sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Olhando, na praça


Conseguia vê-los gesticulando, de longe. Mais ele do que ela. Ela olhava para os lados, braços abertos como quem pondera a gritaria em praça pública. Brigavam. Estava na cara de quem quisesse ver e ouvir, se chegasse mais perto. Preferi me manter em minha posição de assistente distante. Eu não era dado a escândalos e no fundo, aquilo tudo já começava a me incomodar.

Foi quando ele me chamou.

A principio, achei que não era comigo e ignorei suas mãos em concha, puxando o ar pra si. Continuei olhando para eles; o olhar vago de quem observa, mas não pretende entender. Logo notei que alguns poucos que se juntaram em torno deles — talvez mais ávidos por brigas — me acenavam com os braços, também chamando. Confesso que a situação me constrangeu. Eu não pretendia sair do lugar onde estava para saber de nada ou mesmo para apartar nada, se fosse o caso. Estava decidido a passar a tarde fazendo nada e era exatamente o que aconteceria. Ninguém me tiraria do recolhimento que escolhi viver naquela tarde de sol onde a fumaça de óleo diesel queimado dos ônibus apenas me lembrava do porquê de estar ali. Eu cansara da fumaça dos ônibus, dos ônibus e das pessoas que andavam nos ônibus; acredito que até das pessoas que andavam fora dos ônibus. Por isso escolhi aquela praça para refletir meu cansaço enorme de quase tudo o que existia. Não tinha conseguido chegar a conclusão alguma até o momento em que eles me tiraram de minhas observações com sua discussão silenciosa, ainda que movimentada, observada de longe. O carrinho de bebê estava ali ao léu. Eles sequer pareciam lembrar que carregavam um bebê dentro do carrinho seguro pelas mãos dela até um pouco antes da discussão ter início.

Foi do nada. Caminhavam lado a lado (passaram por mim, inclusive) e pude ver os tristes olhos dela fitando o longe. Nele não reparei, mas olhando pelas costas, sua musculatura forte — ainda que fosse baixo — me chamou a atenção. Quando estavam a uns vinte metros de distância, notei que pararam e ele começou a gritar. Ela balançava os braços e parecia dizer coisas que o deixava cada vez mais irritado. Ele chegou a sacudir os braços dela que os puxou novamente para si, com força. O bebê devia chorar, imagino. Ele bateu o pé direito três vezes — algum cacoete — e passou a enumerar algo na mão direita, como quem conta os erros e acertos do dia. A somatória não devia ser das melhores e a gritaria deve ter aumentado por aí, pois foi quando alguns poucos que passavam, pararam para olhar. Logo, um pequeno grupo se formava, esparsamente, em torno deles.

E agora todos eles me chamavam com suas bocas e braços. O bebê não me chamou. Também não pude ver seu semblante. Devia estar lá, sentado no carrinho, observando os pais discutirem por nada, mas provavelmente pensando em tudo.

Não. Não obedeci ao chamado. Também não fingi não ser comigo e me virei para outro lado. Apenas saí caminhando, como quem vai para casa. Claro que tive de passar por eles na minha ida, por ser o único caminho viável para a volta e por ter aprendido a nunca fugir por ruelas laterais nesses anos todos de vida. O caminho acabava sendo sempre mais longo. Mas minha curiosidade não me atentou para os lábios deles todos que, gesticulando mais do que nunca, quase pulavam ante a minha passagem. A praça parecia mais bela depois de passar por eles. E mesmo que eu não escutasse pássaro algum cantando — ainda que os visse — ou os gritos que ressoavam certamente atrás de mim, eu podia contemplar algumas flores perdidas entre matos e sonhar com aquele bebê sorrindo algum dia, certamente ao ouvir alguma bela melodia ou mesmo um sussurrar de palavras doces, saídas de alguma boca que o aguardaria. Ou numa realidade tácita, poderia ter como companheiro som algum. O mesmo que isentava a mim a participação no que fora chamado e não quisera atender.

E meu álibi era apenas o silêncio do mundo.

Ana Peluso



Nenhum comentário: