quarta-feira, 28 de novembro de 2007

A Grande Noite do Ceguinho


Amigos, na minha crônica de ontem, apresentei o único torcedor ceguinho do mundo. É Tricolor de não sei quantas encarnações. E não perde uma do Fluminense. Mete-se nas arquibancadas com a sua bengalinha branca. Torce, como ninguém, os 90 minutos. Discute impedimentos acusa pênaltis não marcados, é mais opinante do que ninguém. E quando aparece todos dizem "Olha o Ceguinho! Olha o Ceguinho!" E uma coisa eu digo: todos podem trair o Fluminense, menos o Ceguinho.


Pois bem. O meu artigo saiu ontem e vocês não imaginam: logo de manhã, choveram os telefonemas. Todos queriam saber "Como é? O Ceguinho não enxerga e vê?" Tive de explicar que há uma óptica do amor. Não existe nada mais límpido do que a visão do sentimento. Uma leitora insinuou a dúvida: "Não é triste um Ceguinho na torcida Tricolor?" Esclareci que não há ninguém mais alegre do que o Ceguinho do Fluminense.


A leitora fez espanto: "Alegre?" E eu, taxativo: "Alegre como o pardal da manhã" E esta, justamente a sensação que me dá o Ceguinho. Lembro-me de uma passagem de minha infância profunda. Certa manhã, ao acordar, olhei para a janela e lá estava, pulando no peitoril, um pardal. Era a alegia da vida em forma de passarinho.


Tanto falei da alegria do Ceguinho que, por fim, a leitora, se convenceu. Outro que, desde o primeiro momento, se interessou pelo comovente "pó-de-arroz" foi o Antônio Egídio, da publicidade do Jornal dos Sports. Quando cheguei na Redação ele veio me falar e com vibração. Repetia, de olho rútilo: "E o Ceguinho? E o Ceguinho?" Parecia-lhe que o Ceguinho era uma figura tão encantada quanto o Gravatinha.


Também o Antônio quis que eu contasse coisas sobre o Ceguinho.


Fiz-lhe a vontade. Disse ao Antônio que a alegria está ao alcance de qualquer um. O Ceguinho é feliz e por quê? Há príncipes, reis, rainhas, duques, potentados que ainda não descobriram a doçura da vida. Eis o que eu queria dizer: a felicidade do Ceguinho chama-se Fluminense. Com o Tricolor, sua vida passou a ter um sentido. Não sentiu mais nenhuma solidão. Foi como se, de repente, a sua treva se enchesse de estrelas.


Por isso, já disse e vivo repetindo que não há torcida como a do Fluminense. Temos tudo. Há Ministros na massa Tricolor; paus-de-arara; e grã-finas; e marias-cachuchas; e presidentes; e veterinários; e crioulões. Falei em "presidentes". Em 1919, quando decidimos com o Flamengo, lá estava, na Tribuna de Honra, Epitácio Pessoa, de fraque. Era Presidente e, ao lado de D. Guilhermina Guinle, viu o Tricolor golear o Rubro-Negro por 4 a 0. Se duvidarem, encontraremos um Mandarim, ou um esquimó, entre os que sonham com as nossas vitórias.


Mas faltava um Ceguinho. Por coincidência, sentei-me ao seu lado, no jogo Fluminense x Bonsucesso. E, quando o "pó-de-arroz" entrou em campo, o Ceguinho gritou: "Ademar está mais magro". Para a óptica generosa do seu amor, Ademar sempre estará mais magro. E quando acabou o jogo, o Ceguinho levantou-se. Vou repetir a imagem que usei acima. O Fluminense ganhara de 4 a 0. E a noite do Ceguinho encheu-se de estrelas.



Nélson Rodrigues

domingo, 25 de novembro de 2007

Por Vários Motivos

Durante uma recepção elegante, a flor dos Ponte Pretas estava a mastigar o excelente jantar, quando uma senhora que me fora apresentada pouco antes disse que adorou meus livros e que está ávida de ler o próximo.

— Como vai se chamar?Fiquei meio chateado de revelar o nome do próximo livro. Ela podia me interpretar mal. Como ela insistisse, porém, eu disse:


— "Vaca Porém Honesta."


(*)Madame deu um sorriso amarelo mas acabou concordando que o nome era muito engraçado, muito original. Depois — confessando-se sempre leitora implacável, dessas que sabem até de cor o que a gente escreve —, madame pediu para que não deixássemos de incluir aquela crônica do afogado.


— Qual? — perguntei.


— Aquela do camarada que ia se afogando, aí os carros foram parando na praia de Botafogo para ver se salvavam o homem. Depois um carro bateu no outro, houve confusão e até hoje ninguém sabe se o afogado morreu ou salvou-se. Lembra-se? Aquela é uma de suas melhores crônicas.


Foi então que eu contei pra ela o caso do colecionador de partituras famosas, que um dia foi a um editor de música procurando o original de certa sonata que fora composta por Haydn e Schumann juntos. O editor ficou olhando para ele e o colecionador esclareceu: - Sei que essa partitura é raríssima, mas eu pagaria qualquer preço por ela.


— Vai ser um pouco difícil — disse o editor — conseguir uma partitura composta por Haydn e Schumann juntos, por vários motivos. Primeiro: quando Schumann nasceu, Haydn tinha morrido no ano anterior.


A leitora que se lembra de tudo que eu escrevi estranhou e perguntou:


— Por que me contou essa história?


— Porque lembra a história que estamos vivendo agora. A crônica sobre o afogado que a senhora diz ser uma das minhas melhores crônicas... quem escreveu foi Fernando Sabino.


Ela achou engraçadíssimo. Papai agrada em festa.


(*) O título, mais tarde, foi trocado, porque a vaca protestou.
Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto)


Texto extraído do livro "O melhor da crônica brasileira", José Olympio Editora - Rio de Janeiro, 1997, pág. 88.

terça-feira, 20 de novembro de 2007

Como comecei a escrever


Quando eu tinha 10 anos, ao narrar a um amigo uma história que havia lido, inventei para ela um fim diferente, que me parecia melhor. Resolvi então escrever as minhas próprias histórias.
Durante o meu curso de ginásio, fui estimulado pelo fato de ser sempre dos melhores em português e dos piores em matemática — o que, para mim, significava que eu tinha jeito para escritor.


Naquela época os programas de rádio faziam tanto sucesso quanto os de televisão hoje em dia, e uma revista semanal do Rio, especializada em rádio, mantinha um concurso permanente de crônicas sob o titulo "O Que Pensam Os Rádio-Ouvintes". Eu tinha 12, 13 anos, e não pensava grande coisa, mas minha irmã Berenice me animava a concorrer, passando à máquina as minhas crônicas e mandando-as para o concurso. Mandava várias por semana, e era natural que volta e meia uma fosse premiada.


Passei a escrever contos policiais, influenciado pelas minhas leituras do gênero. Meu autor predileto era Edgar Wallace. Pouco depois passaria a viver sob a influência do livro mais sensacional que já li na minha vida, que foi o Winnetou de Karl May, cujas aventuras procurava imitar nos meus escritos.


A partir dos 14 anos comecei a escrever histórias "mais sérias", com pretensão literária. Muito me ajudou, neste início de carreira,ter aprendido datilografia na velha máquina Remington do escritório de meu pai. E a mania que passei a ter de estudar gramática e conhecer bem a língua me foi bastante útil.


Mas nada se pode comparar à ajuda que recebi nesta primeira fase dos escritores de minha terra Guilhermino César, João Etienne filho e Murilo Rubião -- e, um pouco mais tarde, de Marques Rebelo e Mário de Andrade, por ocasião da publicação do meu primeiro livro, aos 18 anos.


De tudo, o mais precioso à minha formação, todavia, talvez tenha sido a amizade que me ligou desde então e pela vida afora a Hélio Pellegrino, Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos, tendo como inspiração comum o culto à Literatura.


Fernando Sabino



Texto extraído do livro "Para Gostar de Ler - Volume 4 - Crônicas", Editora Ática - São Paulo, 1980, pág. 8.
Tudo sobre Fernando Sabino em "
Biografias".

Cumplicidade de mãe e filha


A mãe, com as duas filhas adolescentes, passou por mim na rua movimentada. Todos os dias passam por nós mães com filhas adolescentes em ruas movimentadas. Mas aquela, com as suas filhas, chamou-me a atenção, me fez parar, virar a cabeça para vê-las se afastando de braços dados, num tititi característico.


Disse tititi e era isso mesmo. Elas iam periquitando num tititi de mãe e filha, de fêmea e suas crias. As meninas do lado, a mãe no meio. No meio (também) emocional. E a filha da esquerda dizia: Porque aquele vestido da vitrina Mãe, acho que o meu presente , dizia a da direita. E a fala de uma e outra foi se picotando e se afastando, deixando rastros assim: Com que sapato devo ir? ela já ganhou a blusa, eu não E a mãe respondendo: Você não acha que está pedindo demais?


As frases eram banais. E agora ao lembrá-las penso que poderia fazer uma crônica só dessa conversinha de mãe e filha, a exemplo do que, certa vez, fez Fernando Sabino com frases de mãe ralhando com filho. Mas há algo diferente que me atrai naquelas mãe e filhas. Nelas surpreendi, de relance, uma coisa chamada cumplicidade. Uma cumplicidade da qual, talvez, nem se dessem conta.


Quem as visse, de um ponto de vista banal, diria: lá vai uma jovem e bela mãe com duas filhas adolescentes, que estão aprendendo a ser belas. Mas não era só isto. Era cumplicidade mesmo, num sentido que eu mesmo estou tentando entender. Por isto, parei dois minutos para decifrar o que o texto vivo passava ante meus olhos.


E ali mesmo me veio essa frase-sensação: as mulheres são mais cúmplices dos filhos e filhas que nós, os compactos e solitários machos, cuja cumplicidade acanhada se desloca e vai se exibir nas mesas dos bares com os amigos ou nos almoços e reuniões de diretoria. Aí, a confraria dos homens exercita enviesadamente o seu afeto. O afeto e a agressividade. Porque a cumplicidade não se realiza só em carinhos. Também nas agressões sibilinas ou explícitas.


É isso: a mulher e as duas filhas personificaram algo que eu percebia, mas não tinha ainda configurado. Deixaram assim de ser três pessoas quaisquer, numa tarde qualquer, de uma cidade qualquer. Posso até dizer onde isto aconteceu. Foi na Visconde de Pirajá, às 4h23, em frente ao número 444. Mas poderia também ser ali na Savassi. Ou em qualquer rua do mundo. O que importa é que, de repente, desenhou-se claramente dentro de mim esta sensação: as mulheres são mais cúmplices dos filhos e filhas que nós, os compactos e solitários machos. Repito esta frase e acrescento numa autocrítica assustada: nós, os exilados do afeto. Por nós mesmos, pelas relações familiares e sociais, que avalizamos.


As fêmeas têm com as crias uma intimidade invejável. Os machos são limitados (claro, há raríssimas exceções). Aceitam a limitação física. A intimidade física, verbal, afetiva das mães com os filhos e filhas começa no ventre. Aí, nós, os homens já estamos (literalmente) meio por fora. E depois vem a amamentação, nova cumplicidade fluindo exteriorizadamente. E depois ainda os passeios diários com a criança pelas praças ou praia, levar e trazer ao colégio e à piscina, pegar e levar à aula disto e daquilo, enquanto o pai está lá dispersando sua afetividade em papéis, que jogará no lixo diariamente ou arquivará para poder jogá-los pela janela no fim do ano.


Enquanto isto a cumplicidade entre a mãe e as crias segue prosperando. Com a filha, as primeiras revelações e escolhas: do sutiã, do batom, da roupa de aniversário. A filha aprendendo a dizer aqueles nomes da vaidade e da descoberta do corpo: vestidos drapeados tecem conversa de uma e outra; conversa plissada com evasé costurando preferências; os cremes preferidos para a pele, os emolientes, os chás para avermelhar ou clarear os cabelos tingindo as horas; as técnicas de depilação, as visitas ao cabeleireiro, a peregrinação peripatética às butiques, a ida ao primeiro ginecologista, enfim, tudo isto vai desenrolando intermináveis e sensuais rituais femininos, que se reduplicam quando a filha vira mãe e se socorre da mãe avó para novos aprendizados.


E o homem meio de longe, meio de banda que nem quitanda. Até a primeira cueca para o filho é a mãe que compra. O homem parece assumir o filho só na hora de passar-lhe a oficina e o escritório. Alguns conseguem cumplicidade na hora de jogar tênis, mergulhar, conversar sobre a moto, lavar o carro. Mas é pouco.


Enquanto isto, por divisão de trabalho, os homens estão alienados desse contato físico-emocional com os filhos. Claro, existe o fim de semana. Aí, ao pai é dado lembrar-se de que é pai. Mas é pouco. Na França, domingo de manhã, o pai sai com os filhos para comprar pão e jornal. Nos Estados Unidos, nos feriados longos, os políticos se fazem fotografar com a família esquiando e cavalgando. Mas é pouco.


Enquanto isto, mães e filhas desfilam a natural cumplicidade numa rua qualquer, numa cidade qualquer, aos olhos de qualquer um.


Affonso Romano de Sant'Anna

domingo, 18 de novembro de 2007



Uma Crônica


Eu sei que a gente se acostuma, mas não devia.


A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E porque à medida que se acostuma esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.



A gente se acostuma a acordar de manhã, sobressaltado porque está na hora. A tomar café correndo porque está atrasado. A ler jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíches porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e a dormir pesado sem ter vivido o dia. A gente se acostuma a abrir a janela e a ler sobre a guerra. E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz.



E aceitando as negociações de paz, aceita ler todo dia de guerra, dos números, da longa duração. A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto. A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que paga. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com o que pagar nas filas em que se cobra.



A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes, a abrir as revistas e a ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema, a engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos. A gente se acostuma à poluição. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às besteiras das músicas, às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À luta. À lenta morte dos rios. E se acostuma a não ouvir passarinhos, a não colher frutas do pé, a não ter sequer uma planta.



A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber. Vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente se senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente só molha os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda satisfeito porque tem sono atrasado.



A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, de tanto acostumar, se perde de si mesma.



Marina Colasanti

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Luís Fernando Veríssimo

Um escritor que passasse a respeitar a intimidade gramatical das suas palavras seria tão ineficiente quanto um gigolô que se apaixonasse pelo seu plantel. Acabaria tratando-as com a deferência de um namorado ou com a tediosa formalidade de um marido. A palavra seria a sua patroa! Com que cuidados, com que temores e obséquios ele consentiria em sair com elas em público, alvo da impiedosa atenção de lexicógrafos, etimologistas e colegas. Acabaria impotente, incapaz de uma conjunção. A Gramática precisa apanhar todos os dias para saber quem é que manda.


(Veríssimo, Luís Fernando. O gigolô das palavras. In: - . O nariz e outras crônicas. São Paulo: Ática, 11ª ed., 3ª impressão, 2004, p. 92, coleção "Para Gostar de Ler", nº 14.)