quarta-feira, 19 de setembro de 2007

A Última Crônica



A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever.




A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.




Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.




Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho -- um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triang ular.




A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.




São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: "parabéns pra você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa.




A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura -- ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido -- vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.




Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.




Fernando Sabino.




Texto extraído do livro "A Companheira de Viagem", Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1965, pág. 174.

12 comentários:

Unknown disse...

A crônica é um gênero textual que oscila entre literatura e jornalismo e, antes de ser publicada em livro, costumava ser veiculada em jornal ou revista. No início da crônica em estudo, o cronista conta que parou num botequim para tomar café no balçâo, mas, na verdade, estava com esse gesto adiando o momento de começar a escrever. Ao falar de falta de assunto, o crônista revela onde procura material para escrever.
Onde ele procura assunto ?

Unknown disse...

Em que consiste esse material? Dê exemplos.

Unknown disse...

A crônica quase sempre é um texto curto, com poucas personagens, que se inícia quando os fatos principais da narrativa estâo por acontecer. Por essa razâo, nesse gênero textual o tempo e o espaço sâo limitados. N crônica em estudo, o crônista, em busca de assunto, olha ao redor, vê o casal de negros com a filha e, do que observa a partir de entâo, estrai o material para o texto.
a) Quais sâo as personagens envolvidas na história?
b)Onde acontece acomemoraçâo?
c)Qual é, aproximadamente, o tempo de duraçâo desse fato?

Unknown disse...

Em uma crônica, o narrador pode ser observador ou personagem. Qual é o tipo sw narrador da crônica em estudo? Justifique sua resposta.

Unknown disse...

O cronista costuma ter sua atençâo voltada para os fatos do dia-a-dia ou veiculados em notícias de jornal e os regista com humor, semsibildade, crítica e poesia. Ao proceder assim, qual dos seguintes obejivos o cronista espera atingir com seu texto?
a)Informar os leitores sobre um determinado assunto.
b)Entreter os leitores e,ao mesmo tempo, levá-los a refletir criticamente sobre a vida e os comportamentos humanos.
c)Dar instruçôes aos leitores.
d)Tratar de um assunto cientificamente.
e)Argumentar, defender um pouco de vista e persudir o leitor.

Unknown disse...

5.Observe a linguagem empregada na crônica em estudo.
a)Como é narrada a cena do aniversário: de forma impessoal e objetiva, esto é, em liguagem literária?
b)A crônica, quanto á linguagem que epresenta, está mais proxima do noticiário de jornais ou revistas ou mais proximas de textos literários?
c)Que tipo de variedade linguística ela adota?

Unknown disse...

6.Como a maioria dos gêneros ficcionais, a crônica pode ser narrada no presente ou no pretérito.
a)Que tipo de tempo verbal predomina na crônica em estudo?
b)Que efeito de sentido a escolha desse tempo verbal confere ao texto?

Unknown disse...

B

Unknown disse...

B

Unknown disse...

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Unknown disse...

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Unknown disse...

B