sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

B, de Beatriz


— O que eu gosto mesmo é de puta! — berrou o dr. Ambrósio no aniversário de 15 anos da filha, aproveitando o exato momento em que a música foi suspensa para os convidados cantarem o "parabéns a você".

Fez-se, então, o silêncio mais absoluto que ja presenciei.

O dr. Ambrósio estava num lugar estratégico, à vista de todos, próximo ao bolo com as velinhas acesas. Os convidados, que eram mais de 100 no imenso salão de festas do edifício, interromperam as conversas; os garçons pararam de servir. Na pequena multidão, houve uns poucos que, embora ouvindo os berros, não identificaram exatamente o que fora dito; a maioria das pessoas, porém, escutou aquela confissão insólita e ficou paralisada, sem acreditar nos próprios ouvidos.

— Quem é? É um penetra? — perguntou alguém, sussurrando.

— Não. É o pai da aniversariante! — respondeu outro sussurro.

O dr. Ambrósio aproveitou-se da perplexidade que imobilizara a todos e, embora fosse baixinho e barrigudo, conseguiu rapidamente, numa manobra ágil, subir num banquinho. Colocou as mãos em concha na boca, como um megafone, e, sempre aos berros, continuou:

— Eu adoro puta! Mas tem que ser puta bem puta mesmo, não me venham com aquelas putinhas envergonhadas, meio culpadas, do tipo freirinha que pulou o muro do convento para dar uma voltinha, como muitas que estão aqui no salão. Eu me amarro em puta assumida, bem sacana, bem despudorada.

— Increible... — exclamou, em espanhol, um homem gordo e careca a minha frente, cobrindo o rosto com as mãos, envergonhado.

— Meu Deus! Como é que pode fazer uma coisa dessas no aniversário da filha?!... — ouvi alguém falar atrás de mim. Este comentário foi como um chamamento à realidade. Despertei da paralisia, num salto. Corri em direção ao banquinho e puxei o dr. Ambrósio pelo braço:

— Pare com isso, Ambrósio! Você enlouqueceu?

Ele já tinha parado. Estava inerte, com os ombros curvados, os braços caídos e o olhar perdido. Parecia um palhaço em cima daquele banquinho. Segurei-o pelo braço e ajudei-o a descer com delicadeza. Não oferecia resistência alguma, dava a impressão de estar em estado de choque. Além de completamente bêbado, é claro.

O salão ficou tomado por um grande burburinho, onde se destacava o choro convulsivo da aniversariante, Beatriz, socorrida por vários convidados, que a retiraram do recinto às pressas. Também se podia ouvir com nitidez os berros de Jurema, mulher do dr. Ambrósio, mãe de Beatriz:

— Canalha! Patife! Monstro! Fazer isso no aniversário da filha. Eu sabia que ele ia tentar estragar este grande momento...

Percebi que Jurema vinha caminhando velozmente em direção ao marido, acompanhada pelo namorado da filha, e também pelo homem gordo e careca que falava espanhol e por uma amiga da filha, lindíssima.

O dr. Ambrósio, por um instante, emergiu daquela alienação em que parecia mergulhado e seus olhos brilharam com agressividade.

— Aquelas megeras... Megeras... Bruxas... — ele balbuciava com voz incerta e um ódio inquietante. Mas logo mergulhou outra vez no silêncio e na indiferença.

Tratei de protegê-lo dos convidados que formavam uma aglomeração furiosa. O namorado da filha era o mais exaltado e tentou agredir o dr. Ambrósio. Defendi-o, repelindo o agressor com um empurrão e pedi calma:

— Vamos serenar os ânimos! Com licença, vou retirar o Doutor daqui. Com licença, minha senhora...

— Chama a polícia! Chama a polícia para levar esse desclassificado — berrava o namorado da filha, contido por dois amigos.

— Não. Chama o hospício! — dizia Jurema, igualmente enfurecida.

— Calma, pessoal — eu pedia.

Os convidados formavam uma massa compacta em torno do dr. Ambrósio, o qual eu protegia com um abraço. O silêncio e a perplexidade anteriores foram substituídos por um tumulto cheio de indignação que se tornava perigosamente incontrolável.

— Se me contassem esse lance, eu não acreditava! — disse alguém. — Imagine, o dr. Ambrósio, um modelo de probidade e decência!

— Ele nunca me enganou com esse ar de falso moralista.

— Tem que dar uma surra nesse cara!

— Que nada! É preciso levar direto numa ambulância para uma clínica psiquiátrica...

— Será que ele está drogado?

— Que filho da puta!

— Olha o gabarito do salão! Vamos baixar a bola!

— Baixar a bola!? Agora? O gabarito do salão já foi pra cucuia.

O dr. Ambrósio estava abúlico, sem reação, inteiramente alheio ao que se passava em volta.

No meio daquela gritaria, percebi que o Gordo que falava espanhol e a Amiga Bonita da filha eram os mais equilibrados — e talvez os únicos que observavam a cena com compostura. As outras pessoas estavam revoltadas, tomadas de indignação contra o dr. Ambrósio. Algumas delas por certo aproveitavam para ajustar contas antigas. O cerco se fechava; tive que usar energia para conter os mais agressivos:

— Um momento! Afastem-se! Eu vou retirar o Doutor daqui. Com licença, por favor... O senhor e a senhora aí poderiam me ajudar? — pedi ao Gordo que falava espanhol e à Amiga Bonita da Aniversariante.

Ambos, prontamente, me ajudaram a retirar o dr. Ambrósio ileso daquela confusão indescritível.

O Gordo partiu na frente, incentivando-nos em portunhol para que o seguíssemos.

— Venham! Sigam-me! — ele gritava.

Saímos correndo em direção à calçada e entramos rápido no carro do Gordo, um Landau preto que estava providencialmente estacionado bem na porta do edifício. Ambrósio nos seguia docilmente, como um autômato.

— Gostei quando você pediu minha ajuda, me tratando de "senhora", ali na saída — me disse a Amiga Bonita da Aniversariante, numa zombaria delicada para quebrar a tensão quase insuportável da situação, logo que nos acomodamos no Landau.

Quando alguns convivas mais revoltados já se aproximavam,correndo, do carro, o Gordo engatou a primeira e partiu velozmente.

Na primeira esquina cruzamos com uma ambulância de sirena aberta. Mais adiante, passaram por nós dois Opalas da polícia em alta velocidade.

Corriam, possivelmente, em busca do dr. Ambrósio.

O que mais espantava naquela história era o seu personagem principal. De muitas pessoas eu poderia esperar um lance daqueles, mas nunca de alguém como dr. Ambrósio: um homem contido, sereno, com uma imagem de cidadão respeitável, sempre muito calado e inacessível. Nas fotos de jornal, invariavelmente a figura austera, com a testa franzida protegendo, por certo, pensamentos graves e inescrutáveis: há três décadas, ele ocupava sucessivamente vários cargos importantes no governo. Num discurso recente, o Governador se referira ao dr. Ambrósio como "uma Reserva Moral deste nosso Estado devastado". Um dos tantos adversários políticos, ou até um convidado ressentido pela festa inacabada, poderia se sair agora com alguma ironia solerte do tipo: assim como na floresta, também na moral a devastação já atingiu as reservas.

Aquele episódio era quase inacreditável. Lamentei ter esquecido as Memórias e Reflexões, de Jung, na casa da praia: certamente o mestre teria uma explicação para aquela conduta.

— Increible! Increible! Pobre Ambrossio, non si por que fez esto. Enlouqueceu por unos momentos, talbez... Quando se der cuenta do que fez vá a querer se matar de arrependimiento — disse o Gordo na sua mistura de espanhol e português.

De certa forma adivinhava a minha preocupação. Tentei imaginar o que seria da vida do dr. Ambrósio no futuro: a família, os amigos, a política... O que diria o Governador? E os jornais? Não sei o que um homem como dr. Ambrósio poderia fazer depois daquela bomba atômica que havia jogado sobre sua própria vida.

O Gordo dirigia vagarosamente, sem destino, pelas ruas da cidade. Não sabíamos o que fazer, para onde ir.

O dr. Ambrósio, lentamente, começou a se recuperar. Parecia despertar de um sono letárgico, como se tivesse passado o efeito de uma anestesia.

— Para donde nôs bamos? — perguntou o Gordo em portunhol.

— Han, hum... Me deixem na Rua Duque, no meu escritório. Vou dormir lá — disse o dr. Ambrósio, já quase completamente refeito.

— Quem sabe vamos a um médico? — arrisquei cautelosamente, quase dizendo "a uma clínica".

— Nem pensar! Quero dormir no escritório. Estou bem, estou perfeito — disse o dr. Ambrósio com aquele tom decidido de quem está acostumado a dar ordens sem ser questionado, que era sua marca. Estava refeito, constatei.

O carro seguia vagarosamente. Nós, passageiros, em silêncio: no banco da frente ia o Gordo dirigindo e a Amiga Bonita da Aniversariante: atrás, o dr. Ambrósio se recompunha ao meu lado. Ajeitava a camisa, amarfanhada, e tentava melhorar a gravata fora do lugar.

— Fiquem tranqüilos, que eu estou bem — nos assegurou ele.

De repente, o dr. Ambrósio passou a mão na cabeça e fechou os olhos, como se tivesse sofrido uma dor súbita:

— Puxa vida! O que é que eu fui fazer? Que escândalo!

O Gordo virou para trás e piscou o olho na minha direção, lembrando que profetizara aquela reação.

O carro estacionou na Rua Duque.

— É aqui mesmo, no 5º. andar deste edifício — informou dr. Ambrósio, que sacudiu a cabeça como quem espanta maus pensamentos. Terminou de se recompor e preparou-se para descer. Mas interrompeu o movimento e se voltou na nossa direção:

— Olha, eu queria dizer o seguinte... Eu devo uma explicação a vocês, que tiveram essa atitude solidária... — começou o dr. Ambrósio.

— Não, por favor! — cortou a Amiga Bonita da Aniversariante, energicamente, com expressão severa. — O senhor não nos deve nenhuma explicação! Não queremos saber de nada. O senhor não entendeu que nós estamos ao seu lado? Eu, pessoalmente, sempre tive o senhor na conta de um calhorda, para ser bem franca. Mas, hoje, o senhor cresceu no meu conceito: descobri que é um ser humano sensível e arrojado, capaz de explosões desatinadas...

O dr. Ambrósio, o Gordo e eu olhamos de boca aberta para aquela jovem e linda mulher. Que noite de surpresas!

— Quem é você? — perguntou o dr. Ambrósio.

— Sou Beatriz — disse ela. — Mesmo nome da sua filha. Amiga da sua filha.

— Quantos anos você tem?

— Dezenove.

— Deixe, então, eu te dizer uma coisa, filhinha — falou o dr. Ambrósio numa confidência a Beatriz, como se o Gordo e eu não estivéssemos ali...

Mas parou, arrependido, e se virou para sair do carro:

— Deixa assim — sorriu. — Você tem toda razão. Eu não devo nenhuma explicação. A ninguém! Muito obrigado a vocês. Boa noite.

Saindo do carro, o dr. Ambrósio caminhou em direção ao edifício em passos decididos, abriu a porta e desapareceu. O Gordo engatava a primeira marcha para partir, quando, em mais uma surpresa naquela noite surrealista, Beatriz o deteve com um gesto suave:

— Um momento... — disse ela, um pouco hesitante.

Em seguida, resoluta, virou-se na minha direção:

— Você me leva para beber um suco de laranja?

Fiquei paralisado pela perplexidade. Outra vez. Depois de tantas surpresas naquela noite, já era tempo de ir me acostumando. Quinze para as três da madrugada, olhei no reloginho do Landau, avaliando toda a dimensão daquele convite. O difícil vai ser conseguir laranjas a esta hora.

— É cl-claro... É claro! Vamos tomar um suco, sim! — respondi por fim.

Beatriz apanhou sua bolsa, abriu a porta do carro e disse ao Gordo:

— Nós, então, ficamos aqui. Boa-noite, sr...

— Gardelino, Dom Gardelino — disse o Gordo, com uma cara de quem não se espantaria com mais nada que acontecesse naquela noite.

Beatriz e eu descemos do carro, enquanto o Gordo permanecia uns instantes parado. Depois, sacudiu a cabeça e partiu sozinho no imenso Landau preto.

Ficamos calados por uns instantes na calçada em frente ao edifício onde entrara o dr. Ambrósio. A rua deserta, nós dois sozinhos.

— Que noite! — pensei, olhando para aquela mulher deslumbrante, apaixonado às três da manhã. Como diria o Pequeno Príncipe: meu coração parecia que ia explodir. Ou teria sido o Pequeno Polegar?

Imaginei a orquestra de Gordon Jenkins se acomodando ali no meio da Rua Duque e, quando aquele primeiro violinista negrão, o Everaldo, que foi meia-esquerda do juvenil do Vasco, atacasse os primeiros acordes, Nat King Cole, de smoking dourado, sairia de trás de uma coluna do Hotel Everest cantando Stardust.

— Hoje eu tive uma aula de vida — disse Beatriz quebrando meu devaneio.

— Aula de vida? — perguntei confuso, enquanto a orquestra de Gordon Jenkins e o smoking dourado de Nat King Cole desapareciam.

— Sim, uma aula de vida — disse Beatriz, com empolgação. Aquele lance aparentemente maluco do dr. Ambrósio, na festa de 15 anos da filha, mexeu com a minha cabeça. Foi uma iluminação. Descobri que tem coisas que estão dentro da gente, coisas que a gente tem vontade de fazer e não faz; mas a gente deve fazer. Deve fazer sem tentar dar explicações, nem para os outros, nem para a gente mesmo. Por isso, eu resolvi descer do carro e ficar com você...

Parece uma fábula de La Fontaine! — pensei com assombro, enquanto observava que Beatriz se tornava ainda mais deslumbrante à medida que a noite avançava.

— Quer dizer que... você está aqui comigo, agora... graças ao dr. Ambrósio?... — perguntei, me dando conta de repente daquela verdade.

— Em todos os sentidos! — respondeu ela, rindo da minha nova surpresa. — O dr. Ambrósio nos fez este favor: primeiro, porque, se não fosse a confusão da festa, eu nem teria saído de lá; e, segundo, porque com aquele discurso incrível, implodindo a festa e a vida dele, o dr. Ambrósio conseguiu mexer com a minha cabeça: antes da noite de hoje, mesmo com vontade de ficar, eu teria ido para casa como boa moça de família...

Ela dizia essas coisas de forma irresistível.

Olhei para aquela mulher esplêndida, e foi inevitável lembrar de Dante Alighieri. Dante? Ali, na calçada, às três da manhã? Sim. Há horas em que certos paralelos grandiosos não parecem ridículos; especialmente depois dos uísques de uma festa inacabada: naquele momento em que resolveu descer do Landau do Gordo para ficar comigo, Beatriz de certa forma repetiu, com um gesto, o que a Beatriz Portinari, da Divina Comédia, dissera 700 anos antes, com palavras, ao implorar que Virgilio fosse ao Inferno salvar Dante: "Sou Beatriz (...) Amor me move: só por ele eu falo".

Por certo que a Beatriz de sete séculos atrás fez com que Dante fosse resgatado do Inferno, mas a Beatriz luminosa que me sorria, ali na Rua Duque, foi solidária comigo na fuga de algo pior que o Inferno: uma festa de 15 anos em que o pai da aniversariante declarou de uma tribuna sua paixão pelas putas. O Inferno de Dante, com seus lascivos, glutões, avaros, pródigos, dissipadores, tiranos, salteadores, heréticos, sodomitas e usurários, pareceria um parque de diversões perto do astral da festa de onde fugíramos.

— Para onde é que você vai me levar? — perguntou Beatriz, me pegando pela mão, suavemente.

— Já que fugimos de um Inferno, que tal o Paraíso? — respondi com meu primeiro sorriso daquela noite.

Ela adorou a resposta, me abraçou com força, e sorriu em retribuição: nem no Canto XXXI, Dante conseguiu descrever um sorriso luminoso como aquele.

Antes de embarcarmos no táxi, olhei para o edifício em frente e elevei meu pensamento até a luz acesa no quinto andar:

Obrigado dr. Ambrósio.



José Antônio Pinheiro Machado


"O Brasileiro que Ganhou o Prêmio Nobel", "Recuerdos do Futuro", "Enciclopédia das Mulheres", "Anonymus Gourmet: Receitas & Comentários", "Copos de Cristal", "Na mesa ninguém envelhece", são alguns dos livros do escritor, cozinheiro, apresentador de programas culinários na TV e gourmet gaúcho José Antonio Pinheiro Machado. Seus textos também saíram na revista Playboy, onde foi Redator-Chefe (de onde transcrevemos o texto acima — edição de dezembro/1990), Zero Hora, Correio do Povo, Oitenta, Estado de S. Paulo, Jornal da Tarde, Amanhã, entre outras publicações. Mora em Porto Alegre, onde atua como advogado.


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