Os grandes olhos claros e aguados
boiavam na sombra nevoenta, cheios de espanto. Esfregou-os, arrastou-se pesado e
entanguido, mal seguro à bengala,sentou-se num banco do jardim, fatigado,
suspirando, examinou a custo os arredores. Gastou uns minutos passeando as mãos
desajeitadas na gola do casaco. 0 exercício penoso enfureceu-o. Resmungou
palavras enérgicas e incompreensíveis, esforçou-se por dominar a tremura. Com
certeza era por causa do frio que os dedos caprichosos divagavam no pano
esgarçado e os queixos banguelos se moviam continuamente. Era por causa do frio,
sem dúvida. Se conseguisse abotoar o casaco e levantar a gola, os movimentos
incômodos cessariam.
Em que estava pensando ao chegar ali? Ia jurar que
pensava em coisas agradáveis. Ou seriam desagradáveis? Pedaços de recordações
incoerentes dançavam-lhe no espírito, acendiam-se, apagavam-se, como vaga-lumes,
confundiam-se com os letreiros verdes, vermelhos, que se acendiam e apagavam
também quase invisíveis na poeira nebulosa. Tentou reunir as letras, fixar a
atenção nas mais próximas, brilhantes, enormes.
A igreja toda aberta
resplandecia. O incenso formava uma neblina perturbadora. E, através dela, os
altares refugiam como sóis, a luz das velas numerosas chispava nas auréolas dos
santos.
Que doidice ! Não é que estava imaginando ver ali, nas
transitórias claridades, a igreja vista sessenta anos antes? Tresvariava.
Sacudiu a cabeça, afastou a lembrança importuna. De que servia desenterrar casos
antigos, alegrias e sofrimentos incompletos?
O que devia fazer... Pôs-se
a mexer os beiços, procurando nas trevas úmidas e leitosas que o envolviam o
resto da frase. O que devia fazer... Repetiu isto muitas vezes, numa cantilena,
distraiu-se olhando a chuva amarela, verde, vermelha, dos repuxos. Impossível
distinguir as cores. Ultimamente a cidade ia escurecendo. As pessoas que
transitavam junto aos canteiros sem flores eram vultos indecisos; .os prédios se
diluíam nas ramagens das árvores, manchas negras; os letreiros vacilantes não
tinham sentido.
O que devia fazer... De repente a idéia rebelde surgiu.
Bem. Devia meter os botões nas casas e agasalhar o pescoço. Depois cruzaria os
braços, aqueceria as mãos debaixo dos sovacos, ficaria imóvel e tranqüilo. Mas
os dedos finos e engelhados avançavam, recuavam, não havia meio de governá-los.
Se pudesse riscar um fósforo, chegá-lo a um cigarro, esqueceria os
inconvenientes que o aperreavam: o frio, a dureza das juntas, o tremor, a zoeira
constante, sussurro de maribondos assanhados. Dores errantes andavam-lhe no
corpo, entravam nos ossos e vinham à pele, arrepiavam os cabelos, fixavam-se nas
pernas, esmoreciam.
Agora não estava no banco do jardim, perto das
estátuas, das árvores, do coreto, dos esguichos coloridos. Estava longe, a
sessenta anos de distância, ajoelhado na grama, diante da igreja da vila. Os
rostos embotados, que se dissociavam, juntaram-se no largo onde um padre velho
dizia a missa da meia-noite. Fervilhavam matutos em redor das barracas, num
barulho de feira, e uma sineta badalava impondo em vão respeito e silêncio. Os
cavalinhos rodavam. Esgueiravam-se casais pelos cantos. O padre velho dirigia
olhares fulminantes àquela cambada de hereges. Uma figura pequenina cantava os
hinos ingênuos, de versos curtos, fáceis. Tudo parecera de chofre muito sério,
eterno. Os hinos capengas elevavam-se, estiravam-se. A mulher tinha um rosto de
santa e exigia adoração. Sessenta anos. As fachadas enfeitavam-se com lanternas
de papel, janelas escancaradas exibiam presépios, listas de foguetes cortavam o
céu negro. A sineta badalava, zangada. E o burburinho da multidão não
diminuía.
Sessenta anos. Da cinza que ocultava os olhos frios saltou uma
faísca; os alfinetes pregados na carne trêmula embotaram-se; o espinhaço curvo
endireitou-se; um débil sorriso franziu os beiços murchos; os braços ergueram-se
lentos, buscando a imagem de sonho.
Imagem de sonho, que doidice! Era
apenas uma bonita criatura de bom coração. Ligara-se a ela. E dezenas de vezes
tinham-se os dois ajoelhado ali na grama, olhando as lanternas, os presépios, os
foguetes, o padre que dizia a missa da meia-noite. Algumas esperanças, muitos
desgostos. Os meninos cresciam, engordavam. E no jardim da casa miúda um
jasmineiro recendia.
Depois tudo fora decaindo, minguando, morrendo.
Achara-se novamente só. Os filhos e os netos se haviam espalhado pelo mundo.
Agora... Que extensa caminhada, que enormes ladeiras, pai do céu ! Já nem se
lembrava dos lugares percorridos.
Conseguiu abotoar o casaco e levantar a
gola.
Andar tanto e afinal chegar ali, arriar num banco, não perceber as
letras que se acendiam . e apagavam.
Certamente àquela hora, diante duma
igreja aberta, outro homem novo admirava outra pessoinha ajoelhada, sentia
desejos imensos, formava planos absurdos. Os desejos e os planos iam desfazer-se
como a. fumaça luminosa dos repuxos.
Graciliano Ramos
(20 de dezembro de 1941).
Texto
extraído do livro “Linhas Tortas”, Editora Record – Rio de Janeiro, 1983, pág.
222.