelo braço, mas este conseguiu escapar, livrando oito degraus entre o quarto e o segundo andares. Aí, novamente Papai Noel pôs a mão enluvada no fugitivo, mas um grupo de pessoas que saia do elevador poluiu a imagem e ele tornou a ganhar distância.

Na avenida a perseguição teve novos aspectos e emoções. A pista era melhor para corridas mas ainda maior o número de pessoas e obstáculos. O ladrão logo à saída da loja chocou-se com uma mulher que carregava mil pacotes, pacotinhos e pacotões. Foram todos para o chão. Um propagandista de longas pernas de pau fez uma aterrissagem forçada, que o aeroporto de Congonhas teria desaconselhado devido ao mal tempo. O Papai Noel também empurrava, esbarrava e derrubava, aduzindo ao seu esforço o clássico "pega ladrão!", um refrão tão comum na cidade que não entendo como ainda não musicaram. Na primeira esquina, quase... Um carro bloqueou a fuga do homem, que ficou hesitante enquanto seu colorido perseguidor se aproximava em alta velocidade.

Quando o ladrão do brinquedo entrou numa galeria da Barão, os espectadores, digamos assim, tiveram a impressão de que se livraram do Papai Noel. Mas, a câmera 2 logo mostrou o santo velhinho, entrando também na galeria com o mesmo ímpeto dos primeiros fotogramas. Todavia, embora corresse em milhas e o outro em quilômetros, não conseguia alcança-lo.

Consta que Papai Noel perseguiu o ladrão inclusive pelo Minhocão, de ponta a ponta, onde é proibida a circulação de pedestres. Também sem resultado.

A história, que nem história é, podia acabar aqui, mas prefiro que acabe lá. Lá, onde? Naquele quarto de subúrbio.

Aquela noite, o ladrão, à meia-noite em ponto, deu para o filho o belo presente das lojas Emperor, o trenzinho de pilha que tinha luzes diversas e até apitava, excessivamente incrementado para qualquer garoto pobre.

O menino, que sabia dos apuros do pai, não recebeu alegremente a maravilha eletrônica.

- Papai, o senhor não devia ter comprado.

- Mas não comprei.

- Ahn?

- Ganhei.

- De quem?

- De Papai Noel, até. Bom cara. Nem precisei pedir. Ele correu atrás de mim e me deu o presente. Disse que a pilha dura três meses. Legal, não?


Edmundo Donato (Marcos Rey)

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Prazeres da "melhor idade"

A voz em Congonhas anunciou: "Clientes com necessidades especiais, crianças de colo, melhor idade, gestantes e portadores do cartão tal terão preferência etc.". Num rápido exercício intelectual, concluí que, não tendo necessidades especiais, nem tendo criança de colo, gestante ou portador do tido cartão, só me restava a "melhor idade" - algo entre os 60 anos e a morte.

Para os que ainda não chergaram a ela, "melhor idade", é quando você pensa duas vezes antes de se abaixar para pegar o lápis que deixou cair e, se ninbguém estiver olhando, chuta-o para debaixo da mesa. Ou, tendo atravessado a rua fora da faixa arrepende-se no meio do caminho porque o sinal abriu e agota terá de correr para salvar a vida. Ou quando o singelo ato de dar o laço no pé esquerdo do sapato equivale, segundo João Ubaldo Ribeiro, a uma modalina olímpica.

Privilégios da "melhor idade" são o ressecamento da pele, a esteoporose, as placas de gordura no coração, a pressão lembrando placar de basquete americano, a falência dos neurônios, as baixas de visão e audição, a falta de ar, a queda de cabelo, a tendência à obesidade e as disfunções sexuais. Ou seja, nós da "melhor idade", estamos com tudo, e os demais podem ir lamber sabão.

Outra característica da "melhor idade" é a disponibilidade de seus membros para tomar as montanhas de Rivotril, Lexotan e Frontal que seus médicos lhe receitam e depois não conseguem retirar.

Outro dia, bem cedo, um jovem casal cruzou comigo no Leblon. Talvez vendo em mim Pterodáctilo da clássica boemia carioca, o rapaz perguntou: "Voltando da farra, Ruy?". Respondi, eufórico: "Que nada! Estou voltando da farmácia!". E esta, de fato, é uma grande vantagem da "melhor idade": você extrai prazer de qualquer lugar que ainda consiga ir.



Ruy Castro

sábado, 28 de janeiro de 2012

Mentirosos

Nas intermináveis conversas que têm no céu, Jorge Luis Borges, Vladimir Nabokov e Italo Calvino falam de Deus – contando que Ele não esteja por perto -- e todo mundo , e no outro dia falavam mal da sua própria espécie, a dos escritores. Segundo Calvino, os escritores são um péssimo exemplo para a juventude, pois são mentirosos que ganham com suas mentiras. Vivem de contar coisas que nunca aconteceram, ou versões fantasiosas do acontecido, e não apenas assinam o que escrevem como, no caso dos autógrafos, assinam mais de uma vez!

Borges acha que os únicos escritores honestos são os que usam pseudônimo, pois estes reconhecem sua falsidade e protegem suas famílias da sua reputação, mas Nabokov disse que achava bom os escritores se entreterem inventando histórias, pois só isto os impedia de exercerem sua verdadeira vocação, sua volúpia inconfessada, a de falsificar as obras que determinam a vida sobre a Terra, a vida verdadeira: dicionários, enciclopédias, constituições, manuais de instrução, bulas, pareceres... Para Nabokov, toda a obra de Shakespeare se explica pela sua frustração por não ter escrito a Bíblia.

Foi então que Borges confessou que durante toda sua vida sonhara em escrever um livro telefônico fictício. Inclusive, já tinha quase todo o livro na cabeça, de Aabilongo, Álvaro a Zoroastra, Matilde, e dava especial atenção à seção dos Besundres, uma família formada apenas de viúvas, dezessete viúvas que moravam todas no mesmo endereço, cada uma com seu telefone, embora só uma Besundres, vva. Iriago – tivesse o seu nome em negrito, o seu nome também de luto. A lista telefônica de Borges , embora fosse de uma Buenos Aires imaginária, tinha coisas como Bell, Alexander Graham (número do telefone: 1) e...

Mas os três se calaram quando chegou um anjo com o chá. Um poeta que morrera inédito, e que eles não queriam chocar.


(Luis Fernando Veríssimo)


Publicado originalmente no Jornal do Brasil, 25 de novembro de 1990

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

A velha amiga

Conversávamos sobre saudade. E de repente me apercebi de que não tenho saudade de nada. Isso independente de qualquer recordação de felicidade ou de tristeza, de tempo mais feliz, menos feliz. Saudade de nada. Nem da infância querida, nem sequer das borboletas azuis, Casimiro.

Nem mesmo de quem morreu. De quem morreu sinto é falta, o prejuízo da perda, a ausência. A vontade da presença, mas não no passado, e sim presença atual.

Saudade será isso? Queria tê-los aqui, agora. Voltar atrás? Acho que não, nem com eles.

A vida é uma coisa que tem de passar, uma obrigação de que é preciso dar conta. Uma dívida que se vai pagando todos os meses, todos os dias. Parece loucura lamentar o tempo em que se devia muito mais.

Queria ter palavras boas, eficientes, para explicar como é isso de não ter saudades; fazer sentir que estou expirimindo um sentimento real, a humilde, a nua verdade. Você insinua a suspeita de que talvez seja isso uma atitude.

Meu Deus, acha-me capaz de atitudes, pensa que eu me rebaixaria a isso? Pois então eu lhe digo que essa capacidade de morrer de saudades, creio que ela só afeta a quem não cresceu direito; feito uma cobra que se sentisse melhor na pele antiga, não se acomodasse nunca à pele nova. Mas nós, como é que vamos ter saudades de um trapo velho que não nos cabe mais?

Fala que saudade é sensação de perda. Pois é. E eu lhe digo que, pessoalmente, não sinto que perdi nada. Gastei, gastei tempo, emoções, corpo e alma. E gastar não é perder, é usar até consumir.

E não pense que estou a lhe sugerir tragédias. Tirando a média, não tive quinhão por demais pior que o dos outros. Houve muito pedaço duro, mas a vida é assim mesmo, a uns traz os seus golpes mais cedo e a outros mais tarde; no fim, iguala a todos.

Infância sem lágrimas, amada, protegida. Mocidade - mas a mocidade já é de si uma etapa infeliz. Coração inquieto que não sabe o que quer, ou quer demais.

Qual será, nesta vida, o jovem satisfeito? Um jovem pode nos fazer confidências de exaltação, de embriaguez; de felicidade, nunca. Mocidade é a quadra dramática por excelência, o período dos conflitos, dos ajustamentos penosos, dos desajustamentos trágicos. A idade dos suicídios, dos desenganos e, por isso mesmo, dos grandes heroísmos. É o tempo em que a gente quer ser dono do mundo - e ao mesmo tempo sente que sobra nesse mesmo mundo. A idade em que se descobre a solidão irremediável de todos os viventes. Em que se pesam os valores do mundo por uma balança emocional, com medidas baralhadas; um quilo às vezes vale menos do que um grama; e por essas medida, pode-se descobrir a diferença metafísica que há entre uma arroba de chumbo e uma arroba de plumas.

Não sei mesmo como, entre as inúmeras mentiras do mundo, se consegue manter essa mentira maior de todas: a suposta felicidade dos moços. Por mim, sempre tive pena deles, da sua angústia e do seu desamparo. Enquanto esta idade a que chegamos, você e eu, é o tempo da estabilidade e das batalhas ganhas. Já pouco se exige, já pouco se espera. E mesmo quando se exige muito, só se espera o possível. Se as surpresas são poucas, poucos também os desenganos.

A gente vai se aferrando a hábitos, a pessoas e objetos. Ai, um um dos piores tormentos dos jovens é justamente o desapego das coisas, essa instabilidade do querer, a sede do que é novo, o tédio do possuído.

E depois há o capítulo da morte, sempre presente em todas as idades. Com a diferença de que a morte é a amante dos moços e a companheira dos velhos.

Para os jovens ela é abismo e paixão. Para nós, foi se tornando pouco a pouco uma velha amiga, a se anunciar devagarinho: o cabelo branco, a preguiça, a ruga no rosto, a vista fraca, os achaques. Velha amiga que vem de viagem e de cada porto nos manda um postal, para indicar que já embarcou.


Rachel de Queiroz

(Crônica publicada no jornal "O Estado de São Paulo" - 13/01/2001)



domingo, 1 de janeiro de 2012

Vista cansada



Acho que foi o Hemingway quem disse que olhava cada coisa à sua volta como se a visse pela última vez. Pela última ou pela primeira vez? Pela primeira vez foi outro escritor quem disse. Essa idéia de olhar pela última vez tem algo de deprimente. Olhar de despedida, de quem não crê que a vida continua, não admira que o Hemingway tenha acabado como acabou.

Se eu morrer, morre comigo um certo modo de ver, disse o poeta. Um poeta é só isto: um certo modo de ver. O diabo é que, de tanto ver, a gente banaliza o olhar. Vê não-vendo. Experimente ver pela primeira vez o que você vê todo dia, sem ver. Parece fácil, mas não é. O que nos cerca, o que nos é familiar, já não desperta curiosidade. O campo visual da nossa rotina é como um vazio.


Você sai todo dia, por exemplo, pela mesma porta. Se alguém lhe perguntar o que é que você vê no seu caminho, você não sabe. De tanto ver, você não vê. Sei de um profissional que passou 32 anos a fio pelo mesmo hall do prédio do seu escritório. Lá estava sempre, pontualíssimo, o mesmo porteiro. Dava-lhe bom-dia e às vezes lhe passava um recado ou uma correspondência. Um dia o porteiro cometeu a descortesia de falecer.


Como era ele? Sua cara? Sua voz? Como se vestia? Não fazia a mínima idéia. Em 32 anos, nunca o viu. Para ser notado, o porteiro teve que morrer. Se um dia no seu lugar estivesse uma girafa, cumprindo o rito, pode ser também que ninguém desse por sua ausência. O hábito suja os olhos e lhes baixa a voltagem. Mas há sempre o que ver. Gente, coisas, bichos. E vemos? Não, não vemos.


Uma criança vê o que o adulto não vê. Tem olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo. O poeta é capaz de ver pela primeira vez o que, de fato, ninguém vê. Há pai que nunca viu o próprio filho. Marido que nunca viu a própria mulher, isso existe às pampas. Nossos olhos se gastam no dia-a-dia, opacos. É por aí que se instala no coração o monstro da indiferença.



Otto Lara Resende