sábado, 31 de dezembro de 2011

Felicidade clandestina

Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme; enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.

Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como "data natalícia" e "saudade".

Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.

Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.

Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.

Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.

No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.

Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de livraria era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do "dia seguinte" com ela ia se repetir com meu coração batendo.

E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.

Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.

Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!

E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: "E você fica com o livro por quanto tempo quiser." Entendem? Valia mais do que me dar o livro: "pelo tempo que eu quisesse" é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.

Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.

Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar… Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.

Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.

Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com um amante.


Clarice Lispector

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Do amor à pátria

São doces os caminhos que levam de volta à pátria. Não à pátria amada de verdes mares bravios, a mirar em berço esplêndido o esplendor do Cruzeiro do Sul; mas a uma outra mais íntima, pacífica e habitual - uma cuja terra se comeu em criança, uma onde se foi menino ansioso por crescer, uma onde se cresceu em sofrimentos e esperança canções, amores e filhos ao sabor das estações.

Sim, são doces as rotas que reconduzem o homem à sua pátria, e tão mais doces quanto mais ele teve, viu e conheceu outras pátrias de outros homens. Assim eu, ausente pela segunda vez de uma ausência de muitos anos quando, dentro da noite a bordo, os dedos a revirar o dial do ondas-curtas, aguardava o primeiro balbucio de minha pátria como um pai à espera da primeira palavra do seu filho. O coração batia-me como batera um dia, à poesia sonhada, ou como uma outra vez, diante de uns olhos de mulher.

- O sr. tem certeza de que isso é mesmo um ondas-curtas?

O camareiro norueguês, grande e tranqüilo, limitou-se a sorrir misteriosamente. Depois, humano, inclinou-se sobre o aparelho, o ouvido atento, e pôs-se a tentar por sua vez. As ondas sonoras iam e vinham verrumando a minha angústia.

Onde estava ela, a minha pátria que não vinha falar comigo ali dentro do mar escuro?

E de repente foi uma voz que mal se distinguia, balbuciando bolhas de éter, mas pensei no meio delas distinguir um nome: o nome de Iracema. Não tinha certeza, mas pareceu-me ouvir o nome de Iracema entre os estertores espásmicos do aparelho receptor.

Deus do Céu! Seria mesmo o nome de Iracema?

Era sim, porque logo depois chegou a afirmar-se, mas quase imperceptível, como se pronunciado por um gnomo montado em minha orelha. Era o nome de Iracema, da Rádio Iracema, de Fortaleza, a emissora dos lábios de mel, que sai mar afora, enfrentando os espaços oceânicos varridos de vento para trazer a um homem saudoso o primeiro gosto de sua pátria.

Adorável prefixo noturno, nunca te esquecerei! Foste mais uma vez essa coisa primeira tão única como o primeiro amigo, a primeira namorada, o primeiro poema. E a ti eu direi: é possível que o padre Vieira esteja certo ao dizer que a ausência é, depois da morte, a maior causa da morte do amor. Mas não do amor à terra onde se cresceu e se plantou raízes, à terra a cuja imagem e semelhança se foi feito e onde um dia, num pequeno lote, se espera poder nunca mais esperar.


Vinícius de Morais


A crônica acima foi copiada do site Vinícius de Moraes

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Sábias e rouxinóis

Nos meus tempos de criança tive um tio que era grande contador de histórias. Este dom, se o tornava querido da criançada, era também uma fonte de maçadas. Bastava um dia de chuva, ou um de nós preso na cama por um resfriado, já Tio Fausto era requisitado para nos distrair. Embora sua paciência e imaginação fossem quase inesgotáveis, certas vezes refugavam a tarefa, e vinha então o recurso que nos obrigava a desistir do intento: "Em Portugal canta o rouxinol e aqui no Brasil canta o sabiá, mas a distância entre cá e lá é tão grande que o que se canta cá não se ouve lá, e o que se canta lá não se ouve cá. Por isso é que ninguém sabe a história da casinha amarela que eu vou contar. Quer que eu conte?... Em Portugal canta o rouxinol..." E a cantilena recomeçava até que o mais persistente entregasse os pontos,

Lembrei-me desta velha história quando, viajando por quase toda a Europa sem qualquer dificuldade, em Portugal apenas consegui fazer-me entender e a custo compreendia a gente da terra. Não é só que o português engula bom número de sílabas, nem que a pronúncia seja carregada e outra a sintaxe, dando à frase um tom que ao brasileiro parece pomposo. É que as palavras usadas na linguagem corrente são outras ou têm sentido diferente do nosso. Assim foi que, perguntando ao porteiro do hotel em Lisboa se havia trem para a praia da Nazaré, o homem respondeu-me em tom de espanto: — "Trem não, minha Senhora, que é demasiado distante..."

Que eu saiba, o trem foi inventado justamente para as grandes distâncias, mas não discuti, — "E ônibus?"

— "Ai, minha Sra., de ônibus V. Excia. levaria o dia todo para lá chegar. É preferível a camionete". — "Camionete... (pensei num caminhão pequeno e fechado) mas não será muito incômodo?" E o diálogo continuou até que se esclarecesse o quiproquó: Em Portugal trem é carro puxado por cavalos, ônibus é o nosso trem vagaroso que chamamos leiteiro, camionete é nosso ônibus, sendo que toda esta complicação teria sido evitada se, de início, eu tivesse perguntado pelo combóio.

Quem passou por Lisboa numa escala rápida, sabe da inutilidade de indagar onde se toma o bonde, expressão totalmente desconhecida e sem relação com "o elétrico", e se, na pressa da partida, quiser saber como ir até o navio, terá que perguntar pelo barco, à moda da terra. Na conversa, portugueses e brasileiros regalam-se de ouvir um do outro expressões e modismos que lhes parecem do melhor cômico. O português não sabe o que é "dar uma prosa", e se quer tirar um cochilo fala em "passar pelas brasas". Já no telefone leva-se um susto quando em vez de alô ouve-se um berro: — "Está lá?..." e a telefonista perplexa não entende que meia dúzia é seis.

Nas compras a confusão é ainda maior; quem quiser ir a uma loja de armarinho comprar carretel de linha, cadarço, colchetes, grampos, terá que procurar o retroveiro onde peça um carrinho de fio, nastro, molas e ganchos, sendo que as vitrinas são montras, as meias de homem peúgas, as mulheres é que usam cuecas e o homens calções. Numa casa de doces pedi balas, e responderam-me que só em loja de armas; quando apontei o que queria foi um alívio: — "Ah, V. Excia. quer rebuçados e caramelos, ou, sob a influência americana, "drops", mas nada de balas.

Ali chocolate é uma coisa e cacau outra, conforme aprendeu uma brasileira que pedindo "chocolate na xícara" teve a pronta resposta: — "Não há, minha Sra. Só temos cacau em chávena." Realmente existe a diferença , o chocolate sendo o cacau preparado com leite e a chávena um termo caído em desuso, só empregado pelos que apreciam os arcaísmos.

Creio que o português tem um vocabulário mais amplo que o nosso e usa os termos com mais exatidão, sendo também incapaz de interpretar o pensamento incorretamente expresso pela sintaxe brasileira. Assim foi que um amigo meu, pedindo uma lata de bolachas, após longa espera recebeu uma lata cuidadosamente aberta e esvaziada. Ao seu protesto, o próprio gerente da loja veio dar razão ao empregado: — "V. Excia. pediu uma lata "de" bolachas, e aí está. Se pedisse uma lata "com" bolachas, a coisa era outra".

Foi para evitar mal-entendidos que, ainda na praia da Nazaré, o copeiro da pensão encerrou assim nosso diálogo: — "Seu Leandro, esta noite os pernilongos não me deixaram dormir". — "Perdão, minha Sra.?" — "Os mosquitos, Seu Leandro". — "Ai, V. Excia. quer dizer os melgas?..." — "Não sei se são melgas, mas diga-me, aqui há maleita?" — "Perdão, minha Sra.?" — "Digo malária.." O homem olhou-me de banda e teve uma inspiração: — "V. Excia. não prefere falar em francês ou inglês?..."

Tinha razão o bom do homem. Assim que abandonamos o vernáculo nos entendemos perfeitamente.

Vejo agora nos jornais que vamos ter um Congresso da Língua Portuguesa, ao qual comparecerão seis filólogos lusitanos, e tenho medo que este grupo de escol resolva mexer outra vez na nossa ortografia, quando não tente unificar a língua d'aquém e d'além-mar.

Francamente, não vejo porque reviram e reformam a pobre ortografia, quando a língua falada em cada pais é tão diversa. As reformas só têm tido o magnífico resultado de tornar analfabetos nossos poucos alfabetizados. Quantos de nós, que escrevemos profissionalmente, sabemos onde colocar os acentos ou se, afinal de contas, Pedro Calmon conseguiu defender o H de Bahia? O escritor ou jornalista geralmente escreve como aprendeu em criança, fiando-se no trabalho do especialista que é o revisor ortográfico indispensável a cada editora e redação. O povo escreve como lhe dá na cabeça, e a meninada que já passou por mais de uma reforma manda a ortografia às favas.

Os ingleses pouco se incomodam que os americanos simplifiquem "night", em "nite" e "through" em "thru", e não me consta que a França jamais se tenha preocupado com o francês falado e escrito no Canadá ou nas colônias, nem que a "Madre Pátria" espanhola estenda seu cuidado maternal até zelar pelo castiço da língua de Cervantes, cujos termos, nesta América Latina, mudam perigosamente de sentido de um país a outro.

Que venham os filólogos lusitanos, mas não se assanhem os mestres nacionais. Aproveitem a ocasião para ouvir as últimas maledicências correntes no Chiado e as novas anedotas sobre Salazar. Por sua vez, forneçam aos nossos irmão d'além-mar um estoque de anedotas cariocas que, repetidas em Lisboa, terão "imensa piada", e tenham a camaradagem de ensinar-lhes os sambas deste carnaval, que o samba é o produto brasileiro mais cotado em Portugal. No mais, lembrem-se que "o que se canta cá não se ouve lá, e o que se canta lá não se ouve cá".

Se temos garganta de sabiá, não vamos desafinar fingindo de rouxinóis.


Vera Pacheco Jordão



Crônica extraída do livro "Antologia do Humorismo e Sátira", Editora Civilização Brasileira — Rio de Janeiro, 1957, pág. 399.

O grande mistério




Há dias já que buscavam uma explicação para os odores esquisitos que vinham da sala de visitas. Primeiro houve um erro de interpretação: o quase imperceptível cheiro foi tomado como sendo de camarão. No dia em que as pessoas da casa notaram que a sala fedia, havia um soufflé de camarão para o jantar. Daí...

Mas comeu-se o camarão, que inclusive foi elogiado pelas visitas, jogaram as sobras na lata do lixo e — coisa estranha — no dia seguinte a sala cheirava pior.

Talvez alguém não gostasse de camarão e, por cerimônia, embora isso não se use, jogasse a sua porção debaixo da mesa. Ventilada a hipótese, os empregados espiaram e encontraram apenas um pedaço de pão e uma boneca de perna quebrada, que Giselinha esquecera ali. E como ambos os achados eram inodoros, o mistério persistiu.

Os patrões chamaram a arrumadeira às falas. Que era um absurdo, que não podia continuar, que isso, que aquilo. Tachada de desleixada, a arrumadeira caprichou na limpeza. Varreu tudo, espanou, esfregou e... nada. Vinte e quatro horas depois, a coisa continuava. Se modificação houvera, fora para um cheiro mais ativo.

À noite, quando o dono da casa chegou, passou uma espinafração geral e, vitima da leitura dos jornais, que folheara no lotação, chegou até a citar a Constituição na defesa de seus interesses.

— Se eu pago empregadas para lavar, passar, limpar, cozinhar, arrumar e ama-secar, tenho o direito de exigir alguma coisa. Não pretendo que a sala de visitas seja um jasmineiro, mas feder também não. Ou sai o cheiro ou saem os empregados.

Reunida na cozinha, a criadagem confabulava. Os debates eram apaixonados, mas num ponto todos concordavam: ninguém tinha culpa. A sala estava um brinco; dava até gosto ver. Mas ver, somente, porque o cheiro era de morte.

Então alguém propôs encerar. Quem sabe uma passada de cera no assoalho não iria melhorar a situação?

- Isso mesmo — aprovou a maioria, satisfeita por ter encontrado uma fórmula capaz de combater o mal que ameaçava seu salário.

Pela manhã, ainda ninguém se levantara, e já a copeira e o chofer enceravam sofregamente, a quatro mãos. Quando os patrões desceram para o café, o assoalho brilhava. O cheiro da cera predominava, mas o misterioso odor, que há dias intrigava a todos, persistia, a uma respirada mais forte.

Apenas uma questão de tempo. Com o passar das horas, o cheiro da cera — como era normal — diminuía, enquanto o outro, o misterioso — estranhamente, aumentava. Pouco a pouco reinaria novamente, para desespero geral de empregados e empregadores.

A patroa, enfim, contrariando os seus hábitos, tomou uma atitude: desceu do alto do seu grã-finismo com as armas de que dispunha, e com tal espírito de sacrifício que resolveu gastar os seus perfumes. Quando ela anunciou que derramaria perfume francês no tapete, a arrumadeira comentou com a copeira:

— Madame apelou para a ignorância.

E salpicada que foi, a sala recendeu. A sorte estava lançada. Madame esbanjou suas essências com uma altivez digna de uma rainha a caminho do cadafalso. Seria o prestigio e a experiência de Carven, Patou, Fath, Schiaparelli, Balenciaga, Piguet e outros menores, contra a ignóbil catinga.

Na hora do jantar a alegria era geral. Nas restavam dúvidas de que o cheiro enjoativo daquele coquetel de perfumes era impróprio para uma sala de visitas, mas ninguém poderia deixar de concordar que aquele era preferível ao outro, finalmente vencido.

Mas eis que o patrão, a horas mortas, acordou com sede. Levantou-se cauteloso, para não acordar ninguém, e desceu as escadas, rumo à geladeira. Ia ainda a meio caminho quando sentiu que o exército de perfumistas franceses fora derrotado. O barulho que fez daria para acordar um quarteirão,quanto mais os da casa, os pobres moradores daquela casa, despertados violentamente , e que não precisavam perguntar nada para perceberem o que se passava. Bastou respirar.

Hoje pela manhã, finalmente, após buscas desesperadas, uma das empregadas localizou o cheiro. Estava dentro de uma jarra, uma bela jarra, orgulho da família, pois tratava-se de peça raríssima, da dinastia Ming.

Apertada pelo interrogatório paterno Giselinha confessou-se culpada e, na inocência dos seus 3 anos, prometeu não fazer mais.

Não fazer mais na jarra, é lógico.



Stanislaw Ponte Preta

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Hoje não escrevo



Chega um dia de falta de assunto. Ou, mais propriamente, de falta de apetite para os milhares de assuntos.


Escrever é triste. Impede a conjugação de tantos outros verbos. Os dedos sobre o teclado, as letras se reunindo com maior ou menor velocidade, mas com igual indiferença pelo que vão dizendo, enquanto lá fora a vida estoura não só em bombas como também em dádivas de toda natureza, inclusive a simples claridade da hora, vedada a você, que está de olho na maquininha. O mundo deixa de ser realidade quente para se reduzir a marginália, purê de palavras, reflexos no espelho (infiel) do dicionário.


O que você perde em viver, escrevinhando sobre a vida. Não apenas o sol, mas tudo que ele ilumina. Tudo que se faz sem você, porque com você não é possível contar. Você esperando que os outros vivam para depois comentá-los com a maior cara-de-pau (“com isenção de largo espectro”, como diria a bula, se seus escritos fossem produtos medicinais). Selecionando os retalhos de vida dos outros, para objeto de sua divagação descompromissada. Sereno. Superior. Divino. Sim, como se fosse deus, rei proprietário do universo, que escolhe para o seu jantar de notícias um terremoto, uma revolução, um adultério grego - às vezes nem isso, porque no painel imenso você escolhe só um besouro em campanha para verrumar a madeira. Sim, senhor, que importância a sua: sentado aí, camisa aberta, sandálias, ar condicionado, cafezinho, dando sua opinião sobre a angústia, a revolta, o ridículo, a maluquice dos homens. Esquecido de que é um deles.


Ah, você participa com palavras? Sua escrita - por hipótese - transforma a cara das coisas, há capítulos da História devidos à sua maneira de ajuntar substantivos, adjetivos, verbos? Mas foram os outros, crédulos, sugestionáveis, que fizeram o acontecimento. Isso de escrever O Capital é uma coisa, derrubar as estruturas, na raça, é outra. E nem sequer você escreveu O Capital. Não é todos os dias que se mete uma idéia na cabeça do próximo, por via gramatical. E a regra situa no mesmo saco escrever e abster-se. Vazio, antes e depois da operação.


Claro, você aprovou as valentes ações dos outros, sem se dar ao incômodo de praticá-las. Desaprovou as ações nefandas, e dispensou-se de corrigir-lhe os efeitos. Assim é fácil manter a consciência limpa. Eu queria ver sua consciência faiscando de limpeza é na ação, que costuma sujar os dedos e mais alguma coisa. Ao passo que, em sua protegida pessoa, eles apenas se tisnam quando é hora de mudar a fita no carretel.


E então vem o tédio. De Senhor dos Assuntos, passar a espectador enfastiado de espetáculo. Tantos fatos simultâneos e entrechocantes, o absurdo promovido a regra de jogo, excesso de vibração, dificuldade em abranger a cena com o simples par de olhos e uma fatigada atenção. Tudo se repete na linha do imprevisto, pois ao imprevisto sucede outro, num mecanismo de monotonia... explosiva.


Na hora ingrata de escrever, como optar entre as variedades de insólito? E que dizer, que não seja invalidado pelo acontecimento de logo mais, ou de agora mesmo? Que sentir ou ruminar, se não nos concedem tempo para isso entre dois acontecimentos que desabam como meteoritos sobre a mesa? Nem sequer você pode lamentar-se pela incomodidade profissional. Não é redator de boletim político, não é comentarista internacional, colunista especializado, não precisa esgotar os temas, ver mais longe do que o comum, manter-se afiado como a boa peixeira pernambucana. Você é o marginal ameno, sem responsabilidade na instrução ou orientação do público, não há razão para aborrecer-se com os fatos e a leve obrigação de confeitá-los ou temperá-los à sua maneira. Que é isso, rapaz. Entretanto, aí está você, casmurro e indisposto para a tarefa de encher o papel de sinaizinhos pretos. Concluiu que não há assunto, quer dizer: que não há para você, porque ao assunto deve corresponder certo número de sinaizinhos, e você não sabe ir além disso, não corta de verdade a barriga da vida, não revolve os intestinos da vida, fica em sua cadeira, assuntando, assuntando...


Então hoje não tem crônica.


Carlos Drummond de Andrade

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

A crônica de natal

Na verdade ela, a crônica de Natal, é um apetrecho que faz parte dessas comemorações de fim de ano. Todo cronista brasileiro, gente classuda e cheia de manha, quando os havia, tinha a sua engatilhada.

Era sempre a pior crônica do ano, não importa se você se chamasse Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Antônio Maria, Drummond ou Clarice Lispector.

Um dia vagabundo em que nada conhecia e eles, os cronistas, davam um banho, alguns à fantasia. O gato (nunca se deve dizer seu verdadeiro nome) comeu todos.

Hoje, que se tem três ou quatro, já é muito. Bloga-se. Blogam-se os blogs de Natal. E tome sino. Um bimbalhar de ensurdecer frade de pedra. Blim-blom, blim-blom.

A rigor, estas linhas, que digito por mero cacoete ou hábito, talvez não passem de uma (i)vã tentativa de manter uma vela de verdade acesa no matéria barata que virou tudo - árvore, enfeite, presépio, presentes.

Talvez não seja mais que uma vontade de jogar areia na presepada (a falta de graça e imaginação no jogo de palavras é culpa da estação) que reina ao menos no mundo cristão.

Estar no Afeganistão ou no Iraque pacificado pelo Obama (ser irônico é um condimento da época) é, seguramente, menos nocivo à saúde física e mental, do que leitão, presunto, peru ou presente eletrônico.

Jogar areia no sentido de que, a rigor, ela, a "crônica de Natal" deveria "estar indo para o ar" (a falada "nuvem"?) na sexta, dia 23, para pegar a enxurrada de feriados, feriadinhos e feriadões que deverão se seguir.

Agora, vida mesmo, dessas danadas de chatas, essa só depois do dia 2 de janeiro de 2012. E olha lá, para quem vive no Reino Unido será ano de Jogos Olímpicos, conforme todos os noticiários de televisão insistem em lembrarem o tedioso tema todos os dias em todas as horas por pelo menos cinco minutos.

Eu me perdi. Deve ter sido a gemada reforçada com vinho do Porto que tomo sozinho como um personagem rabugento de Dickens.

Ah, sim. Por que mandar a "crônica de Natal" antes do dia adequado? Porque tudo indica que não terei forças dentro de 48 horas.

Comecei a me perder, a me desorientar, na segunda-feira, quando taquei serenamente, neste cantinho que me cabe, que o Sol nascia a oeste.

Deve estar nascendo assim ao menos para mim. Os duendes que auxiliam Papai Noel entortaram e, desde o começo da semana, deram para botar para quebrar aqui em casa. Literalmente.

A televisão transformou 12 canais digitais em expressionismos abstratos mudos como esse filme, O Silêncio, de que tanto falam.

A cortina de meu quarto quebrou e recusa-se a abrir, roubando-me do ralo sol de dezembro que banha por uma uma ou duas horas o aposento a que chamo, sem ironia ou vergonha, de quarto/escritório, que, agora, como minha vida interior, anda às escuras.

Três lâmpadas direcionais de 40w iluminam minha cela, tal como chamo isso que sobrou de minha vida, quando nela cumpro parte de minha sentença (esbanjamento ilegal de joie de vivre antes do tempo, disseram os juízes, meus algozes).

O resto da casa também trama contra mim. A pequena e outrora fiel árvore de Natal de plástico, com seus enfeites bobocas, virou na mesinha da sala, deu curto e eu tive de me virar também, descurtificando sem fôlego o desastre diante do espanto e medo da gata, que já não é, como eu, broto.

Olhamo-nos, mudos como o "falado" filme que citei acima, para ver quem envelhece mais e morre primeiro.

Continuando: o banco errou no pagamento de algumas contas. Uma tarde perdida conversando com gravações que, como o resto do mundo, só sabia me deixar aguardando impotente em hold. É, estou em hold há uns bons 20 anos.

A vizinha de cima bateu na minha porta, muito educada (trabalha na City, e é ruiva natural, porem feiosa), para me avisar que, na noite de sexta-feira, vai dar uma recepção e que iria procurar bimbalhar o mais baixo possível. Duvide-o-dó.

Agora, é sentar na poltrona que me detesta e eu a ela e, juntos, esperarmos a tempestade declarar missão cumprida, como um Iraque pacificado desde a época do George W. Bush, e aguardar até que o sistema de aquecimento dê o prego.

Em geral, quando essas coisas batem, batem com força e para valer. Fico, com a gata a me espionar, a tentar ribombar e não bimbalhar. Acabo sendo ribombado e bimbalhado por força das circunstâncias e contra minha vontade. Claro.


Ivan Lessa
Colunista da BBC BRASIL
Folha.com.br

terça-feira, 8 de novembro de 2011

O enterro

Tenho com a morte uma relação respeitosa, mas que não ultrapassa a inevitável certeza de que, um dia, nos encontraremos, nada mais que isso. De minha parte, alimento a expectativa de continuarmos assim, sem chance de qualquer prévia conciliação. Não me meto com ela embora não possa dizer o mesmo de sua parte. Ultimamente, tenho percebido discretos piscares de olhos, às vezes, até um aceno, tentativa vã de uma aproximação menos ruidosa.

Mantenho com a indesejada das horas considerável distância de tudo que possa, ao menos, lhe ser associado. Há anos que sequer visito o cemitério ou participo de funeral, até o dia em que o amigo “Coquinho” resolveu partir antes da hora combinada e sem avisar aos amigos. Não estava em meus planos participar do sepultamento de mais ninguém, afora o meu próprio, claro.

Toda aquela comoção e o ambiente que cercam as exéquias sempre conseguiram, de certa forma, me deixar alheio e deslocado ante o formalismo e a dor de toda a liturgia de velação do defunto.

O certo é que, depois de longos anos, estava eu novamente enterrando alguém. O “Coquinho” era um velho amigo que há décadas não o via e julguei ser justo lhe fazer essa deferência, passando por cima da velha promessa de me manter distante desse tipo de “solenidade”.

Cuidei então de chegar cedo a central de velórios e me desobrigar do compromisso debulhando três ou quatro ave-marias em ação de graça ao insepulto:
- Boa noite a todos! Silêncio sepulcral. Ninguém respondeu. Também pudera: como desejar “boa noite” numa situação daquelas? Refiz-me da gafe dita solenemente em alto e bom som e me aproximei de uma distinta senhora, séria, alta, bem vestida e de óculos escuros que acendia algumas velas em torno do ataúde posto estrategicamente no centro da sala: - Meus pêsames, senhora. Disse. Ao que ela me respondeu de pronto: - Obrigada, mas eu sou a proprietária da funerária, não conheço o morto!

Não foi difícil deduzir que as forças da natureza, desse e do outro mundo, estavam de sacanagem comigo. Procurei então portar-me em silêncio respeitoso. Estaria isento do cometimento de mais deslizes. Posicionei-me discretamente por trás do que, a princípio, julguei ser uma das portas laterais da nave da capela. Ledo engano, era a tampa do ataúde que eu acabara de derrubar por cima do caixão, quebrando-a ao meio.

Não contei conversa, rapidamente pus-me em pé, depositei minhas desculpas e expensas e saí dali apressadamente, sem tempo sequer de deixar com o “Coquinho” minhas três ave-marias.

Nunca mais vou a um enterro. Nem ao meu. Se quiserem, os amigos que me levem!


Teófilo Júnior

segunda-feira, 16 de maio de 2011

O que é mesmo uma crônica?

Geralmente chamam de crônica ao conto a que falta o final. Irrita-me esse visual de cão sem rabo, girando, doido, atrás de nada. Assim posto, dá a idéia de gênero literário amputado por incapacidade ou crueldade mental do autor. A crônica na verdade não precisa ter fim, momento em que o escritor amarra o sentido de tudo, ou fixa-o como se usasse parafusos e buchas ─ a parte mais material e envernizada da criação. Não precisa.

O fecho, encerramento ou epílogo, é um departamento complicado, onde antigamente havia uma gaveta para a moral da história e para outros compromissos do escritor com a religião, a ética e a tradição. Muitos supõem, também erradamente, que a crônica, ramo econômico das letras, sem espaço para alinhavar e aprofundar conclusões, nem tamanho para conter finais apoteóticos, não passa de malabarismo de entreato, cortina ou número de entretenimento ligeiro, show de bolso, sem grandiosidade. Uma quase-literatura de consumo dietético. Mas a crônica é mais, muito mais que isso, mesmo as que não têm fim nem começo.

Disse começo? Então está dito. Não sou homem de desmentidos após a invenção do teipe e do tira-teima esportivo. O começo numa crônica pode ser tão desnecessário como o final, pois, igual à esfera e ao infinito, ela realmente não possui. A primeira linha, anotem, nem nos outros gêneros literários é rigorosamente o princípio. É até lugar-comum reprovável começar pelo começo. Na crônica nem precisa haver esse cuidado excessivamente pueril, pobre de imaginação e esquemático. Ordenar tudinho, colocando fatos e idéias obedientemente em fila, é deficiência de principiante. Quem é que sabe o exato momento em que as coisas começam? Entre os gêneros literários, a crônica é o único que, humildemente, parte desse pressuposto: vida e ficção não têm um marco, espécie de ponto de ônibus, onde se vai daqui até lá. Nada começa, pois já está em curso. Nosso ônibus pode chegar, claro, mas não parte nunca, já partiu, já passou.

Então ela não tem pé nem cabeça.
Pode ser, mas aceite a inquirição como elogio. E declare:
─ O que escrevo não tem pé nem cabeça.
─ E custa atingir essa perfeição?
─ Isso já é segredo profissional.

A boa crônica, a meu ver e não sei de quem mais, só possui o meio ou miolo, é sumo, não casca. Tendo as pontas soltas bóia deliciosamente, caia onde cair. É um sanduíche sem as fatias de pão. Não tendo assinado contrato com a posteridade, é feita para servir já, quente ou gelada, em pó ou granulada. Ao contrário do artigo de jornal, ela não prova, confere. Diferente do conto, nunca é terceira pessoa, o outro que fala, mas estritamente a primeira, o eu assumido, todo impressões digitais. Oposta à notícia, às vezes sua inspiradora, prima por não merecer crédito: a luz forte da informação jornalística espanta a fera insaciável da criação.

Se faltar uma definição para a crônica, tente definir o cronista. Nunca é um lutador, idealista, portador de bandeiras, alguém capaz de morrer para que desfrutemos de um mundo melhor. Se tentarem segui-lo, impondo-lhe liderança, entra num bar, disfarça-se, esconde-se. A verdade é que ele prefere sua sombra, seu lado oculto, suas contradições ou qualquer coisa que se pareça com isso.

Se fui claro demais, perdoem-me.

Marcos Rey

(REY, Marcos. O que é mesmo uma crônica? In: ─ . O coração roubado e outras crônicas. São Paulo: Ática, 3. ed., 2003, “Para Gostar de Ler”, n. 19.)

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Dias tortos

Estou na Avenida 23 de Maio, na pista do meio. Engarrafamento. De repente, a da direita anda. A da esquerda também. A minha não. Fico contando os carros que passam. Começo a ranger os dentes. Imagino: "Deve haver um acidente nesta pista". Dou seta à esquerda. Atiro meu carro na pista do lado. Ouço buzinadas. Consegui! Agora vou andar! Puro engano. Imediatamente, a da esquerda pára. A pista onde eu estava se desafoga. Todos os veículos que se encontravam atrás de mim me ultrapassam. Permaneço imóvel. Lamento-me: "Por que fui mudar de pista?".

É um mistério do trânsito. A pista do lado sempre anda mais que a minha! Pior. Há dias em que todos os semáforos ficam vermelhos quando me aproximo. Sem exceção. Isso costuma acontecer quando tenho algum compromisso inadiável. Tipo reunião com o chefe. Consulta médica. Canal do dente latejando. Pagar imposto no último dia de prazo!

Viajo muito de avião. O tamanho dos bancos diminuiu. Minha barriga aumentou. Todas as vezes o passageiro da frente reclina o banco, me deixando entalado. Com freqüência, ninguém mais, em todo o avião, reclina o assento. Só o da minha frente! Se vou a um teatro lotado, vira e mexe sento atrás de um gigante! Passo o espetáculo inteiro entortando o pescoço!

E caixa eletrônico de posto de gasolina? Quando chega a minha vez, há sempre um quebrado e no outro alguém lento. A pessoa tecla, tecla. Bota o cartão. Tira. Tecla de novo. Quando o caixa é ao ar livre, em geral cai um chuvisco. Fico com os óculos gotejando, durante séculos!

Passo semanas planejando ir a determinado restaurante do qual falam de um bacalhau fantástico. Cinqüenta minutos de espera. Mal pego o cardápio, anuncio:

– Vou querer o bacalhau.

O garçom sorri:

– O bacalhau hoje saiu todo...

Ahhhhhhhhhh! Filas de supermercado também me aterrorizam. Permaneço um tempão à espera. Quando a senhora à minha frente está terminando de passar os produtos, a caixa descobre uma melancia sem preço. Chama um rapaz para verificar. Ele demora horas. Finalmente a melancia é cobrada. A pessoa resolve pagar com cartão de débito. Mas esqueceu a senha. Ou o cartão não passa. Vem o gerente para resolver. E eu espero, espero! Quando chega a minha vez, a mocinha avisa:

– Um instantinho!

É a hora de mudar de caixa! Ela conta moeda por moeda. A substituta troca o carretel de papel. Levanta-se para ir falar com o gerente. Todos os outros caixas estão vazios! Mas já tirei meus produtos do carrinho! E vai e vem, e vai e vem. Uma outra caixa chega para conversar. Quase berro:

– Calem a boca!

Dou apenas um longo suspiro. Elas nem ligam! Eu poderia escrever livros inteiros sobre filas. No embarque do aeroporto as duas pessoas à minha frente costumam ter problemas, com muitas idas e vindas das atendentes, enquanto meu vôo está sendo chamado! Nas lojas, sempre há um obstáculo. Como uma senhora que pede dez pacotes de presente, todos com lacinhos, enquanto espero! Ou na livraria um senhor resolve contar a vida para o caixa, em detalhes!

Há dias que são assim, tortos. Tudo conspira para dar errado. Mas, felizmente, outros são o contrário. Acordo feliz sem saber por quê. Os semáforos estão verdes. Não há filas! A mocinha do caixa sorri e tenho vontade de bater papo com ela!

Será coisa do destino? Meu humor atrai um dia ruim, outro melhor? Será que todos os dias são iguais, com coisas desagradáveis ou não? Serei eu que em alguns dias acho tudo péssimo e em outros, maravilhoso? Talvez seja essa a grande questão!


Walcyr Carrasco

O monstro

Pelas margens sagradas do Eufrates, que fugia, então, sem espuma e sem ondas, caminhavam, na infância maravilhosa da Terra, a Dor e a Morte. Eram dois espetros longos e vagos, sem forma definida, cujos pés não deixavam traços na areia. De onde vinham, nem elas próprias sabiam. Guardavam silêncio, e marchavam sem ruído olhando as coisas recém-criadas.

Foi isto no sexto dia da Criação. Com o focinho mergulhado no rio, hipopótamos descomunais contemplavam, parados, a sua sombra enorme, tremulamente refletida nas águas. Leões fulvos, de jubas tão grandes que pareciam, de longe, estranhas frondes de árvores louras, estendiam a cabeça redonda, perscrutando o Deserto. Para o interior da terra, onde o solo começava a cobrir-se de verde, velando a sua nudez com um leve manto de relva moça, que os primeiros botões enfeitavam, fervilhava um mundo de seres novos, assustados, ainda, com a surpresa miraculosa da Vida. Eram aves gigantescas, palmípedes monstruosos, que mal se sustinham nas asas grosseiras, e que traziam ainda na fragilidade dos ossos a umidade do barro modelado na véspera. Algumas marchavam aos saltos, o arcabouço à mostra, mal vestidas pela penugem nascente. Outras se aninhavam, já, nas moitas sem espinhos, nos primeiros cuidados da primeira procriação. Batráquios de dorso esverdeado porejando água fitavam mudos, com os largos olhos fosforescentes e interrogativos, a fila cinzenta dos outeiros longínquos que pareciam à distância, à sua brutalidade virgem, uma procissão silenciosa, contínua, infinita, de batráquios maiores. Auroques taciturnos, sacudindo a cabeça brutal em que se enrolavam encharcadas e gotejantes braçadas de ervas dos charcos, desafiavam-se, urrando, com as patas enfiadas na terra mole.

Rebanho monstruoso de um gigante que os perdera, os elefantes pastavam em bando, colhendo com a tromba, como ramalhetes verdes, moitas de arbustos frescos. Aqui e ali um alce galopava célere. E à sua passagem os outros animais o ficavam olhando, como se perguntassem que focinho, que tromba, ou que bico havia privado das folhas aquele galho seco e pontiagudo que ele arrebatava na fuga. Ursos primitivos lambiam as patas monotonamente. E quando um pássaro mais ligeiro cortava o ar num vôo rápido, havia como que uma interrogação inocente nos olhos ingênuos de todos os brutos.

Em passo triste, a Dor e a Morte caminham, olhando sem interesse as maravilhas da Criação. Raramente marcham lado a lado. A Dor vai sempre à frente, ora mais vagarosa, ora mais apressada; a outra, sempre no mesmo ritmo, não se adianta nem se atrasa. Adivinhando de longe a marcha dos dois duendes, as coisas todas se arrepiam, tomadas de agoniado terror. As folhas, ainda mal recortadas no limo do chão, contraem-se num susto impreciso. Os animais entreolham-se inquietos e o vento, o próprio vento, parece gemer mais alto e correr mais veloz à aproximação lenta mas segura das duas inimigas da Vida.

Súbito, como se a detivesse um grande braço invisível, a Dor estacou, deixando aproximar-se a companheira.

- Para que mistério - disse a voz surda - para que mistério teria Jeová, no capricho da sua onipotência, enfeitado a terra de tanta coisa curiosa?

A Morte estendeu os olhos perscrutadores até os limites do horizonte, abrangendo o rio e o Deserto, e observou num sorriso macabro que fez rugir os leões:

- Para nós ambas, talvez...

- E se nós próprias fizéssemos com as nossas mãos uma criatura que fosse, na terra, o objeto carinhoso do nosso cuidado? Modelado por nós mesmas, o nosso filho seria, com certeza, diferente dos auroques, dos ursos, dos mastodontes, das aves fugitivas do céu e das grandes baleias do mar. Trá-lo-íamos, eu e tu, em nossos braços, fazendo do seu canto, ou do seu urro, a música do nosso prazer... Eu o traria sempre comigo, embalando-o, avivando-lhe o espírito, aperfeiçoando-lhe à alma, formando-lhe o coração. Quando eu me fatigasse, tomá-lo-ias tu então no teu regaço... Queres?

A Morte assentiu, e desceram ambas à margem do rio, onde se acocoraram sombrias modelando o seu filho.

- Eu darei a água... - disse a Dor, mergulhando a concha das mãos, de dedos esqueléticos, no lençol vagaroso da corrente.

- Eu darei o barro... - ajuntou a Morte, enchendo as mãos de lama pútrida, que o sol endurecera.

E puseram-se a trabalhar. Seca e áspera, a lama se desfazia nas mãos da oleira sinistra, que assim trabalhava inutilmente.

- Traze mais água! - pedia.

A Dor enchia as mãos no leito do rio, molhava o barro, e este logo se amoldava, escuro, ao capricho dos dedos magros que o comprimiam. O crânio, os olhos, o nariz, a boca, os braços, o ventre, as pernas, tudo se foi formando a um jeito mais forte ou mais leve da escultora silenciosa.

- Mais água! - pedia esta, logo que o barro se tornava menos dócil.

E a Dor enchia as mãos na corrente e levava-a à companheira.

Horas depois possuía a Criação um bicho desconhecido. Plagiado da obra divina, o novo habitante da Terra não se parecia com os outros, sendo embora nas suas particularidades uma reminiscência de todos eles. A sua juba era a do leão; os seus dentes, os do lobo; os seus olhos, os da hiena; andava sobre dois pés como as aves, e trepava rápido como os bugios.

O seu aparecimento no seio da animalidade alarmou a Criação. Os ursos, que jamais se haviam mostrado selvagens, urravam alto, e escarvavam o solo à sua aproximação. As aves piavam nos ninhos, amedrontadas e os leões, as hienas, os tigres, os lobos, reconhecendo-se nele, arreganhavam o dentes ou mostravam as garras, como se a terra acabasse de ser invadida naquele instante por um inimigo inesperado.

Repelido pelos outros seres, marchava assim o Homem pela margem do rio, custodiado pela Dor e pela Morte. No seu espírito inseguro surgiam às vezes interrogações inquietantes. Certo, se aqueles seres se assombravam à sua aproximação, era porque reconheciam unânimes a sua condição superior. E assim refletindo, comprazia-se em amedrontar as aves e em perseguir em correrias desabaladas pela planície, ou pela margem do rio, esquecendo por um instante a Dor e a Morte, os gamos, os cerdos, as cabras, os animais que lhe pareciam mais fracos.

Um dia, porém, orgulhosas do seu filho, as duas se desavieram, disputando-se a primazia na criação do abantesma.

- Quem o criou fui eu! - dizia a Morte. - Fui eu quem contribuiu com o barro!

- Fui eu! - gritava a outra. - Que farias tu sem a água, que amoleceu a lama?

E como nenhuma voz conciliadora as serenasse, resolveram as duas que cada uma tiraria da sua criatura a parte com que havia contribuído.

- Eu dei a água! - tornou a Dor.

- Eu dei o barro! - insistiu a Morte.

Abrindo os braços, a Dor lançou-se contra o monstro, apertando-o violentamente com as tenazes das mãos. A água que o corpo continha subiu de repente aos olhos do Homem, e começou a cair gota a gota...

Quando não havia mais água que espremer a Dor se foi embora. A Morte aproximou-se então do monte de lama, tomou-o nos ombros, e partiu...


Humberto de Campos

Rapadura


Outro dia foi presa uma senhora porque numa banca de mercado, em pleno sábado de feira, agrediu a rival com uma rapadura, dando-lhe uma tijolada que exigiu doze pontos no couro cabeludo. Rapadura é arma perigosa, um paralelepípedo de doce bruto, pesado e com arestas. Batendo de quina pode até matar.

A banca de rapadura era o local de comércio do próprio marido da agressora. Vinha ela descuidosa, passando ali por acaso, e de repente depara com o quadro ofensivo: o marido em idílio público com a dalila, a messalina, a loba do seu lar! Ela debruçada ao balcão e ele, de dentro, segurava o queixo da sereia e lhe cochichava no ouvido. O monte de rapaduras estava ao lado. Foi só passar a mão na rapadura de cima e virá-la de quina, para castigar mesmo, no pé do ouvido da outra. A agredida se pôs a gritar, com a cara coberta de sangue, e o infiel asperamente ralhou: "Cala a boca, mulher, senão aparece a polícia".

Mas avisou tarde, porque a polícia já vinha na pessoa de um cabo a quem o idílio adúltero também repugnara, pois de há muito que ele, cabo, suspirava pelos favores da destruidora de lares. Debalde lhe fizera serenatas, com uma radiola cheia de discos do Roberto Carlos; e ela até lhe atirara um sapato pela janela, certa vez em que ele encostara a máquina cantante à rótula, tocando aquela música em que RC declara à amada : "Você vai aprender a ser gente!"

- Quem vai aprender é a mãe, gritara a julieta ofendida.

Mas o cabo apanhou o pé de sapato como se fosse o chapim da Borralheira, foi na loja do Geraldo e escolheu a sandalinha mais mimosa que tinha lá, com tiras prateadas e flor de contas no peito do pé. Entregou-a com um bilhete: "Recebi a medida e lhe mando a encomenda".

A bela pagou com um sorriso. Mas continuou com o homem das rapaduras, que tinha o que gastar com ela. Cabo arranchado mal ganha para o cigarro.

Agora porém tinha o cabo a sua oportunidade. Mandou a amada para o Samdu, num jipe, e bradou esteje preso para os mais.

Na delegacia a agressora já vinha muito unida ao marido (que a tratava até de meu bem) e declarou à autoridade que de nada se lembrava. Só sabia que vinha fazer umas compras, e passando pela banca de rapadura, viu aquela piranha com os dentes na cara do marido - marido de padre e juiz! - Sentira um escurecimento de vista - e aí não sabia mais de nada.

O delegado, naturalmente, punia pelos direitos de família legítima; e ia passando ao marido, para encerrar perfunctoriamente o caso, quando de súbito aparece a sogra, avisada às pressas. Da rua, a velha vinha gritando. Já sabia que aquilo ia acabar mal, minha filha está farta de sofrer, o sem vergonha do marido não tem rapariga na rua do Baturité que ele não gaste com ela, minha filha devia mesmo era ter lascado a cabeça da vagabunda. E ele ainda bate na pobrezinha, bate de correia, a vizinhança toda sabe!

Aí a mulher do marido interrompeu agastada: "Minha mãe cale sua boca, que o caso é outro. Ninguém está querendo saber se ele me bate. E se bate, bate no que é dele". (Vide Nelson Rodrigues.)

A sogra engasgou-se com a ingratidão. Desengasgando ia gritando "mal agradecida!", mas nesse ínterim o delegado se levantara e pedira silêncio. E explicou que o adultério é a peçonha dos lares; embora fosse errado apelar para a violência compreendia-se que a senhora no desvario da privação de sentidos e inteligência, agredisse a rival. Mas afinal não houvera morte, nem queixa registrada, o sangue era pouco, cada um fosse para casa e não pecasse mais. Falou, estava falado.

O cabo correu ao Samdu, onde lhe foi fácil fazer entender à pecadora que não há como a proteção das armas para uma frágil dama delicada.

O marido infiel levou a mulher para casa - conta a vizinhança que lhe deu uma surra para ela deixar de ser valente. E depois foram muito felizes.



Rachel de Queiroz
(“Revista O Cruzeiro” / “Elenco de Cronistas”)



Amores distantes


Quem não amou sem, de repente, já não poder trocar um beijo, um olhar, um sim, ou mesmo um não? Amores distantes são fantasmas, presenças incorpóreas, arrepios de vento ou de lembranças – não de toques.

Quem não amou pelo breve tempo de uma viagem, sabendo que ali na frente estava a volta com suas impossibilidades? O alongado tempo da ausência? Como se interpõe um oceano entre dois desejos, como se plantam montanhas, meridianos, paralelos entre duas ânsias de estar junto? Amantes separados têm necessidades que nenhum e-mail alivia, nenhuma carta com beijo de batom ameniza, nenhum telefonema consola – ao contrário: mais apertam o coração e o resto.

Quem não se apaixonou e teve de se afastar, só, deixando para trás um pedaço de si, transformado em metade, roubado do amor por uma transferência do trabalho, uma oportunidade, uma família que se muda? Ou quem, por outro lado, teve de ficar e se resignar, também metade? Duas metades oxidando suas cicatrizes, como laranja partida.

Quem não se enganou, pensando que era fugaz o amor e o dispensou, sem pena de o ver partir? Amor que mais tarde se revelou brasa dormindo sob as cinzas, mas agora sem remédio, pois o preterido se tornara de outra o preferido.

E quem não amou secretamente, por algum motivo?

Já foram mais duros os impedimentos do amor; as distâncias, mais impossíveis de vencer. Filhas eram postas em conventos pelos pais, que queriam matar sufocado algum amor que repudiavam. Até princesas eram encerradas em torres. Hoje princesas namoram cavalariços.

O inconfidente preso Tomás Antônio Gonzaga, o Dirceu de Marília, consolava-se com os poemas que escrevia para a amada no presídio de Vila Rica, impossibilitado de vê-la: "Nesta cruel masmorra tenebrosa / ainda vendo estou teus olhos belos, / a testa formosa, / os dentes nevados, / os negros cabelos". Ou este outro, escrito na prisão da Ilha das Cobras, no Rio de Janeiro, sempre figurando a noiva: "Nesta triste masmorra, / de um semi-vivo corpo sepultura, / inda, Marília, adoro / a tua formosura. / Amor na minha idéia te retrata; / busca, extremoso, que eu assim resista / à dor imensa que me cerca e mata". Foi de lá exilado para a África e nunca mais a viu.

De tais tormentos não se podem queixar os presos de hoje, nestes tempos liberais que facultam a visita íntima – amor é abraço.

Até impedimentos banais foram cantados, como nesta canção do ano de 1940: "Oi, eu de cá, você de lá / do outro lado da lagoa / de dia não tenho tempo / de noite não tem canoa". Boleros, sambas, valsas, modas sertanejas, tangos, blues, baladas, axés, reggaes, rocks – em todos os ritmos as canções falaram de amores a distância, porque a verdade é que amores venturosos não costumam dar ibope. "Quem parte leva saudade de alguém / que fica chorando de dor."

Há abismos que nós mesmos abrimos, por nos faltar ousadia para dar o passo; há Julietas frustradas em balcões que não galgamos, Romeus vacilantes; há barreiras como a guerra, a doença, o fanatismo, o racismo, o autoritarismo, o casamento, que os apaixonados, mesmo próximos, por fraqueza ou juízo não conseguem transpor – tudo é distância, pois amor é abraço.

– E você, poeta? – pergunto.

– Em outro hemisfério já deixei suspirosas Cristinas, Bárbaras e Ellens, suspiroso fiquei por ausentes Guidas e Vidinhas. Mas houve amores que venceram distâncias e não conseguiram vencer o tempo. E você, cronista?

– Cultivo o amor de convivência. Porque amor é abraço.


Ivan Ângelo

Areia branca


O lotação ia de Copacabana para o centro, com lugares vazios, cada passageiro pensando em sua vida; é o gênero de transporte onde menos viceja a flor da comunicação humana. Quando, em Botafogo, ouviu-se a voz de um senhor lá atrás:

- Olhe aqui, vou atender a você, mas não faça mais isso, ouviu? É muito feio pedir dinheiro aos outros. Na sua idade, eu já dava duro e ajudava em casa.

E passou a nota ao rapazinho de quinze anos, se tanto, que a recolheu com humildade. O homem continuava, agora dirigindo-se a outro passageiro:

- Está vendo? Fica essa garotada aí vivendo de expediente, encontra uns sujeitos como eu, que vão na conversa, e depois...

- Isso é um país sem solução, comentou o vizinho. Não há escola profissional para os meninos, andam jogados ao deus-dará, enquanto o governo só faz besteira. Não vê o porta-aviões?

O rapazinho não parecia interessado na crítica ao Governo, e mudou de lugar. Foi para junto de outro senhor e expôs-lhe o problema, baixinho.

- Como é?

- Areia Branca. Lá é minha terra. Tou querendo voltar, falta só 27 cruzeiros...

O homem puxou lentamente a carteira, lentamente extraiu uma nota, passou-a ao rapazinho.

- Está vendo? - comentou o senhor do fundo. - Aquele ali caiu também, quem é que não cai? Aposto que esse menino não vai pedir àquela senhora da esquerda. Mulher não vai na onda, só tem pena de aleijado e de velhinho.

De fato, o postulante deixou de lado a senhora e a moça que havia no carro, e foi contar a história mais adiante (com êxito) a outro representante do sexo frágil, isto é, masculino.

- Oba! Já tenho 20, daqui a pouco posso ir para Areia Branca.

E foi sentar-se ao lado de outro jovem que, pelos cadernos de capa grossa na mão, se revelava colegial.

- Quer me ajudar? Então inteire minha passagem para Areia Branca.

Não era pedido; era recomendação, em tom natural, tão natural que o estudante não discutiu. Sacou do bolso o macinho de notas miúdas - dinheiro do sorvete e da volta, - contou-as uma por uma, e estendeu cinco.

- Se você quer ajudar, inteira logo. Mais dois.

O outro passou-lhe os dois, que esperara inutilmente salvar da requisição, e, à guisa de agradecimento, o beneficiado esticou o dedo:

- Espia só o mar: que estouro! Areia Branca é do outro lado.

E levantou-se mais uma vez, foi ao motorista, curvou-se, passou-lhe o braço nas costas, numa conversa particular e macia. O senhor de trás, moralista e observador implacável, ia-lhe acompanhando as evoluções:

- Olha só o garoto. Aposto que cantou o motorista para uma carona.

O motorista - de queixo comprido, lembrando agradavelmente o velho atacante Ademir - sem volver o rosto, foi dizendo:

- Cai fora, coisinha.

- Eu não disse? - comentou o de trás, satisfeito com a própria agudeza.

O lotação parou, o meninote desceu. Ai, intervém a senhora, até então muda e queda como penedo:

- Garanto que agora ele vai tomar outro lotação para Copacabana, e repetir o golpe.

- Não duvido nada - secundou o moralista, meio desapontado porque não lhe havia ocorrido esse desenvolvimento.

O rapazinho atravessou a rua - era no contorno do Morro da Viúva - e parou à espera, na calçada.

- Vejam só - continuava exclamando o homem. - Vem com essa conversa de Areia Branca, Areia Branca, um nome tão poético, lembra o Caymmi, a gente não resiste mesmo. Se ele dissesse que queria voltar para Areia Preta, essa não, eu pensava naquela praia do Espírito Santo, em reumatismo, não soltava um níquel. Mas Areia Branca, esse moleque é impossível!


Carlos Drummond de Andrade
(Elenco de Cronistas - “A Bolsa & A Vida”)


Um cinturão

As minhas primeiras relações com a justiça foram dolorosas e deixaram-me funda impressão. Eu devia ter quatro ou cinco anos, por aí, e figurei na qualidade de réu. Certamente já me haviam feito representar esse papel, mas ninguém me dera a entender que se tratava de julgamento. Batiam-me porque podiam bater-me, e isto era natural.

Os golpes que recebi antes do caso do cinturão, puramente físicos, desapareciam quando findava a dor. Certa vez minha mãe surrou-me com urna corda nodosa que me pintou as costas de manchas sangrentas. Moído, virando a cabeça com dificuldade, eu distinguia nas costelas grandes lanhos vermelhos. Deitaram-me, enrolaram-me em panos molhados com água de sal - e houve uma discussão na família. Minha avó, que nos visitava, condenou o procedimento da filha e esta afligiu-se. Irritada, ferira-me à toa, sem querer. Não guardei ódio a minha mãe: o culpado era o nó. Se não fosse ele, a flagelação me haveria causado menor estrago. E estaria esquecida. A história do cinturão, que veio pouco depois, avivou-a.

Meu pai dormia na rede, armada na sala enorme. Tudo é nebuloso. Paredes extraordinariamente afastadas, rede infinita, os armadores longe, e meu pai acordando, levantando-se de mau humor, batendo com os chinelos no chão, a cara enferrujada. Naturalmente não me lembro da ferrugem, das rugas, da voz áspera, do tempo que ele consumiu rosnando uma exigência. Sei que estava bastante zangado, e isto me trouxe a covardia habitual. Desejei vê-lo dirigir-se a minha mãe e a José Baía, pessoas grandes, que não levavam pancada. Tentei ansiosamente fixar-me nessa esperança frágil. A força de meu pai encontraria resistência e gastar-se-ia em palavras.

Débil e ignorante, incapaz de conversa ou defesa, fui encolher-me num canto, para lá dos caixões verdes. Se o pavor não me segurasse tentaria escapulir-me: pela porta da frente chegaria ao açude, pela do corredor acharia o pé de turco. Devo ter pensado nisso, imóvel, atrás dos caixões. Só queria que minha mãe, sinhá Leopoldina, Amaro e José Baía surgissem de repente e me livrassem daquele perigo.

Ninguém veio, meu pai me descobriu acocorado e sem fôlego, colado ao muro, e arrancou-me dali violentamente, reclamando um cinturão. Onde estava o cinturão? Eu não sabia, mas era difícil explicar-me: atrapalhava-me, gaguejava, embrutecido, sem atinar com o motivo da raiva. Os modos brutais, coléricos, atavam-me; os ,sons duros morriam, desprovidos de significação.

Não consigo reproduzir toda a cena. Juntando vagas lembranças dela a fatos que se deram depois, imagino os berros de meu pai, a zanga terrível, a minha tremura infeliz. Provavelmente fui sacudido. O assombro gelava-me o sangue, escancarava-me os olhos.

Onde estava o cinturão? Impossível responder. Ainda que tivesse escondido o infame objeto, emudeceria, tão apavorado me achava. Situações deste gênero constituíram as maiores torturas da minha infância, e as conseqüências delas me acompanharam.

O homem não me perguntava se eu tinha guardado a miserável correia: ordenava que a entregasse imediatamente. Os seus gritos me entravam na cabeça, nunca ninguém se esgoelou de semelhante maneira.

Onde estava o cinturão? Hoje não posso ouvir uma pessoa falar alto. O coração bate-me forte, desanima, como se fosse parar, a voz emperra, a vista escurece, uma cólera doida agita coisas adormecidas cá dentro. A horrível sensação de que me furam os tímpanos com pontas de ferro.

Onde estava o cinturão? A pergunta repisada ficou-me na lembrança: parece que foi pregada a martelo.

A fúria louca ia aumentar, causar-me sério desgosto. Conservar-me-ia ali desmaiado, encolhido, movendo os dedos frios, os beiços trêmulos e silenciosos. Se o moleque José ou um cachorro entrasse na sala, talvez as pancadas se transferissem. O moleque e os cachorros eram inocentes, mas não se tratava disso. Responsabilizando qualquer deles, meu pai me esqueceria, deixar-me-ia fugir, esconder-me na beira do açude ou no quintal.

Minha mãe, José Baía, Amaro, sinhá Leopoldina, o moleque e os cachorros da fazenda abandonaram-me. Aperto na garganta, a casa a girar, o meu corpo a cair lento, voando, abelhas de todos os cortiços enchendo-me os ouvidos - e, nesse zunzum, a pergunta medonha. Náusea, sono. Onde estava o cinturão? Dormir muito, atrás dos caixões, livre do martírio.

Havia uma neblina, e não percebi direito os movimentos de meu pai. Não o vi aproximar-se do torno e pegar o chicote. A mão cabeluda prendeu-me, arrastou-me para o meio da sala, a folha de couro fustigou-me as costas. Uivos, alarido inútil, estertor. Já então eu devia saber que rogos e adulações exasperavam o algoz. Nenhum socorro. José Baía, meu amigo, era um pobre-diabo.

Achava-me num deserto. A casa escura, triste; as pessoas tristes. Penso com horror nesse ermo, recordo-me de cemitérios e de ruínas mal-assombradas. Cerravam-se as portas e as janelas, do teto negro pendiam teias de aranha. Nos quartos lúgubres minha irmãzinha engatinhava, começava a aprendizagem dolorosa.

Junto de mim, um homem furioso, segurando-me um braço, açoitando-me. Talvez as vergastadas não fossem muito fortes: comparadas ao que senti depois, quando me ensinaram a carta de A B C, valiam pouco. Certamente o meu choro, os saltos, as tentativas para rodopiar na sala como carrapeta eram menos um sinal de dor que a explosão do medo reprimido. Estivera sem bulir, quase sem respirar. Agora esvaziava os pulmões, movia-me, num desespero.

O suplício durou bastante, mas, por muito prolongado que tenha sido, não igualava a mortificação da fase preparatória: o olho duro a magnetizar-me, os gestos ameaçadores, a voz rouca a mastigar uma interrogação incompreensível.

Solto, fui enroscar-me perto dos caixões, coçar as pisaduras, engolir soluços, gemer baixinho e embalar-me com os gemidos. Antes de adormecer, cansado, vi meu pai dirigir-se à rede, afastar as varandas, sentar-se e logo se levantar, agarrando uma tira de sola, o maldito cinturão, a que desprendera a fivela quando se deitara. Resmungou e entrou a passear agitado. Tive a impressão de que ia falar-me: baixou a cabeça, a cara enrugada serenou, os olhos esmoreceram, procuraram o refúgio onde me abatia, aniquilado.

Pareceu-me que a figura imponente minguava - e a minha desgraça diminuiu. Se meu pai se tivesse chegado a mim, eu o teria recebido sem o arrepio que a presença dele sempre me deu. Não se aproximou: conservou-se longe, rondando, inquieto. Depois se afastou.

Sozinho, vi-o de novo cruel e forte, soprando, espumando. E ali permaneci, miúdo, insignificante, tão insignificante e miúdo como as aranhas que trabalhavam na telha negra.

Foi esse o primeiro contato que tive com a justiça


Graciliano Ramos

Para Maria da Graça


Agora, que chegaste à idade avançada de 15 anos, Maria da Graça, eu te dou este livro: “Alice no País das Maravilhas”.

Este livro é doido, Maria. Isto é: o sentido dele está em ti.

Escuta: se não descobrires um sentido na loucura acabarás louca. Aprende, pois, logo de saída para a grande vida, a ler este livro como um simples manual do sentido evidente de todas as coisas, inclusive as loucas. Aprende isso a teu modo, pois te dou apenas umas poucas chaves entre milhares que abrem as portas da realidade.

A realidade, Maria, é louca.

Nem o Papa, ninguém no mundo, pode responder sem pestanejar à pergunta que Alice faz à gatinha: "Fala a verdade Dinah, já comeste um morcego?".

Não te espantes quando o mundo amanhecer irreconhecível. Para melhor ou pior, isso acontece muitas vezes por ano. "Quem sou eu no mundo?". Essa indagação perplexa é o lugar-comum de cada história de gente. Quantas vezes mais decifrares essa charada, tão entranhada em ti mesma como os teus ossos, mais forte ficarás. Não importa qual seja a resposta; o importante é dar ou inventar uma resposta. Ainda que seja mentira.

A sozinhez (esquece essa palavra que inventei agora sem querer) é inevitável. Foi o que Alice falou no fundo do poço: "Estou tão cansada de estar aqui sozinha!". O importante é que ela conseguiu sair de lá, abrindo a porta. A porta do poço! Só as criaturas humanas (nem mesmo os grandes macacos e os cães amestrados) conseguem abrir uma porta bem fechada, e vice-versa, isto é, fechar uma porta bem aberta.

Somos todos tão bobos, Maria. Praticamos uma ação trivial, e temos a presunção petulante de esperar dela grandes conseqüências. Quando Alice comeu o bolo, e não cresceu de tamanho, ficou no maior dos espantos. Apesar de ser isso o que acontece, geralmente, às pessoas que comem bolo.

Maria, há uma sabedoria social ou de bolso; nem toda sabedoria tem de ser grave.

A gente vive errando em relação ao próximo e o jeito é pedir desculpas sete vezes por dia: "Oh, I beg your pardon!". Pois viver é falar de corda em casa de enforcado. Por isso te digo, para a tua sabedoria de bolso: se gostas de gato, experimenta o ponto-de-vista do rato. Foi o que o rato perguntou à Alice: "Gostarias de gatos se fosses eu?".

Os homens vivem apostando corrida, Maria. Nos escritórios, nos negócios, na política, nacional e internacional, nos clubes, nos bares, nas artes, na literatura, até amigos, até irmãos, até marido e mulher, até namorados todos vivem apostando corrida. São competições tão confusas, tão cheias de truques, tão desnecessárias, tão fingindo que não é, tão ridículas muitas vezes, por caminhos tão escondidos, que, quando os atletas chegam exaustos a um ponto, costumam perguntar: "A corrida terminou! Mas quem ganhou?". É bobice, Maria da Graça, disputar uma corrida se a gente não irá saber quem venceu. Se tiveres de ir a algum lugar, não te preocupe a vaidade fatigante de ser a primeira a chegar. Se chegares sempre aonde quiseres, ganhaste.

Disse o ratinho: "Minha história é longa e triste!". Ouvirás isso milhares de vezes. Como ouvirás a terrível variante: "Minha vida daria um romance". Ora, como todas as vidas vividas até o fim são longas e tristes, e como todas as vidas dariam romances, pois o romance é só o jeito de contar uma vida, foge, polida mas energicamente, dos homens e das mulheres que suspiram e dizem: "Minha vida daria um romance!". Sobretudo dos homens. Uns chatos irremediáveis, Maria.

Os milagres sempre acontecem na vida de cada um e na vida de todos. Mas, ao contrário do que se pensa, os melhores e mais fundos milagres não acontecem de repente, mas devagar, muito devagar. Quero dizer o seguinte: a palavra depressão cairá de moda mais cedo ou mais tarde. Como talvez seja mais tarde, prepara-te para a visita do monstro, e não te desesperes ao triste pensamento de Alice: "Devo estar diminuindo de novo". Em algum lugar há cogumelos que nos fazem crescer novamente.

E escuta esta parábola perfeita: Alice tinha diminuído tanto de tamanho que tomou um camundongo por um hipopótamo. Isso acontece muito, Mariazinha. Mas não sejamos ingênuos, pois o contrário também acontece. E é um outro escritor inglês que nos fala mais ou menos assim: o camundongo que expulsamos ontem passou a ser hoje um terrível rinoceronte. Ê isso mesmo. A alma da gente é uma máquina complicada que produz durante a vida uma quantidade imensa de camundongos que parecem hipopótamos e de rinocerontes que parecem camundongos. O jeito é rir no caso da primeira confusão e ficar bem disposto para enfrentar o rinoceronte que entrou em nossos domínios disfarçado de camundongo. E como tomar o pequeno por grande e o grande por pequeno é sempre meio cômico, nunca devemos perder o bom-humor.

Toda pessoa deve ter três caixas para guardar humor: uma caixa grande para o humor mais ou menos barato que a gente gasta na rua com os outros; uma caixa média para o humor que a gente precisa ter quando está sozinho, para perdoares a ti mesma, para rires de ti mesma; por fim, uma caixinha preciosa, muito escondida, para as grandes ocasiões. Chamo de grandes ocasiões os momentos perigosos em que estamos cheios de dor ou de vaidade, em que sofremos a tentação de achar que fracassamos ou triunfamos, em que nos sentimos umas drogas ou muito bacanas. Cuidado, Maria, com as grandes ocasiões.

Por fim, mais uma palavra de bolso: às vezes uma pessoa se abandona de tal forma ao sofrimento, com uma tal complacência, que tem medo de não poder sair de lá. A dor também tem o seu feitiço, e este se vira contra o enfeitiçado. Por isso Alice, depois de ter chorado um lago, pensava: "Agora serei castigada, afogando-me em minhas próprias lágrimas...".

Conclusão: a própria dor deve ter a sua medida: É feio, é imodesto, é vão, é perigoso ultrapassar a fronteira de nossa dor, Maria da Graça.


Paulo Mendes Campos
("Elenco de Cronistas" - “O Colunista do Morro”)


Uma vela para Dario


Dario vinha apressado, guarda-chuva no braço esquerdo e, assim que dobrou a esquina, diminuiu o passo até parar, encostando-se à parede de uma casa. Por ela escorregando, sentou-se na calçada, ainda úmida de chuva, e descansou na pedra o cachimbo.

Dois ou três passantes rodearam-no e indagaram se não se sentia bem. Dario abriu a boca, moveu os lábios, não se ouviu resposta. O senhor gordo, de branco, sugeriu que devia sofrer de ataque.

Ele reclinou-se mais um pouco, estendido agora na calçada, e o cachimbo tinha apagado. O rapaz de bigode pediu aos outros que se afastassem e o deixassem respirar. Abriu-lhe o paletó, o colarinho, a gravata e a cinta. Quando lhe retiraram os sapatos, Dario roncou feio e bolhas de espuma surgiram no canto da boca.

Cada pessoa que chegava erguia-se na ponta dos pés, embora não o pudesse ver. Os moradores da rua conversavam de uma porta à outra, as crianças foram despertadas e de pijama acudiram à janela. O senhor gordo repetia que Dario sentara-se na calçada, soprando ainda a fumaça do cachimbo e encostando o guarda-chuva na parede. Mas não se via guarda-chuva ou cachimbo ao seu lado.

A velhinha de cabeça grisalha gritou que ele estava morrendo. Um grupo o arrastou para o táxi da esquina. Já no carro a metade do corpo, protestou o motorista: quem pagaria a corrida? Concordaram chamar a ambulância. Dario conduzido de volta e recostado á parede - não tinha os sapatos nem o alfinete de pérola na gravata.

Alguém informou da farmácia na outra rua. Não carregaram Dario além da esquina; a farmácia no fim do quarteirão e, além do mais, muito pesado. Foi largado na porta de uma peixaria. Enxame de moscas lhe cobriu o rosto, sem que fizesse um gesto para espantá-las.

Ocupado o café próximo pelas pessoas que vieram apreciar o incidente e, agora, comendo e bebendo, gozavam as delicias da noite. Dario ficou torto como o deixaram, no degrau da peixaria, sem o relógio de pulso.

Um terceiro sugeriu que lhe examinassem os papéis, retirados - com vários objetos - de seus bolsos e alinhados sobre a camisa branca. Ficaram sabendo do nome, idade; sinal de nascença. O endereço na carteira era de outra cidade.

Registrou-se correria de mais de duzentos curiosos que, a essa hora, ocupavam toda a rua e as calçadas: era a polícia. O carro negro investiu a multidão. Várias pessoas tropeçaram no corpo de Dario, que foi pisoteado dezessete vezes.

O guarda aproximou-se do cadáver e não pôde identificá-lo - os bolsos vazios. Restava a aliança de ouro na mão esquerda, que ele próprio quando vivo - só podia destacar umedecida com sabonete. Ficou decidido que o caso era com o rabecão.

A última boca repetiu - Ele morreu, ele morreu. A gente começou a se dispersar. Dario levara duas horas para morrer, ninguém acreditou que estivesse no fim. Agora, aos que podiam vê-lo, tinha todo o ar de um defunto.

Um senhor piedoso despiu o paletó de Dario para lhe sustentar a cabeça. Cruzou as suas mãos no peito. Não pôde fechar os olhos nem a boca, onde a espuma tinha desaparecido. Apenas um homem morto, e a multidão se espalhou, as mesas do café ficaram vazias. Na janela alguns moradores com almofadas para descansar os cotovelos.

Um menino de cor e descalço veio com uma vela, que acendeu ao lado do cadáver. Parecia morto há muitos anos, quase o retrato de um morto desbotado pela chuva.

Fecharam-se uma a uma as janelas e, três horas depois, lá estava Dario à espera do rabecão. A cabeça agora na pedra, sem o paletó, e o dedo sem a aliança. A vela tinha queimado até a metade e apagou-se às primeiras gotas da chuva, que voltava a cair.


Dalton Trevisan

Sentar-se à janela do avião


Era criança quando, pela primeira vez, entrei em um avião. A ansiedade de voar era enorme.

Eu queria me sentar ao lado da janela de qualquer jeito, acompanhar o vôo desde o primeiro momento e sentir o avião correndo na pista cada vez mais rápido até a decolagem.

Ao olhar pela janela via, sem palavras, o avião rompendo as nuvens, chegando ao céu azul.

Tudo era novidade e fantasia...

Cresci, me formei, e comecei a trabalhar. No meu trabalho, desde o início, voar era uma necessidade constante. As reuniões em outras cidades e a correria me obrigavam, às vezes, a estar em dois lugares num mesmo dia.

No início pedia sempre poltronas ao lado da janela, e, ainda com olhos de menino, fitava as nuvens, curtia a viagem, e nem me incomodava de esperar um pouco mais para sair do avião, pegar a bagagem, coisa e tal.

O tempo foi passando, a correria aumentando, e já não fazia questão de me sentar à janela, nem mesmo de ver as nuvens, o sol, as cidades abaixo, o mar ou qualquer paisagem que fosse.

Perdi o encanto. Pensava somente em chegar e sair, me acomodar rápido e sair rápido.

As poltronas do corredor agora eram exigência. Mais fáceis para sair sem ter que esperar ninguém, sempre e sempre preocupado com a hora, com o compromisso, com tudo, menos com a viagem, com a paisagem, comigo mesmo.

Por um desses maravilhosos 'acasos' do destino, estava eu louco para voltar de São Paulo numa tarde chuvosa, precisando chegar em Curitiba o mais rápido possível.

O vôo estava lotado e o único lugar disponível era uma janela, na última poltrona.

Sem pensar concordei de imediato, peguei meu bilhete e fui para o embarque.

Embarquei no avião, me acomodei na poltrona indicada: a janela. Janela que há muito eu não via, ou melhor, pela qual já não me preocupava em olhar.

E, num rompante, assim que o avião decolou, lembrei-me da primeira vez que voara. Senti novamente e estranhamente aquela ansiedade, aquele frio na barriga. Olhava o avião rompendo as nuvens escuras até que, tendo passado pela chuva, apareceu o céu.

Era de um azul tão lindo como jamais tinha visto. E também o sol, que brilhava como se tivesse acabado de nascer.

Naquele instante, em que voltei a ser criança, percebi que estava deixando de viver um pouco a cada viagem em que desprezava aquela vista.

Pensei comigo mesmo: será que em relação às outras coisas da minha vida eu também não havia deixado de me sentar à janela, como, por exemplo, olhar pela janela das minhas amizades, do meu casamento, do meu trabalho e convívio pessoal?

Creio que aos poucos, e mesmo sem perceber, deixamos de olhar pela janela da nossa vida.

A vida também é uma viagem e se não nos sentarmos à janela, perdemos o que há de melhor: as paisagens, que são nossos amores, alegrias, tristezas, enfim, tudo o que nos mantém vivos.

Se viajarmos somente na poltrona do corredor, com pressa de chegar, sabe-se lá aonde, perderemos a oportunidade de apreciar as belezas que a viagem nos oferece.

Se você também está num ritmo acelerado, pedindo sempre poltronas do corredor, para embarcar e desembarcar rápido e 'ganhar tempo', pare um pouco e reflita sobre aonde você quer chegar. A aeronave da nossa existência voa célere e a duração da viagem não é anunciada pelo comandante.

Não sabemos quanto tempo ainda nos resta. Por essa razão, vale a pena sentar próximo da janela para não perder nenhum detalhe.

Afinal, 'a vida, a felicidade e a paz são caminhos e não destinos'.


Alexandre Garcia

Sete mulhares

O meu noviciado de amor passei-o em Lisboa. Amei as primeiras sete mulheres que vi e que me viram.

A primeira era uma órfã, que vivia da caridade de um ourives, amigo do seu defunto pai. Chamava-se Leontina. Fiz versos a Leontina, sonetos em rima fácil, e muito errados, como tive ocasião de verificar, quando os quis dedicar a outra, dois anos depois.

Leontina não tinha caligrafia nem idéias; mas os olhos eram bonitos e o jeito de encostar a face à mão tinha encantos.

Era minha vizinha. Por desgraça também, era meu vizinho um algibebe que morria de amores por ela e, à conta deste amor, se ia arruinando, por descuidar-se em chamar freguesia, como os seus rivais, que saíam à rua a puxar pelos indivíduos suspeitos de quererem comprar. Aristocratizara-o o amor: envergonhava-se ele de tais alicantinas, debaixo do olhar distraído da mulher amada.

Odiava-me o algibebe. Recebi uma carta anônima, que devia ser sua. Era lacônica e sumária: “Se não muda de casa, qualquer noite é assassinado”.

Pouco mais dizia.

Contei a Leontina, em estilo alegre, com presunçoso desprezo da morte, o perigo em que estava minha vida, por amor dela. Indiquei o algibebe como autor da carta. A menina, que tivera o desfastio de lhe receber noutro tempo algumas, conheceu a letra mal disfarçada. Tomou-lhe raiva, fez-lhe arremessos e induziu a criada a atirar-lhe com uma casca de melão. Que lhe sujou um colete de veludinho amarelo e verde com listas encarnadas e pintas roxas. Que colete!

Passados tempos, Leontina desapareceu com a família; e, ao outro dia, recebi dela um bilhete, escrito em Almada. Dizia-me que o algibebe escrevera ao seu padrinho uma carta anônima, denunciando o namoro comigo. O padrinho ordenou logo a saída para a quinta de Almada.

O padrinho era o ourives, sujeito de cinqüenta anos, viúvo, com duas filhas mulheres, das quais amargamente Leontina se queixava. As filhas do ourives, receando que o pai se casasse com a órfã, queriam-lhe mal, e folgavam de a ver nas presas de alguma paixão, que a arrastasse ao crime, para assim se livrarem da temerosa perspectiva de tal madrasta.

E o certo é que o ourives pensava em casar com Leontina, logo que as filhas se arrumassem. Estas, porém, sobre serem feias, tinham contra si a repugnância do pai no dotá-las em vida. Ninguém as queria para passatempo e menos ainda para esposas.

Picado pelo ciúme, abriu o ourives seu peito à órfã, ofereceu-lhe a mão, e uma pulseira de brilhantes nela, com a condição de me esquecer.

Leontina disse que sim, cuidando que mentia; mas passados oito dias admirou-se de ter dito a verdade. Nunca mais soube de mim, nem eu dela; até que, um ano depois, a criada que a servia me contou que a menina casara com o padrinho e que as enteadas, coagidas pelo pai, se tinham ido para o recolhimento do Grilo com uma pequena mesada e a esperança de ficarem pobres. Não sei mais nada a respeito da primeira das sete mulheres que amei, em Lisboa.


Nota:

Eu sei mais alguma coisa que merece crônica. Leontina subjugou o ânimo do marido; descobriu que ele era rico e gozou quanto podia das regalias do mundo, às quais vivera estranha até aos vinte e quatro anos. O ourives tomou gosto aos prazeres e esqueceu o valor do dinheiro, exceto o que dava às filhas, que lhe saía da secretária com pedaços de vida. Começaram pelos arlequins e pelos touros e acabaram no Teatro de S. Carlos o refinamento do gosto.

Leontina andou falada na sua roda, como esposa fiel e admirável vencedora de tentações. Quase todos os amigos particulares do marido a cortejaram, sem resultado. Deu bailes em sua casa, donde era freqüente saírem os convidados penhorados, às quatro horas da manhã; mas, duma vez, não saíram todos; ficou um escondido no quarto da criada, e lá passou o dia seguinte.

O ourives ignorou muito tempo que a sua lealdade não era dignamente correspondida: porém, suspeitando um dia que a criada o roubava, fez-lhe uma visita domiciliária ao quarto, sem prevenir a esposa, e achou lá o filho do seu primo Anselmo, dormindo sobre a cama da moça, com a segurança de quem dorme em sua casa. Estava de moiras amarelas e vestia um chambre de lã do dono da casa! É o escândalo e mangação!

Foi chamada Leontina a altos gritos. Acordou o filho de Anselmo e foi procurar na algibeira do paletó um revólver. O qüinquagenário viu cinco bocas de ferro, mais persuasivas que a boca de ouro de Crisóstomo, o santo.

Passou ao andar de baixo e gritou pelo código criminal. Leontina tinha fugido para casa da sua amiga e vizinha D. Carlota, pessoa de hipotética probidade.

O escandaloso possessor do chambre despiu-o, vestiu-se, sacudiu as moiras amarelas, sentou-se a calçar as botas, acendeu um charuto, desceu as escadas serenamente e encontrou-se no pátio com dois cabos de polícia e um municipal. Dali foi para o administrador, que o mandou reter até ulteriores explicações.

Leontina, dias depois, foi para o Convento da Encarnação, onde esteve dois anos e donde saiu a tomar caldas em Torres Vedras, por consenso do marido, que a foi lá visitar e de lá foi com ela à exposição a Londres. Da volta da viagem, o ourives morreu hidrópico, legando às filhas umas inscrições, que rendem para ambas um cruzado diário, e à esposa uma independência farta em títulos bancários e em gêneros de ourivesaria.

Consta-me que Leontina se lembrara então de Silvestre; mas ignorava que destino ele tivesse. Incumbiu um compadre de indagar se estava no Porto o homem; a resposta demorou-se alguns dias, sete, creio eu, e ao sexto já ela estava em indagações da vida e costumes dum sujeito de bigode e pêra, que à mesma hora de cada tarde lhe passava à porta num tílburi, tirado por uma orça. Fácil lhe foi saber que o sujeito fora, cinco anos antes, algibebe, tirara o prêmio da Loteria de Espanha e fechara a loja. Era o mesmo algibebe que levara no colete de veludinho com a casca de melão.

Que mudança de cara e de maneiras ele fizera! O dinheiro faz essas mudanças e outras mais espantosas ainda. Chegaram à fala, deram-se explicações e casaram. Eu tive ocasião de os ver ontem no seu palacete a Buenos Aires.

Estão gordos, ricos e muito considerados na rua.


Camilo Castelo Branco


A crônica


A crônica, oficialmente, não existe. Mas, como ocorre com bruxas, há sempre alguém disposto a testemunhar que já a viu - e nas mais diferentes formas. Pode aparecer na forma de comentário sobre a cena política, ou como um recorte da infância. Ontem, disfarçou-se em digressões sobre o cotidiano. Amanhã, será poema em prosa. Às vezes exibe-se como trecho de algum romance que vai consumindo o autor ao longo de muitas madrugadas. Assume ainda características de ensaio, ou de experimentação estilística. Pode ser brincalhona, amarga, profunda, superficial, atrevida.

Tentativas de enquadrá-la com rigor em algum gênero não parecem recomendáveis. Catalogar a crônica como gênero menor, por exemplo, esbarra na evidência de que não existem gêneros menores. Há grandes e pequenos romancistas, grandes e pequenos poetas, grandes e pequenos contistas. Também há bons e maus cronistas. Contrapô-la ao conto é imaginar, equivocadamente, que crônicas seriam apenas histórias breves, inferiores ao conto em qualidade, densidade ou qualquer outro substantivo invocado para comparações dessa espécie. Numa frase: a crônica não passaria de conto leve e leviano. Mas como aplicar tal definição às obras-primas de um Rubem Braga ou um Fernando Sabino?

Inconstante, descompromissada, libertária, a crônica é avessa a regras e incompatível com camisas-de-força. Nos tempos da Província de São Paulo, por exemplo, já foi até anônima.

Raul Pompéia e Olavo Bilac assinavam textos curtos. Euclides da Cunha, Monteiro Lobato - obcecado com a questão da dicotomia atraso-progresso – publicavam, sem limitação de espaço, textos à altura das obras que lhes asseguraram uma vaga entre os grandes autores da língua portuguesa.

Além disso há outras particularidades: por exemplo ao perguntarem a Rubem Braga o que era a crônica, ele respondeu: "Repare bem: se não é aguda é crônica!".

Moacir Amâncio

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Crônica


Ah, essas pequenas coisas, tão quotidianas, tão prosaicas às vezes, de que se compõe meticulosamente a tessitura de um poema... talvez a poesia não passe de um gênero de crônica, apenas: uma espécie de crônica da eternidade.


(QUINTANA, Mario. Crônica. In: ─ . 80 anos de poesia; seleção e organização Tania Franco Carvalhal. São Paulo: Globo, 13. ed., 2008, p. 126, “Coleção Mario Quintana”.)

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

O fim do mundo


A primeira vez que ouvi falar no fim do mundo, o mundo para mim não tinha nenhum sentido, ainda; de modo que não me interessava nem o seu começo nem o seu fim. Lembro-me, porém, vagamente, de umas mulheres nervosas que choravam, meio desgrenhadas, e aludiam a um cometa que andava pelo céu, responsável pelo acontecimento que elas tanto temiam.

Nada disso se entendia comigo: o mundo era delas, o cometa era para elas: nós, crianças, existíamos apenas para brincar com as flores da goiabeira e as cores do tapete.

Mas, uma noite, levantaram-me da cama, enrolada num lençol, e, estremunhada, levaram-me à janela para me apresentarem à força ao temível cometa. Aquilo que até então não me interessava nada, que nem vencia a preguiça dos meus olhos pareceu-me, de repente, maravilhoso. Era um pavão branco, pousado no ar, por cima dos telhados? Era uma noiva, que caminhava pela noite, sozinha, ao encontro da sua festa? Gostei muito do cometa. Devia sempre haver um cometa no céu, como há lua, sol, estrelas. Por que as pessoas andavam tão apavoradas? A mim não me causava medo nenhum.

Ora, o cometa desapareceu, aqueles que choravam enxugaram os olhos, o mundo não se acabou, talvez eu tenha ficado um pouco triste - mas que importância tem a tristeza das crianças?

Passou-se muito tempo. Aprendi muitas coisas, entre as quais o suposto sentido do mundo. Não duvido de que o mundo tenha sentido. Deve ter mesmo muitos, inúmeros, pois em redor de mim as pessoas mais ilustres e sabedoras fazem cada coisa que bem se vê haver um sentido do mundo peculiar a cada um.

Dizem que o mundo termina em fevereiro próximo. Ninguém fala em cometa, e é pena, porque eu gostaria de tornar a ver um cometa, para verificar se a lembrança que conservo dessa imagem do céu é verdadeira ou inventada pelo sono dos meus olhos naquela noite já muito antiga.

O mundo vai acabar, e certamente saberemos qual era o seu verdadeiro sentido. Se valeu a pena que uns trabalhassem tanto e outros tão pouco. Por que fomos tão sinceros ou tão hipócritas, tão falsos e tão leais. Por que pensamos tanto em nós mesmos ou só nos outros. Por que fizemos voto de pobreza ou assaltamos os cofres públicos - além dos particulares. Por que mentimos tanto, com palavras tão judiciosas. Tudo isso saberemos e muito mais do que cabe enumerar numa crônica.

Se o fim do mundo for mesmo em fevereiro, convém pensarmos desde já se utilizamos este dom de viver da maneira mais digna.

Em muitos pontos da terra há pessoas, neste momento, pedindo a Deus - dono de todos os mundos - que trate com benignidade as criaturas que se preparam para encerrar a sua carreira mortal. Há mesmo alguns místicos - segundo leio - que, na Índia, lançam flores ao fogo, num rito de adoração.

Enquanto isso, os planetas assumem os lugares que lhes competem, na ordem do universo, neste universo de enigmas a que estamos ligados e no qual por vezes nos arrogamos posições que não temos - insignificantes que somos, na tremenda grandiosidade total.

Ainda há uns dias a reflexão e o arrependimento: por que não os utilizaremos? Se o fim do mundo não for em fevereiro, todos teremos fim, em qualquer mês...


Cecília Meireles


Texto extraído do livro "Quatro Vozes", Distribuidora Record de Serviços de Imprensa - Rio de Janeiro, 1998, pág. 73

sábado, 22 de janeiro de 2011

Sobre a crônica

“Na crônica, ao contrário, estamos diante de experiências do homem comum, expressas em linguagem ordinária e publicadas regularmente nas páginas da imprensa, ou seja, nesses catalisadores da vida pública que são os jornais e as revistas. Em suma, a crônica não se enquadra na divisão clássica dos gêneros ─ épica, drama (subdividido em tragédia e comédia) e lírica. Sua matéria-prima são os fatos do dia a dia, as notícias curiosas, acasos e encontros muitas vezes surpreendentes, mas que podem ocorrer com qualquer um, acontecimentos que propiciam momentos de nostalgia, enternecimento ou indignação compartilhados pelo cronista e os leitores. Sua linguagem procura captar o lirismo contido na simplicidade, a poesia embutida no di álogo das ruas, o encanto das gírias e dos palavrões, o sabor dos clichês lingüísticos em que o senso comum se perpetua.

“Embora não derive dos gêneros estabelecidos desde a Antiguidade, a crônica tem dois antecedentes históricos: 1) o ensaio, um tipo de texto criado pelo francês Michel de Montaigne no século 16, que mescla experiência autobiográfica e reflexão sobre o mundo com uma lapidação estilística que transforma sua leitura em algo comparável à fruição de um romance; 2) o familiar essay de origem inglesa, gênero de comentário e devaneio pessoal veiculado em jornais pelos chamados ‘folhetinistas’.

“A crônica incorpora essas características, a tal ponto que, num trabalho intitulado O Ensaio Literário no Brasil, o crítico Alexandre Eulalio afirma ser ela uma espécie de aclimatação da linhagem de ensaístas: ‘A crônica, que é nosso familiar essay, possui tradição de primeira ordem, cultivada, desde o amanhecer do periodismo nacional, pelos maiores poetas e prosistas da época ─ não será necessário citar aqui outros nomes além dos de José de Alencar, Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade’.

“Deve-se notar, todavia, que a crônica agrega elementos que fazem desse gênero não apenas uma versão tropical do familiar essay, mas também um modo genuinamente brasileiro de perceber e representar a realidade.

“Em primeiro lugar, a escrita em ‘tom menor’ da crônica corresponde àquela auto-imagem, criada ao longo de séculos de dependência econômica e importação de modelos culturais, de que o Brasil está fadado a orbitar na periferia do capitalismo, de que o país estaria apartado das grandes questões ocidentais (das quais seriam mero consumidor), de que esse filho ilegítimo da civilização européia estaria condenado a discutir sua identidade etc. (...)”

“Nesse contexto, a crônica aparece como o lado positivo de nossa problemática identidade nacional: a uma realidade apequenada, sem alcance ou possibilidade de utopia, corresponde um gênero que dá cor e forma às miudezas da vida cotidiana, que encontra no humor, no deboche e na banalidade uma expressão saudável dessa informalidade social que, em outros momentos, mascara desigualdades econômicas, autoritarismo e confusão entre as esferas pública e privada. Ironicamente, portanto, a crônica surge de uma espécie de complexo de inferioridade da sociedade e da literatura brasileiras, para se transformar num gênero autenticamente brasileiro, com um acervo de textos cuja riqueza poucas potências literárias conseguiram acumular.

“Em segundo lugar ─ e como decorrência do que foi afirmado acima ─, a crônica é o gênero que realiza de maneira mais feliz uma das palavras de ordem do modernismo: a superação do abismo que há, no Brasil, entre língua escrita e língua falada, entre linguagem literária e linguagem coloquial. (...)”

“(...) Foi com a crônica, portanto, que o projeto de aproximação da linguagem literária à dicção coloquial se deu de modo contínuo ─ e, não por acaso, os dois poetas que consolidaram essa tendência para um lirismo desinflado, cotidiano, foram também cronistas de mão cheia: Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade.

“O apogeu do novo gênero ─ ou seja, o momento em que a crônica perde os vestígios de seus antecessores europeus, transformando-se na expressão rematada de uma forma brasileira de sentir e se situar no mundo ─ se dá a partir dos anos 1950 e 1960 , com cronistas como Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende, Nelson Rodrigues e Fernando Sabino.

“Fato notável, quase todos eram simultaneamente cronistas que escreviam regularmente em jornais ou revistas e escritores que praticavam outros gêneros literários ─ o que reforça a idéia de que a crônica, longe de ser um subproduto da ficção ou do ensaio, é um campo textual próprio, que oferece possibilidades expressivas que nenhum outro gênero proporciona.”

“(...) Em meio ao caos e às injustiças galopantes da sociedade contemporânea, descobrem graça, harmonia, olhares de afeto e cumplicidade, enfim, sentimentos e lembranças que alimentam nosso senso crítico, pois nos ajudam a lutar por um lirismo que ainda respira nas casas e nas ruas.”



(PINTO, Manuel da Costa. Crônica, o mais brasileiro dos gêneros literários. In: Antologia de crônicas: crônica brasileira contemporânea; organização e apresentação de Manuel da Costa Pinto. São Paulo: Moderna/Salamandra, 1ª ed., 2005, pp. 7-13, “Lendo & Relendo”.)

*Texto enviado pelo colaborador Adauto Neto