sábado, 21 de novembro de 2015

O nascimento da crônica

Há um meio certo de começar a crônica por uma trivialidade. É dizer: Que calor! Que desenfreado calor! Diz-se isto, agitando as pontas do lenço, bufando como um touro, ou simplesmente sacudindo a sobrecasaca. Resvala-se do calor aos fenômenos atmosféricos, fazem-se algumas conjeturas acerca do sol e da lua, outras sobre a febre amarela, manda-se um suspiro a Petrópolis, e La glace est rompue; está começada a crônica.

Mas, leitor amigo, esse meio é mais velho ainda do que as crônicas, que apenas datam de Esdras. Antes de Esdras, antes de Moisés, antes de Abraão, Isaque e Jacó, antes mesmo de Noé, houve calor e crônicas. No paraíso é provável, é certo que o calor era mediano, e não é prova do contrário o fato de Adão andar nu. Adão andava nu por duas razões, uma capital e outra provincial. A primeira é que não havia alfaiates, não havia sequer casimiras; a segunda é que, ainda havendo-os, Adão andava baldo ao naipe. Digo que esta razão é provincial, porque as nossas províncias estão nas circunstâncias do primeiro homem.

Quando a fatal curiosidade de Eva fez-lhes perder o paraíso, cessou, com essa degradação, a vantagem de uma temperatura igual e agradável. Nasceu o calor e o inverno; vieram as neves, os tufões, as secas, todo o cortejo de males, distribuídos pelos doze meses do ano.

Não posso dizer positivamente em que ano nasceu a crônica; mas há toda a probabilidade de crer que foi coetânea das primeiras duas vizinhas. Essas vizinhas, entre o jantar e a merenda, sentaram-se à porta, para debicar os sucessos do dia. Provavelmente começaram a lastimar-se do calor. Uma dia que não pudera comer ao jantar, outra que tinha a camisa mais ensopando que as ervas que comera. Passar das ervas às plantações do morador fronteiro, e logo às tropelias amatórias do dito morador, e ao resto, era a coisa mais fácil, natural e possível do mundo. Eis a origem da crônica.

Que eu, sabedor ou conjeturador de tão alta prosápia, queira repetir o meio de que lançaram mãos as duas avós do cronista, é realmente cometer uma trivialidade; e contudo, leitor, seria difícil falar desta quinzena sem dar à canícula o lugar de honra que lhe compete. Seria; mas eu dispensarei esse meio quase tão velho como o mundo, para somente dizer que a verdade mais incontestável que achei debaixo do sol é que ninguém se deve queixar, porque cada pessoa é sempre mais feliz do que outra.

Não afirmo sem prova.

Fui há dias a um cemitério, a um enterro, logo de manhã, num dia ardente como todos os diabos e suas respectivas habitações. Em volta de mim ouvia o estribilho geral: que calor! Que sol! É de rachar passarinho! É de fazer um homem doido!

Íamos em carros! Apeamo-nos à porta do cemitério e caminhamos um longo pedaço. O sol das onze horas batia de chapa em todos nós; mas sem tirarmos os chapéus, abríamos os de sol e seguíamos a suar até o lugar onde devia verificar-se o enterramento. Naquele lugar esbarramos com seis ou oito homens ocupados em abrir covas: estavam de cabeça descoberta, a erguer e fazer cair a enxada. Nós enterramos o morto, voltamos nos carros, c dar às nossas casas ou repartições. E eles? Lá os achamos, lá os deixamos, ao sol, de cabeça descoberta, a trabalhar com a enxada. Se o sol nos fazia mal, que não faria àqueles pobres-diabos, durante todas as horas quentes do dia?

Machado de Assis 

O texto acima foi publicado no livro "Crônicas Escolhidas”, Editora Ática – São Paulo, 1994, pág. 13, e extraído do livro "As Cem Melhores Crônicas Brasileiras", Editora Objetiva - Rio de Janeiro, 2007, pág. 27, organização e introdução de Joaquim Ferreira dos Santos.

sexta-feira, 1 de maio de 2015

As palavras

Vinte linhas, ou até menos - cinco, duas linhas, é quanto tenho podido acrescentar cada noite à história que comecei a escrever já faz tanto tempo e que me prometi contar até o fim. Quando os dedos emperram sobre o teclado, penso comigo mesmo, olhando com desalento o papel branco e morto, que duro é esse ofício de escrever quando dele não se quer fazer um ato gratuito.

as palavras, há tanto tempo sem uso, tenho de descobri-las, ir buscá-las nas memórias enevoadas, mas já não é mais como antes, quando elas acorriam ao primeiro chamado, apresentadas, e saltavam da cabeça como pássaros de uma gaiola aberta. Eram tantas, sentiam-se asfixiar, queriam a liberdade - e se libertavam. Muitas foram as que se livraram assim e livre viveram por algum tempo. Mas foram muitas também as que, lá fora sob o céu azul, não disseram nada, porque nada tinham a dizer.

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Agora tenho que despertá-las, lá no fundo, como quem acutila um bicho acuado que não quer deixar a jaula. E depois de desentocá-las, é preciso ainda poli-las (ou tirar o verniz que as falseia) e exigir delas, em nome desse pudor que é a ferrugem de quem envelhece, que digam com exatidão o que quero dizer - nem mais, nem menos: como uma conta certa.

Assim policiado, o oficio de escrever se transforma num tormento, é como o exercício de um aprendiz. Melhor: como a ginástica solitária e cheia de dores de um enfermo que se engana a si mesmo na tentativa de recuperar os movimentos do copro entrevado, entregando-se submisso ao sofrimento, sem queixa sem protesto.


Joel Silveira

sábado, 25 de abril de 2015

A traição das elegantes

“As fotos estão sensacionais, mas algumas das elegantes não souberam posar” – confessou Ibrahim Sued a respeito da reportagem em cores sobre as “Mais Elegantes de 1967″ publicada em Manchete.
A verdade é mais grave, e todos a sentem: as “Mais Elegantes” estão às vezes francamente ridículas, às vezes com um ar de boboca e jeca, às vezes simplesmente banais. A culpa não será de Ibrahim, nem do fotógrafo, nem da revista, nem das senhoras; o que aconteceu é misterioso, desagradável, mas completamente indisfarçável: alguém ou, digamos, Algo, Algo com maiúscula, fez uma brincadeira de mau gosto, ou talvez, o que é pior, uma coisa séria e não uma brincadeira; como se fossem as três palavras de advertência que certa mão traçou na parede do salão de festim de Baltazar; apenas não escreveu nas paredes, mas nas próprias figuras humanas, em seus olhos e semblantes, em suas mãos e seus corpos: “Deus contou o dia de teus reinos e lhes marcou o fim; pesado foste na balança, e te faltava peso; dividido será teu reino”.
Oh, não, eu não quero ser o profeta Daniel da Rua do Riachuelo; mas aconteceu alguma coisa, e essas damas que eram para ser como símbolos supremos de elegância e distinção, mitos e sonhos da plebe, Algo as carimbou na testa com o “Manê, Tekel, Farés” da vulgaridade pomposa e fora de tempo. Oh, digamos que escapou apenas uma e que há uma outra que não está assim tão mal. Mas as doze restantes (pois desta vez são catorze) que aura envenenada lhes tirou o encanto, e as deixou ali tão enfeitadas e tão banais, tão pateticamente sem graça, expostas naquelas páginas coloridas como risíveis manequins em uma vitrina de subúrbio?
Que aconteceu? Ninguém pode duvidar da elegância dessas damas, mesmo porque muitas não fazem outra coisa a não ser isto: ser elegantes. Elas são parte do patrimônio emocional e estético da Nação, são respeitadas, admiradas, invejadas, adoradas desde os tempos de “Sombra”; vivem em nichos de altares invisíveis, movem-se em passarelas de supremo prestigio mundano – e subitamente, oh! ai! ui! um misterioso Satanás as precipita no inferno imóvel da paspalhice e do tédio, e as prende ali, com seus sorrisos parados, seus olhos fixos a fitar o nada, estupidamente o nada – quase todas, meu Deus, tão “Shangai”, tão “Shangai” que nos inspiram uma certa vergonha – o Itamarati devia proibir a exportação desse número da revista para que não se riam demasiado de nós lá fora!
Não sou místico; custa-me acreditar que algum Espírito Vingador tenha feito esse milagre contrário. A culpa será talvez da “Revolução”, que tornou os ricos tão seguros de si mesmos, tão insensatos e vitoriosos e ostentadores e fátuos que suas mulheres perderam o desconfiômetro, e elas envolvem os corpos em qualquer pano berrante que melífluos costureiros desenham e dizem – “a moda é isto” – e se postam ali, diante da população cada vez mais pobre, neste país em que mínguam o pão e o remédio, e se suprimem as liberdades – coloridas e funéreas, ajaezadas, e ocas, vazias e duras, sem espírito e sem graça nenhuma.
Há poucos meses, ao aceno de uma revista americana, disputaram-se algumas delas a honra de serem escolhidas, como mocinhas de subúrbio querendo ser “misses”, e no fim apareceram numas fotos de publicidade comercial, prosaicamente usadas como joguetes de gringos espertos. Desta vez é pior: não anunciaram nada a não ser a inanidade de si mesmas tragicamente despojadas de seus feitiços.
Direi que a derrota das “Mais Elegantes” não importa… Importa! As moças pobres e remediadas, a normalista, a filha do coronel do Exército que mora no Grajaú, a funcionaria da coletoria estadual de Miracema, a noiva do eletricista – todas aprenderam a se mirar nessas deusas, a suspirar invejando-as, mas admirando-as; era o charme dessas senhoras, suas festas, suas viagens, suas legendas douradas de luxo que romantizavam a riqueza e o desnível social; eram aves de luxo que enobreciam com sua graça a injustiça fundamental da sociedade burguesa.
Elas tinham o dever de continuar maravilhosas, imarcescíveis, magníficas. É possível que pessoalmente assim continuem; mas houve aquele momento em que um vento escarninho as desfigurou em plebéias enfeitadas, em caricaturas de si mesmas, espaventosas e frias.
Quero frisar que dessas senhoras são poucas as que conheço pessoalmente, e lhes dedico a maior admiração e o mais cuidadoso respeito. Não há, neste caso, nenhuma implicação pessoal. Estou apenas ecoando um sentimento coletivo de pena e desgosto, de embaraço e desilusão: nossas deusas apareceram de súbito a uma luz galhofeira, ingrata e cruel; sentimo-nos traídos, desapontados, constrangidos, desamparados e sem fé.
É duro confessar isto, mas é preciso forrar o coração de dureza, porque não sabemos se tudo isso é o fim de uma era ou o começo de uma nova era mais desolada e difícil de suportar.
Rubem Braga

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Diz-se que a crônica é um gênero literário tipicamente brasileiro e sempre são invocados os nomes de Rubem Braga, Fernando Sabino, Luís Fernando Verissimo, além de outros, hoje menos lidos, como Carlos Eduardo Novaes ou Henrique Pongetti.  O que nem sempre se comenta é que dentro do gênero crônica existem subgêneros, e um deles é a crônica rural, que se confunde com a anedota e o “cáuso”.

No Sertão Onde Eu Vivia de Zelito Nunes (Recife, editora do autor, 2014) é um bom exemplo da crônica que, ao invés de descrever os mil e um aspectos da rica e multiforme vida urbana descreve os mil e um aspectos da rica e multiforme vida rural.  Digo assim para combater o conceito equivocado de que a vida urbana é de uma multiplicidade inesgotável de tipos humanos, interações sociais, formas de comportamento, demonstrações de humor, inteligência, presença de espírito, etc., e que a vida rural é uma pasmaceira uniforme ao som de mugidos de gado.

Ledo engano. Sem falar em Leonardo Mota etc., aqui mesmo na Paraíba tivemos o inesgotável José Cavalcanti e seus livrinhos recheados de tipos populares e linguagem pitoresca. A vida nos sítios, fazendas e vilarejos do interior pode, sim, ser tão rica e variada quanto a vida que fervilha em torno do Mercado Modelo ou na Praia de Copacabana. Precisa apenas de gente com olhos e ouvidos atentos, excelente memória, e capacidade para colocar no papel esses episódios que, também no interior, mal cabem no estreito espaço das 24 horas de um dia.

Zelito Nunes, nascido em Monteiro e radicado no Recife, tem uma série de coletâneas de crônicas nessa veia (uma delas, Folha de Boldo: Notícias de Cachaceiros, em parceria com Jessier Quirino), retratando a vida do Cariri e do Pajeú.  Seria, mal comparando, a mesma riqueza de tipos (só que no meio rural) que encontramos na Zona Norte carioca da Rua dos Artistas e Transversais de Aldir Blanc. Além dos versos de cantadores que anota há décadas, Zelito Nunes conta histórias de camelôs, fazendeiros, vaqueiros, confusões entre bêbos e donos de bodegas, soldados de polícia, arruaceiros.  Aventuras mirabolantes ou desastradas vividas por gente com um parafuso a menos na cabeça e uma vida mais interessante do que a nossa. Sem falar nas recordações de uma infância vivida na fazenda, como a história da cabra com medo de lanterna elétrica ou o dia em que ele fugiu de casa e ninguém da família percebeu.  São memórias de uma vida rústica e aventurosa, evocada nesta sextilha de Manoel Filó: “Namorar em Mundo Novo / todas as noites eu ia / voltava de madrugada / quando o sono me tangia / molhando a barra da calça / na rama da melancia.”


Bráulio Tavares
(Mundo Fantasmo)